MUTAÇÃO DO VÍNCULO SOCIAL?
Jean-Pierre Lebrun observa e existência e a promoção de uma "mutação do vínculo social" (que se formou a partir dos séculos XVIII-XIX) através, por exemplo, de uma substituição da paternidade e/ou da maternidade pela parentalidade "e para a qual somos literalmente arrastados" na maré montante ou jusante de uma afetividade de gênese intersubjetiva perversa. "E como podem perceber no termo parentalidade não se sabe muito bem quem é o pai e quem é a mãe" (LEBRUN, 2008), e prepara-se psíquica e sociologicamente o campo para a diluição do conceito de família e escancarar as portas para adoção como política de controle ao descontrole sexual e a irresponsabilidade das adolescentes (e mulheres em geral) que dão mais que chuchu na serra e movimentam o lucrativo mercado do sexo, do álcool e do parto. Fala-se, então, em afetividade como elemento fundante da condição humana moderna (essencialmente de incerteza e desorientação) das novas "entidades familiares" (Art.226, CF/1988) como se a afetividade fosse dela (a perversividade) desprovida. E nelas (entidades familiares) não existe mais a "mãe" ou o "pai", mas a maternidade e a paternidade, ou seja, na composição de uma família não existem mais causas, e sim apenas efeitos sem causas. A orgia é a regra, logo, "mãe" (ou "pai") e "afeto" se divorciam e tudo se reduz ao sexo. "Mãe" ou "Pai" não mais significam necessariamente "vínculos afetivos" nem "família" e para demonstrar tal realidade sacam a violência doméstica, e, mais uma vez, de efeitos sem causas. Neste sentido, diz-nos os defensores do Direito das Famílias que: "Ainda que tenha havido sensível mudança na concepção de família, ao inserir o afeto como traço identificador dos vínculos familiares, é impositivo invocar também o comprometimento ético que os vínculos afetivos geram" (DIAS, 2006). Isso é no mínimo paradoxal. Partindo de algumas observações de Christopher Lasch, no "Prefácio" de seu livro "Refúgio num mundo sem coração", podemos entender melhor as transformações da afetividade, ou melhor, por que se fala tanto em afetividade em Direito das Famílias, justamente quando elas, tanto a afetividade quanto a família, se pervertem se afastam e são negadas nos reflexos dominantes das relações econômicas estabelecidos no interior da família. Em primeiro lugar, se queremos defender os laços afetivos familiares e os comprometimentos éticos "que os vínculos afetivos geram", deveríamos não promover um modo de vida gay, mas sim combater no mínimo a atual organização do trabalho. Neste sentido, diz Lasch: "A crítica mais importante à atual organização do trabalho é que obriga as mulheres a escolher entre seu desejo de autosuficiência econômica e as necessidades de seus filhos" (LASCH, 1991). É óbvio que tal escolha não é fácil, mas a mulher tem que a levar a termo (em sua busca de progresso individual e satisfação das necessidades), e, para tal, necessariamente, se dobra a um processo de dessensibilização intersubjetiva que, é certo, não se realiza sem dor e sem sofrimento, sem remorso e sem culpa, mas que termina em inafetividade porque não se olha para o ordenamento social, mas, sim, para o ordenamento familiar pelo viés do ordenamento jurídico, e a família (e não a organização do trabalho) se converte em vilã da liberdade e da emancipação feminina, algo que deve ser combatida. Assim, conclui Lasch: "Em lugar de culpar a família por esta situação, deveríamos culpar as inflexíveis exigências do mercado de trabalho em si. Em lugar de perguntar como as mulheres podem ser liberadas da família, deveríamos perguntar como seria possível reorganizar – humanizar – o trabalho para que seja possível às mulheres competir economicamente com os homens sem sacrificar suas famílias ou, inclusive, a esperança mesma de uma família" (LASCH, 1991). Com efeito, quanto ao "comprometimento ético que os laços afetivos geram", se considerarmos, diz-nos Yves de La Taille, "a idéia de Bouer (ver Piaget, 1932) segundo a qual se a criança (por volta dos 4, 5 anos) respeita e, logo, obedece às regras morais, é porque respeita o que, para ela, representa a fonte dessas regras. Dito de outra maneira, não é tanto porque a criança aprecia intelectualmente as regras morais a que é submetida que a elas obedece, mas sim porque desenvolveu um sentimento de respeito pelas pessoas que apresentam tais regras e acentuam seu caráter de obrigatoriedade" (LA TAILLE, 2006). E isso exige fundamentalmente a presença da família, a autoridade dos pais. Mas, que aconteceria com a formação moral da criança se os pais não souberem mais a que dizer "Sim" e a que dizer "Não"? Ou seja, se os pais perderem a autoridade familiar? Como se constituirá a autoridade não histórica dos pais homossexuais de filhos adotivos? Com efeito, que são os pais? Quem são os pais? O STF precisava saber, antes de qualquer decisão, se os filhos adotados por casais homossexuais seriam educados com autoridade histórica. Seriam desprovidos de preconceitos sexuais? Ontologicamente como se formariam? Neste sentido, diria Hannah Arendt: "O desaparecimento do preconceito significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos apoiávamos de ordinário sem querer perceber que originariamente elas constituíam respostas as questões" (ARENDT, 1977). Em outras palavras, uma estrutura familiar com autoridade indeterminada ou difusa não gerenciaria os valores morais num caos de ambigüidades, fraquezas, incertezas e amoralidade? Isso não estimularia um aumento crescente de casos de violência contra a família [internamente, agressão psicológica e/ou física, relações incestuosas etc., externamente, agressão social (bulling etc.), estupro, pedofilia etc.]? Consideremos a hipótese de que "vínculos afetivos" geram "comprometimento ético", resta-nos saber que "vínculo afetivo" capaz de gerar "comprometimento ético" pode existir em um Ser desenvolvendo-se numa estrutura familiar vacilante, indeterminada, flutuante, amoral e fora do social na pura disponibilidade (aberta a todas as combinações, a todas as seduções) de um EU em formação permanente que é o indivíduo e a subjetividade da "era do vazio" que se apresenta agora como um modo de vida gay? Então, por exemplo, é fácil perceber que as instâncias do "tribunal de menores", diz Donzelot, "implica a incrustação da criança e de sua família num contexto de notáveis, de técnicos sociais e de magistrados" (DONZELOT, 2001), o social por excelência – e tudo se torna mais técnico e competitivo, porém, sem nada significar: tudo se realiza incondicionalmente. Com a instauração do social somos intimados a falar, a gozar, a nos realizar, a ser si mesmo sob pena de... sob pena de que? Baudrillard tem razão: "Isso é provocação". Sob o signo da afetividade pura, estamos sendo engolfados no que Baudrillard denomina um "regime interindividual do pedido". E esclarece: "No regime interindividual do pedido (contrariamente ao amor, à paixão ou à sedução), somos submetidos à chantagem afetiva, somos o refém efetivo do outro: "se você não me der isso, você será responsável pela minha depressão – se você não me amar, você será responsável pela minha morte" e, é claro, "Se você não se deixar amar, você será responsável por sua morte". Em suma, um envolvimento histérico – intimação e solicitação de responder" (BAUDRILLARD, 1996). Fala-se, então, com cinismo e devoção de uma ética e de uma estética da existência gay. E assim, diz-nos Baudrillhard: "O movimento glorioso da modernidade levou não a uma transmutação de todos os valores, como havíamos sonhado, mas a uma dispersão e involução do valor, cujo resultado é para nós a confusão total, a impossibilidade de retomar o princípio de uma determinação (ética ou) estética, tanto quanto sexual ou política, das coisas" (BAUDRILLARD, 1996). Em outras palavras, "a ascensão do social e a crise da família são o duplo político das mesmas causas elementares", como disse Deleuze em Prefácio ao excelente livro "A polícia das famílias", de Jacques Donzelot. A saber: "novas relações entre o público e o privado; entre o judiciário, o administrativo e o estabelecido pelos costumes; a riqueza e a pobreza; a cidade e o campo; a medicina, a escola e a família etc." (Prefácio), e, por fim, o Estado e a família. Ora, podemos indagar, "existe uma boa substância social, uma idealidade da relação social que possa e deva ser liberada? A resposta é evidentemente não: o equilíbrio, a harmonia de um contrato social desapareceu no horizonte da história e estamos destinados a essa obscenidade diáfana da mudança" (BAUDRILLARD, 1996). E a família, de refúgio disciplinar em um mundo sem coração se transforma numa instituição sitiada no coração de uma sociedade de controle (Foucault) e autoritarismo jurídico. E a "mutação do vínculo social" familiar [vínculo estabelecido a partir dos séculos XVIII-XIX com a invenção da afetividade (Ariès)], é facilmente verificável e se revela em pequenos, mas significativos sinais extraídos de fatos triviais da vida familiar que, a partir da ascensão do social (setor estranho, de formação recente, poder invasivo, domínio híbrido, importância crescente que Donzelot analisa com competência) a coloca em crise transformando-a em família "fragmentada" ou "liberalizada". Com efeito, Lebrun observa a "mutação do vínculo social" em fatos sutis, por exemplo, na dificuldade dos pais "de dizer não aos filhos" (LEBRUN, 2008), e, observa: "Pode parecer um pouco banal, pode parecer anódino. Mas, se refletirmos um pouco podemos afinal nos perguntar: como se explica que uma coisa que durante séculos se transmitiu de geração a geração sem nunca precisar de estudo ou de escola para se transmitir – ou seja, que para ser pai ou ser mãe era preciso de vez em quando dizer não aos filhos –, como se explica que de repente tenhamos de inventar algo para o que parece ter se rompido nessa maneira de transmitir? Como compreender o que acontece?" (LEBRUN, 2008). Como compreender a "lei da Palmada"? Mas, mesmo com a compreensão, não deixará a família de chafurdar na lama, na anarquia e na irrealidade do cotidiano da guerra pura (Virilio- Lotringer) em que são simplesmente álibis, não só os "freaks", os "raps", os "funks", os "caipiras", os "boêmios" (jovens e adultos atolados no lodo da maturidade impossível), mas também os modernos, ("normalóides", "babacas", "caretas", "snobes" ou "comuns") e os pós-modernos (os rockers, heads bangeres, new romantics, skin heads, hip-hops, new wavers, surfers, punks, darks, yuppies etc.), todos figuras de um universo caótico e perverso, polifônico e polissêmico não mais neurótico, mas esquizofrênico... Cartas de baralho.
"A POLÍCIA DA FAMÍLIA"
Uma resposta, ou melhor, uma competente compreensão parcial do fenômeno de negação da família emana de "A polícia da família", de Jacques Donzelot, que Gilles Deleuze, no Prefácio, agradando a todos os movimentos sociais, nos diz: "Ele nos mostra o nascimento do Hibrido moderno: de que modo os desejos e os poderes, as novas exigências de controle, mas também as novas capacidades de resistência e de liberação vão se organizar e se confrontar nessas linhas". Linhas que Deleuze indica no decorrer do Prefácio. A saber, resumindo: 1ª linha: século XVIII, "uma linha baixa: uma linha de crítica ou de ataque contra as nutrizes e criadagem. (...)" (Prefácio). Esclarecendo: "o recurso a nutrizes do campo", observa Donzelot, "para cuidar de crianças constituía um hábito dominante na população das cidades. As mulheres aderiam a esse hábito porque eram muito ocupadas em seu trabalho (esposas de comerciantes e de artesãos) ou porque eram suficientemente ricas para evitarem o fardo da amamentação" (DONZELOT, 2001). Mas que "a ausência de contato entre a nutriz e os pais a não ser através de intermediários obscuros (agenciadores e agenciadoras) faziam da colocação das crianças aos cuidados de uma nutriz, a prática freqüente de um abandono disfarçado ou de manobras suspeitas" (DONZELOT, 2001). O fato é que, concluindo, diz Donzelot: "Os ricos podiam se beneficiar da exclusividade de uma nutriz, mas raramente da sua bondade", e assim, "os médicos descobrem, bruscamente, a explicação de muitas taras que afetavam as crianças ricas, no comportamento das nutrizes" (DONZELOT, 2001) e, de uma forma geral, da criadagem; a seguir, mais uma linha, diz Deleuze: 2ª linha: na história da sociedade moderna, com a afirmação do controle social sobre as atividades antes relegadas aos indivíduos ou às suas famílias, "a família tende a se destacar de seu enquadramento doméstico, mas também os valores conjugais tendem a se liberar dos valores propriamente familiares, assumindo uma certa autonomia" (Prefácio); e nasce o social. E "o social se centrará em torno da conjugalidade, sua aprendizagem, seu exercício e seus deveres, mas do que na família, seu caráter inato, seus deveres" (Prefácio); como conseqüência, entra em devir o papel do homem e o papel da mulher e 3ª linha: "a família tende a se desengajar da autoridade paterna e marital do chefe de família. O divórcio, o desenvolvimento do aborto das mulheres casadas, a possibilidade de perda do poder paterno, são os pontos mais notáveis dessa linha. (...)" (Prefácio) com todas as conseqüências objetivas e subjetivas, e, neste sentido observa Deleuze: "Mais profundamente, porém, o que fica comprometido é a subjetividade que a família encontrava em seu "chefe" responsável, capaz de governá-la, e a objetividade, que ela obtinha de toda uma rede de dependências e complementaridades que a tornavam governável" (Prefácio); e, principalmente, a 4ª linha: que operam "uma nova aliança entre a medicina (principalmente a psiquiatria ) e o Estado" (Prefácio) que se tornam conjuntamente higiênicas e que se impõem sob a "ação de fatores diversos (desenvolvimento da escola obrigatória, regime do soldado, surgimento dos valores conjugais, que dá ênfase a descendência, controle das populações, etc.)...". (Prefácio). E a medicina, evidentemente, manterá seu "caráter liberal privado (contrato) enquanto o Estado intervém necessariamente por meio de ações públicas e estatutárias (tutela)" (Prefácio). Portanto, "as núpcias entre a medicina e o Estado tomam andamento diferente, não somente em função da política comum que seguem (eugenismo, malthusianismo, planejamento familiar etc.), mas de acordo com a natureza do Estado que supostamente a implementa" (Prefácio); e por fim, uma linha a mais, 5ª linha: "a da psicanálise" (e atualmente a da psicologia, uma 6ª Linha?), que, segundo Donzelot, diz Deleuze: "se estabeleceu muito rapidamente num meio híbrido de público e privado" (Prefácio). E tudo se passa segundo Deleuze, "como se as relações Público-Privado, Estado-Família, Direito-Medicina etc., tivessem ficado muito tempo sob um regime padrão, isto é, de lei...". E conclui: "Mas "o" social nasce com um regime de flutuação" (eu diria, um regime de dilemas), "onde as normas substituem a lei, os mecanismos reguladores e corretivos substituem o padrão" (Prefácio). E é assim que, desde o final do século XIX conhecemos (e que no início do século XXI vemos como se desenvolve no vácuo, isto é, depois de Marx, tal qual ocorria com a economia política, antes de Marx) as conseqüências do desenvolvimento capitalista e liberal, e neste, o século XIX, assistimos que a expansão da função gerencial e o crescimento da burocracia criaram, sob a batuta Médica e Jurídica, o social como um novo campo de conhecimento, e todas as linhas do trabalho de Donzelot apontam para o que sabemos (no suor e na vida, no sangue e nos nervos, na mente e no coração) que implicou nas palavras de Christopher Lasch, na "destruição de valores importantes relacionados à história da família" (LASCH, 1991), e, principalmente, "a deterioração dos cuidados da criança e dos jovens, e a exigência de se fazer alguma coisa para detê-la" (LASCH, 1991) Mas o fato é que [século XX (final)-XXI (início)] "a indiferença ante as necessidades das crianças e dos jovens (apesar de paparicados) converteu-se em uma das características predominante de uma sociedade que vive para o momento, define o consumo de mercadorias como a forma mais elevada de satisfação pessoal e gasta os recursos existentes como criminosa negligência em relação ao futuro"’ (LASCH, 1991), e faz do "grau zero" do sexo (Baudrillard), a forma predominante de sexualidade e de transcendência individual. E assim, assistimos a um estranho jogo mortal. "Jogo de eqüifinalidade de todas as tendências, dos efeitos de verdade, da circulação das perguntas e das respostas, etc. Estamos com isso inaugurando uma forma coletiva de existência irônica que, em sua extrema sabedoria, não se interroga mais sobre as próprias bases e aceita apenas assistir ao espetáculo de sua extinção" (BAUDRILLARD, 1996). Portanto, a resposta de Lebrun, ou melhor, sua compreensão e problematização me parecem extremamente mais promissora, diretamente, para o caso do presente trabalho, que se liga embrionariamente a questões de Direito de Família, e, que, portanto, serve de roteiro para guiar, aqui, preliminarmente, nossa reflexão que de forma mais cuidadosa, minuciosa e profunda desenvolve-se no "Manual Crítico do Direito das Famílias".