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A desordem do discurso jurídico.

Reflexões intempestivas

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Agenda 22/01/2012 às 05:50

DIGNIDADE VERSUS IGUALDADE?

Trata-se, portanto, de uma confrontação tetê-à-tête do Art. 1º, III, com o Art. 5º, I, da CF/1988. Em outras palavras, entre um "Fundamento" ("III – a dignidade da pessoa humana") e um "Direito e Dever Individual e Coletivo" ("I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição"). O que liga os dois dispositivos é a palavra pessoa que, strito senso, juridicamente significa ser ao qual se atribuem direitos e obrigações. A questão é saber, qual o fundamento de tais direitos e de tais obrigações? O que já é outra questão, e não cabe aqui. Apenas o pressupomos. Mas, evidentemente, nem a liberdade, nem a igualdade, são os termos que o fundamento fundamenta, mas a soberania, sede da razão e da virtude cívica. Mesmo porque, Lebrum "pensa a coisa da seguinte maneira": começa com uma indagação, "Mas o que é a humanidade?", porque no fundo "a questão que se coloca é esta", diz ele. Exatamente! Em outras palavras: "Há alguma coisa que atesta, que especifica, que seria particular ao ser humano? Parece que sim". Este é, por exemplo, o entendimento de Spinoza, uma vida humana é, segundo ele, "uma vida que não se define pela circulação do sangue e outras funções comuns a todos os animais, mas, antes de tudo, pela verdadeira vida da alma, pela razão e pela virtude" (SPINOZA, s/d). Há, por exemplo, o fato, assinalado por Lebrun, de que "somos os únicos animais que utilizam um sistema simbólico tão aperfeiçoado como a linguagem" (LEBRUN, 2008), que constitui, justamente, o seu principal meio, o mais efetivo, o mais expressivo, o mais significativo meio de comunicação e de ação comunicativa (Habermas). E é óbvio, isso tem um preço, e, segundo Lebrun, um preço muito alto. A necessidade de comunicação tornou-se tão complexa e sofisticada, que temos muita dificuldade de dizer e de saber, o que queremos e o que podemos esperar. É que, nas palavras de Erich Fromm: "O homem é o único animal que pode aborrecer-se, que pode ficar descontente, que pode sentir-se expulso do paraíso" (FROMM, 1983, p.44). E assim é por que "tendo consciência de si mesmo, percebe sua impotência e as limitações de sua existência" (FROMM, 1983, p. 44), ao visualizar seu próprio fim, a morte, e isso angustia. E é assim que ele tem que prestar contas de si a si mesmo, bem como do significado de sua existência, do sentido que deve dar-se ou de um desejo que o justifique. Tal como retrata o poema de Master Eckhart:

Ser eu um homem,

Isso compartilho com outros homens.

Ser eu capaz de ver e ouvir,

É o que também fazem todos os animais.

Mas eu ser eu é apenas meu,

Isso pertence a mim

E a mais ninguém;

A nenhum outro homem

Nem a anjo nem a Deus –

Exceto na medida em que

Sou idêntico a Ele.

E na medida da concepção de que "sou idêntico a Ele" desenvolve-se diante de um espelho um inestimável e profundo narcisismo, tão desvairado quanto religioso, estranho quanto alucinado, cínico quanto devoto que guia o processo capitalista de individualização ultraliberal fundamentado na instantaneidade e na corporeidade. Do final do século XX até hoje, quase 12 anos já vividos no século XXI, vivemos, na fórmula devida a Christopher Lasch em 1979, a "era do narcisismo". Idéia que recebeu seu eco mais notável em "A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo" de Gilles Lipovetsky, que diz: "O narcisismo surge a partir individualização ultraliberal da deserção generalizada dos valores e finalidades sociais, desencadeadas pelo processo de personalização. A desafeição aos grandes sistemas de sentidos e o hiperinvestimento no Eu são paralelos: (...) Tudo concorre à promoção de puro individualismo, também chamado ‘psi’, desembaraçado dos enquadramentos de massa e que tende à valorização generalizada do sujeito" (LIPOVETSKI, 1980, apud LE RIDER, 1983). E como disse, fundamentado na individualização cor-de-rosa e ultraliberal do social, então, como não observar, todas as pequenas manifestações individuais que assumem pela expansão da promiscuidade e da permissividade social cada vez mais valores coletivos: o culto do corpo, a obsessão pelo sexo culminando no sexo pelo sexo, a busca das drogas legais e ilegais, a religiosidade de auto-ajuda, a "culinária fusion", a egolatria, o engajamento tribal, a barbárie etc. Por quê? Uma boa resposta colho de Carmen Da Poian. Diz ela: "Vivemos num mundo desencantado e experimentamos atualmente o mal-estar nascido dos vazios provocados pela ausência de Deus, da fé e de lei", e, por outro lado, continua ela: "As noções de paternidade e de maternidade encontram-se em crise, ocasionando um mal-estar social, psíquico e biológico provocado pela falta de contornos e limites, o que ocasiona a força da violência pulsional. O estoque identificatório de que o sujeito atual dispõe é quase nenhum" (DA POIAN, 2001). Conseqüentemente, assistimos a proliferação de grupos definidos como minoritários e marginais na busca de direitos fundamentados ideologicamente na igualdade obscura dos (in)diferentes, na liberdade absurda da (in)distinção, e na dignidade (in)apreciável de quem avança para a "casa oito" (Malba Tahan), tal como o peão no jogo de xadrez. Mas há problemas ai. Muitos! "Há, portanto", assinala Lebrun, "uma perda de saber imediatamente o que é preciso fazer, como sabe o animal que se refere a um instinto". E conclui: "O ser humano não pode confiar no seu instinto" (LEBRUN, 2008, p.146), e essa debilidade biológica é sua força: a ausência relativa de uma regulamentação instintiva do processo de adaptação ao mundo que o rodeia. Com efeito, podemos dizer como Fromm, que: "O aparecimento do homem pode ser definido como tendo ocorrido no ponto do processo da evolução em que a adaptação instintiva atingiu seu mínimo. Ele aparece, porém, com novas qualidades que o diferenciam do animal: sua consciência de si mesmo como entidade independente, sua capacidade de lembrar o passado, de visualizar o futuro e de indicar objetos e atos por meio de símbolos; sua razão para conceder e compreender o mundo; e sua imaginação, graças à qual ele alcança bem além do limite de seus sentidos" (FROMM, 1983). Mas para tudo é preciso um basta, um freio, um limite, uma ordem. Há as sociedades humanas, diz Lebrun, e a personalidade humana e individual é determinada pelas particularidades da existência humana, comuns a todos os homens, portanto, (e já entramos na esfera do direito), observa com primor Umberto Eco, em "Os limites da interpretação": "temos concepções universais acerca do constrangimento: não se deseja que alguém nos impeça de falar, ver, ouvir, dormir, ingurgitar ou expelir, ir onde quisermos; sofremos se alguém nos amarra ou mantém-nos segregados, nos bate, fere ou mata, nos sujeita a torturas físicas ou psíquicas que diminuam ou anulem nossas capacidades de pensar" (ECO, 2000, apud, VALADÃO, 2008). Em outras palavras, isso quer dizer que, diz Lebrun, "todas as sociedades humanas se organizam em torno de interdições, de proibições fundamentais" (LEBRUN, 2008) para que os indivíduos não extrapolem o limites na busca de realização de seus interesses, desejos, paixões e gozos egoístas. "A proibição antropofágica, a proibição do assassinato, a proibição do incesto" (LEBRUN, 2008). Há sempre práticas, costumes, coisas permitidas, coisas toleradas, coisas proibidas. Sempre.


ORDEM DA PERDA DE GOZO?

"Portanto", diz Lebrun, há sempre "algo que organiza uma perda de gozo sempre necessária, sempre transmitida como necessária" (LEBRUN, 2008), em qualquer esfera da vida social. A proibição do incesto, por exemplo, atinge direta e particularmente o desenvolvimento e a organização familiar. Se quiserem, aos pais, irmãos, tios etc. Ora, a família, e nela os pais etc., "são o primeiro outro que cerca uma criança, que vão ensiná-las aos poucos (...) a encontrar seu lugar de adulto numa sociedade, como homem ou como mulher". Primeiro outro mais fundamental que cerca a uma criança, que vai ensiná-la aos poucos "a encontrar seu lugar de adulto numa sociedade" (LEBRUN, 2008). Inegavelmente, uma criança, qualquer criança, toda criança, precisará para participar da espécie humana, de certo modo, reapropriar-se progressivamente, subjetivar, fazer suas as leis da sociedade a que pertence. Sim, a lei interdita, separa, rejeita, exclui o que se queira, mas o faz por obediência, digamos, a um princípio de solidariedade, a um princípio de hospitalidade, ou seja, diz Lebrun: "o gozo completo deve ser perdido, para que em seu lugar se instale o que é nossa característica humana fundamental: ser capaz de falar" (LEBRUN, 2008). Mas o que aconteceu? Nietzsche anunciou: "Deus está morto!" O que isso significa? Que na história da humanidade, em todas as civilizações, em todas as sociedades, havia, diz Lebrun, "o lugar de Deus". Mesmo que fosse um não lugar (o céu, por exemplo), não era simplesmente um lugar vazio, mas era um lugar sagrado. E como observa Lebrun: "Todos sabiam que havia o lugar de Deus e, que a partir desse lugar, a legitimidade de ocupar uma série de lugares que de perto ou de longe, representavam esse lugar diferenciado, o do Chefe, o do Rei, do Presidente, do Mestre, do Pai, ou seja, seja lá o que for" (LEBRUN, 2008) fundamentado num "vínculo sagrado", logo, sujeito a ser monopolizado pela religião, tornando-se mais opressivo. É preciso observar, portanto, que foi a "liberdade natural" [liberdade do homem no "Direito Natural" (Spinoza)] que implicou no que Erick Fromm chama de "Medo a liberdade", ou seja, a necessidade de sentimentos de segurança através da submissão à autoridade, uma vez que a liberdade, ao separá-lo emocionalmente dos outros, provoca dor, solidão e medo. E assim, o medo a liberdade constituí o verdadeiro topos natural do poder onde se instauram práticas de liberdade política, ética, jurídica, religiosa etc. Podemos dizer como Spinoza em seu "Tratado político": "É preciso não esquecer que dependemos do poder de Deus" (acrescento do Rei, do Presidente, do Chefe, do Mestre, do Pai etc.,) "como a argila das mãos do oleiro, o qual tira da mesma matéria, vasos destinados ao ornamento e vasos destinados ao uso comum" (SPINOZA, s/d). Mas também, é preciso não esquecer que assim como a invenção do avião teve como resultado a invenção do acidente aéreo, a invenção do "lugar excepcional" que era o de Deus, do Rei, do Presidente, do Mestre, do Pai etc., implicou em opressão política, ética, jurídica, etc., e principalmente, a ainda atual e presente opressão religiosa, onde a estupidez humana parece não ter limites. Razão pela qual, notícia do outro mundo, contra a opressão e estupidez religiosa a morte de Deus foi anunciada, e, assim progressivamente, continua Lebrun, "esse modelo de funcionamento de um tipo de vínculo social foi sendo atacado e questionado". E foi assim que a "Modernidade rompeu com a idéia de que há uma heteronomia, uma transcendência religiosa" (LEBRUN, 2008). Ao contrário, afirmava que "nós é que vamos assumir nossos problemas". E isso mediante uma série de forças que se revelaram congruentes e auto-consistentes, que agiram no mesmo sentido. O discurso da Ciência, e, depois, a Democracia virá ocupar o lugar de Deus, justamente, e por representação o Povo (que se quer "a voz de Deus") que se quer se colocar nele, mas, se trata, fundamentalmente, de um lugar vazio, que se tornou lugar do Estado, e que tem que ser laico. E ainda hoje, por continuar sendo um lugar vazio, "há cada vez mais a idéia, espontaneamente partilhada por cada um, de que esse lugar diferente dos demais, esse lugar excepcional que era o de Deus, do Rei, do Presidente, do Chefe, do Mestre, é um lugar que não tem mais necessidade de existir" (LEBRUN, 2008). E assim, conclui Lebrun, "alguma coisa se completou". Sim, as referências se perderam! Vivemos agora em uma Sociedade que trocou "a ordem e a segurança pela busca do prazer e da liberdade individuais", em que "o indivíduo e sua autonomia valem mais do que a comunidade que o abriga e o patrimônio cultural herdado" (DA POIAN, 2001). Vivemos em uma sociedade sem herança, e presenciamos angustiados, "indivíduos órfãos de ideais e de verdades simbólicas que correm simplesmente atrás da sedução das imagens que lhes são propostas de inúmeros modos", e que, "tentam arrumar uma identidade que lhes permita viver os instantes, identidades adotadas sem firmeza alguma (movidos por um desejo histérico, desvairado e vazio), pois o mundo de hoje exige volatilidade, mudanças, trocas, descartabilidade" (e é preciso viver o momento no instante antes que ele se consuma) (Cf. DA POIAN, 2001). Ora, diz Richard Sennett (1999): "Como podemos decidir o que tem valor duradouro em nós, em uma sociedade impaciente que se concentra no momento imediato?". E assim, "provocado por essas constantes mudanças, como suportar e conviver com os vazios de sentido? Presentificam-se cada vez mais sensações de descrença, fracasso, despersonalização, enlouquecimento, morte psíquica e mesmo física" (DA POIAN, 2001), que, paradoxalmente, levam milhões de pessoas (com consciência infeliz anêmica) para as igrejas. E o boom evangélico é inevitável. Por quê? Diz Paul Israel (1977), uma "desumanização do sujeito", "não no sentido filosófico e moral, mas metapsicológico. Há uma desagregação do funcionamento mental, uma falha no processo de psiquização" (Cf. DA POIAN, 2001), e a religião como ópio do povo (Marx), torna-se um estranho vício. Busca-se preencher assim com qualquer simulacro o lugar de Deus, do Rei, do Chefe, do Presidente, do Mestre, do Pai deixados vazios. Mas, inutilmente, a coisa já se completou.

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COMPLEMENTO VAZIO

Como vimos, Lebrun diagnostica a existência e a promoção de "uma mutação do vínculo social", e percebe a gênese deste processo na "morte de Deus", ou seja, no não mais existente (mas não inexistente, porque existente em simulacro) lugar de Deus – topos natural do poder do "Pai", do "Mestre", do "Chefe", do "Rei", do "Presidente", da "lei" etc. De qualquer autoridade. Nestes termos Carmen Da Poian é enfática: "Vivemos em um mundo desencantado e experimentamos atualmente o mal-estar nascido dos vazios provocados pela ausência de Deus, de fé e de lei" (DA POIAN, 2001). E a verdade é que o lugar de Deus etc. se trata de um lugar deixado assim, fundamentalmente vazio que aos poucos se esqueceu de que é mesmo um lugar vazio, e que Adam Smith colocou "a mão invisível do mercado" (para os evangélicos a própria mão invisível de Deus) e que para o liberalismo (como simulação ou dissimulação) é a Soberania, isto é, "nós é que decidimos", nós, o Povo do qual "o poder emana" através de "representantes eleitos" (Art.1º, Parágrafo único da CF/1988) pelo poder do capital financeiro nas eleições. Ai!Ai! E chamou isso de "Estado democrático de direito" (Art. 1º, caput) – determinações constitucionais da qual "estranhamente" (mas não paradoxalmente) estão fora o Poder Judiciário, pois, além de legislar etc., as regras para ingresso na Magistratura é absolutamente diferente de uma "representação eleitoral" (realiza-se por destino e/ou acaso), e, assim, injustificadamente, nega o princípio da igualdade et alii consolidando privilégios estamentais pois que se reserva exclusivamente para advogados. Incongruência e injustiça social são as palavras que se apresentam para representar tal exigência (já que uma das razões sacadas para justificar o ativismo judiciário é o princípio da igualdade) que, como diz Giovanni Sartori, "quando se busca a igualdade, as diferenças de poder, riqueza, status e oportunidades na vida, cuja existência é vista como "natural", deixam de ser diferenças rotineiramente aceitas" (SARTORI, 1994). Assim sendo, continua Sartori: "A igualdade simboliza e estimula a revolta do homem contra o destino e o acaso, contra a disparidade fortuita, o privilégio cristalizado e o poder injusto" (SARTORI, 1994). Compreensão que faltou (como veremos de forma específica e em outra ocasião), por exemplo, ao professor Celso Antônio Bandeira de Mello em sua reflexão sobre a relatividade do "Conteúdo jurídico do princípio da igualdade". E como agora somos "autônomos", "soberanos", "povo", "gozamos de igualdade jurídica" [que irônica e cinicamente reduz-se mais e mais a uma "igualdade de gêneros" (sic!)] na base irrefutável da desigualdade de fato e de direito etc., diz Lebrun: "Temos um projeto, uma orientação de imanência, não há mais transcendência". E viva a Igualdade! Certo! Mas há problemas ai. Alerta Lebrun observando: "Porque também não há mais transcendência, tampouco posição de exterioridade". E com isso, conclui Lebrun: "(...) há uma ruptura de solidariedade" (eu diria e também de hospitalidade, de representação, de compreensão, de identidade, de memória, de utopia etc.). "Pois com a prescrição da perda de gozo necessária à humanidade vê-se, de certo modo, negada, questionada, julgada como devendo não mais existir" (Cf. LEBRUN, 2008). E por quê? Porque hoje, continua Lebrun, "devemos aproveitar o que se apresenta, portanto, não mais se submeter a essa perda de gozo, mas sim banir de nosso trajeto essa necessidade de uma perda". E conclui: "Ai está algo que faz a cabeça de todo mundo". E que foi genialmente proposto por Foucault, Deleuze et alli. Somos neo-utilitaristas com visão de toupeira? Isso é outra questão, não cabe aqui. Mas, as conseqüências? Para Lebrun existem "a montante e a jusante". A gosto ou a desgosto. Mas isso não é tudo. Lembra-nos Jacques Leclercq: "Comer bem, alojar-se bem, vestir bem, cuidar do conforto em tudo, é uma preocupação dominante, senão a única da existência", (LECLERCQ, 1967), a que devemos acrescentar gozar bem, transar muito, qualquer forma de amar vale a pena etc., "centrando assim o homem em si mesmo e no que ele tem de menos propriamente humano" (LECLERCQ, 1967, p. 326), e que por isso (e que parece ser a única coisa que importa) atende imediatamente a necessidade dominante do gozo e encaixa-se muito bem com os interesses da "mão invisível do Mercado". Concluindo radicalmente: "Crianças, jovens educados nessa atmosfera tornam-se incapazes de perceber os valores espirituais. Não são maus, em certo sentido do termo; simplesmente não são humanos; sua vida desenvolve-se num plano mais animal do que humano. Seu ideal é do "porco satisfeito" e, mesmo que não sofram com seu estado, pelo menos enquanto são jovens e de boa saúde, ignoram, contudo, a alegria e a altivez do homem" (LECLERCQ, 1967). A questão que se coloca é: como essas crianças e jovens são cotidianamente educados? Desafiando qualquer autoridade, ligados em e seduzidos por milhares de cenas de violência e sexo por dia na frente à televisão ou ao vídeo-game etc., como não desenvolver comportamentos e atitudes agressivas, e como impedir que sejam conduzidas a dobrarem-se sob os efeitos de dessensibilização e do medo? Neste sentido, o Centro de Controle das Doenças, dos EUA, depois de analisarem milhares de pesquisas dos efeitos da violência na televisão sobre os telespectadores, declarou que a violência na televisão é um mal para a saúde pública, e, relacionou a mídia, juntamente com outros fatores sociais e psicológicos, como um fator de suma importância que contribui para a violência. Os estudiosos do fenômeno da violência, Ulla Carlsson e Cecília Von Feilitzen, afirmaram que: "Ao terminar o primeiro Grau, uma criança norte-americana comum terá visto mais de 8 mil assassinatos e mais de 100 mil outros atos de violência" (CARLSSON e FEILITZEN, 1999 apud BALESTRERI, 2003). Neste sentido, alerta-nos Gerbner: "Um estudo feito nos EUA indica que os programas norte-americanos exportados para outros países contêm mais violência (cerca de 70% mais) que os programas transmitidos nos EUA" (Cf. GERBNER, 1999, apud, BALESTRERI, 2003). E no caso brasileiro (além desses importados norte-americanos), "quando as mortes e as injustiças não estão nos filmes e novelas, estão, a toda hora, no jornal das oito, por exemplo, para incorporarem-se ao universo de "normalidade" de nossos filhos e filhas, alunos e alunas" (Cf. BALESTRERI, 2003). Balestreri tem razão, estamos acostumados com as perversões, com a crueldade de todos os tipos estampadas nos jornais, revista, invadindo nossa sala pela tela da TV, "distraindo-nos" com seus filmes e seus videogames criminosos porque a sociedade brasileira é doente, corrupta, perversa, cruel, e são múltiplos os seus vetores ditos "culturais" que na verdade apenas advogam e banalizam a violência. Por que ainda estranhamos as gangues? Por que ainda estranhamos o crescimento do império das drogas? Fala-se muito das cenas de violência na TV, como se não bastasse a TV liga-se, não raramente, um videogame. E assim, a violência parece não preocupar os jovens que treinados em vídeos-game se sente preparado para enfrentar a ameaça. Os videojogos de maior difusão oferecem campos de batalha onde o jogador é obrigado a atirar primeiro e tornar a atirar depois, sem nunca hesitar, contra tudo que se move. Ou seja, nota Galeano: "Os vídeos-jogo falam uma linguagem que inclui o matraquear de metralhadoras, música terrífica, gritos de agonia e ordens categóricas: Finish him! (acaba com eles), Beat’em up (Bate neles), Shot’em up (Atira neles)" (GALEANO, 2003). Quanto mais os adversários matam o jogador, mais se aproximam do triunfo. Valem mais pontos os goles certeiros, golpes que arrancam a cabeça do inimigo pela raiz ou lhe arrancam do peito o coração sangrento ou lhe arrebentam o crânio em mil pedaços. E aí o horror se completa. Observa Balestressi que há doença social para todos os gostos: game de trânsito onde vence quem dirige sobre as calçadas e mata mais gente da forma mais chocante ("Atropele, mate e não socorra"), games de estriar o inimigo (...), games de assaltar e estuprar as vítimas, games com todas as formas de guerra e com todas as armas imagináveis, games ensinando a dominar cidades através da corrupção. E indaga: "O que acontecerá com quem apertar os botões milhares de vezes, tomando milhares de vezes tal decisão virtual? Em especial, o que acontecerá aos muitos que vem de estruturas familiares destroçadas e de escolas cujo impacto ético é nulo ou insignificante?" (Cf. BALESTRERI, 2003). Como conseqüência, "qual o futuro para o ódio hoje?", propõe Lebrun. E prossegue, longamente, perseguindo a resposta: "Qual o futuro para o ódio, se não reconhecemos mais na diferença de lugar uma maneira de achar uma saída para nossos conflitos? E dou um exemplo disso com algo que acontece na Europa, na Bélgica e na França (no resto do mundo, em todo mundo). As estatísticas são claras: 60% das crianças têm televisão em seu quarto" (LEBRUN, 2008). E atualmente também um videogame ou computador! Esclareço com Lebrun: "ter uma televisão (videogame ou um computador) no quarto para cada um dos filhos é um modo extremamente eficaz de evitar o conflito no seio da família, de dia, de noite, para saber que programa, site ou link se vai escolher. Assim, cada um pode gozar tranqüilo, sozinho. Cada um pode assumir seu Robinson, e tanto melhor quanto é reconhecido por todos os outros que vêem o mesmo programa" (ou acesa os mesmos links de um site, jogando os mesmos jogos pela na internet etc.) "que ele fora do quarto". E deixamos as crianças assim, durante todo esse período dos 2 aos 15 anos, sei lá. Durante uns 15 anos elas são deixadas em seu gozo privado", fazendo sabe lá Deus o que num chat, numa rede social, num site pornô, ou seja, podendo sempre, nas ilusões e seduções geradas nos contatos on line, (contatos impessoal e líquido) evitar o confrontamento" (com o real, o concreto,) "com o outro para saber como, afinal, vão deixá-las seguir seu caminho. E isso num momento durante o qual... justamente durante a infância e a adolescência... alguma coisa deveria ajudá-las a organizar a regulação de sua pulsão mortífera, destruidora, assim que deparam com o outro. É que, num primeiro momento, é muito lógico... Lá onde seria preciso um trabalho de cultura para tentar renunciar, nem que seja um pouco, a essa realização mortífera, geralmente a criança se vê hoje, num tal contexto, entregue a si mesma, abandonada. Literalmente abandonada a seu universo pessoal (Cf. LEBRUN, 2008). Em outras palavras: com a vida sitiada pela violência, o que ela apreendeu assim sozinha? Dificil dizer! Não só a Tv, os vídeos games, os traficantes de drogas etc., cercam os filhos de violência, mas também, vale lembrar, diz Balestreri, "um dos mais difundidos, dissimulados, e por isso mesmo, perigosos, vetores de banalização da violência: a música" (BALESTRERI, 2003). Mesmo porque, podemos conhecer a nossa psique por sua paisagem sonora, ou seja, fico com a proposta inspirada em Murray Schaffer, em "A afinação do mundo": "Que sons queremos preservar, encorajar, multiplicar?", pergunta Schaffer, e responde: "Quando soubermos responder a essa pergunta, os sons desagradáveis ou destrutivos predominarão a tal ponto que saberemos por que devemos eliminá-lo" (SCHAFFER, 2001). Mesmo porque, a meio caminho entre a ciência, a sociedade e as artes têm a acústica e a psico-acústica, e aprendemos as propriedades físicas do som e do modo pelo qual este é interpretado pelo cérebro humano. E sabemos que muitos estilos de músicas são vetores de banalização da violência. São drogas da pesada. Então, como dizer "não" as drogas? É o que diz um texto distribuído pela internet, chamado "Diga não as drogas". Ricardo B. Balestreri, numa conferência da Associação de Educação Católica do Brasil (AEC), em julho de 2001, na cidade de Curitiba, informou-nos da existência do texto da internet. Nele, disse Balestreri, o autor inventa, em geral com fino humor, um sujeito que se confessa usuário de drogas pesadas. Mas não é de substâncias psico-ativas que está falando. Fala de música. O suposto arrependido, ali, confessa ter entrado no mundo das drogas ao receber de presente o CD de uma famosa dupla sertaneja. Gostou , quando percebeu, estava em uma loja comprando um desses pagodes enlatados. Em seu último estágio, já estava consumido a "Equinha Pocotó", "Um tapinha não dói" e similares, e o que é pior, já estava dançando a "dança da garrafa" etc. E ainda estranhamos o crescimento do império das drogas culturais! E ainda estranhamos a violência nas escolas! E acredito que tenha ficado horrorizado com a sua permissividade, com o que estava fazendo quando viu a "dança da garrafa" etc., executada por menininhas de 6, 7 anos, em sumaríssimos trajes, domingo à tarde, em rede nacional, para as embevecidas famílias brasileiras? E agora todos se espantam com o aumento de pedofilia; que cinismo é esse? Evidentemente, se o suposto arrependido tivesse chegado ao rap, funk, e agora, o gospel etc., passando, necessariamente, é claro, pela Banda Calipso, Ivete Sangalo, e, de forma geral a chamada "música baiana" etc., o processo de bestialidade estaria completo. A dupla sertaneja, o funk e o gospel, sem dúvida, são as matrizes perversa da música brasileira. O problema, portanto, se constitui na inexistência de clínicas imaginárias de "limpeza" e "desintoxicação cultural". Como livrar-se, então, da influência das drogas musicais? E para completar este processo de bestialização da cultura brasileira, temos a televisão e sua política perversa de erotização e os BBBs. Como declarou o ator Pedro Cardoso, o "Agostinho" de "A Grande Família", TV Globo, em entrevista a ISTOÉ, 12 de agosto/ 2009: "o empresário que investe em comunicação de massa tem seus capatazes para exigir que as atrizes, muito mais que os atores, façam cenas aparentemente dentro da trama, mas que, na maioria das vezes são simples apêndices de nudez para vender a pornografia", ou, por que não dizer, promover o negócio extremamente lucrativo da prostituição. Como resistir a tal overdose? Seus bailes, suas baladas, seus trios elétricos, seus carnavais, seus bacanais? Como observou Kafka em seu diário: "Depois de certo ponto o retorno é impossível". Mesmo porque, o discurso jurídico deve perceber (e é isso que objetivo, aqui, chamar à atenção) que, atualmente, todas as práticas sexuais perversas (lícitas ou mesmo ilícitas) entre adultos consentâneos são agora autorizadas, uma vez que o Estado não se intrometa mais na intimidade dos cidadãos (por exemplo, CF/88: Art. 5º, VI, VII, IX, X etc.), logo, alerta-nos Roudinesco: "Hoje todo sujeito pode livremente ser praticante de swing, masturbador inveterado, sadomasoquista, incestuoso, coprófilo, coprófago, fetichista, prostituto, travesti, fanático religioso, adepto de tatuagens, dos backrooms, do piercing, dos fist-fucking, da flagelação ou de uma seita satânica, com a condição todavia de não exibir-se na praça pública, não violar as sepulturas, não ocultar cadáveres, não vender seu corpo e seus órgãos para associações com fins lucrativos, não ser antropófago e não maltratar o objeto de sua pulsão no caso de prática sexual com animais)" (ROUDINESCO, 2008). E a questão é sempre a seguinte: diante de tantos e tão variados vetores de violência (alguns de aparência tão angelicais) o que fazer, por exemplo, com a perda da autoridade familiar, e diante das dificuldades dos pais dizerem "Não" aos filhos, com as sugestões, os condicionamentos, as influencia, a educação dos sentidos que ela recebeu assim? O que fazer agora se todos os perversos não são mais vistos como perversos e desde criança não podem levar nem uma palmada? Porque agora são, alerta-nos Roudinesco, "perversos normalizados, autorizados, despenalizados, despsiquiatrizados que reproduzem por sua vez, em livros científicos, eróticos, pornográficos, psicanalíticos, sexológicos, o imenso relato dos prazeres, paixões, transgressões e vicíos elaborado por Sade pelos escritores ou especialistas em história da psicopatologia" ROUDINESCO, 2008). E como alerta Lebrun: "De tal modo que, quando tiver 16, 17, 18 anos, o que acontecerá por ocasião de um desgosto amoroso, um desgosto de estudante ou de profissão? Um desgosto, assinalo, que os pais com certeza não poderão evitar. Pois podem estar certos que isso acontecerá. Então, como diz uma frase que gosto muito de Samuel Backett, "há uma meio de falhar melhor". Mas é sempre de uma falha que se trata. E, assim, como se surpreender que adolescentes que durante 15 anos puderam escapar de todo trabalho sobre seu próprio mundo pulsional, de todo trabalho cultural para assumir e elaborar psiquicamente essa alteridade, como se surpreender que, quando um desgosto assim acontece (estou caricaturando, é claro), não encontrem nada melhor a fazer senão se jogar pela janela ou sair dando tiros ao acaso? Ou seja, regular a violência de uma maneira ainda mais violenta? (CF. LEBRUN, 2008). Concluindo: "Pois bem, são essas as questões que eu gostaria de deixar a fim de fazê-los compreender um pouco a mutação do vínculo social para o qual somos literalmente arrastados e que exige uma extrema vigilância para que tentemos, com o maior rigor possível, compreender do que se trata, para que possamos... é o que sempre se faz em medicina... começar com um bom diagnóstico que nos permita ver se há ou não um meio de encontrar respostas judiciosa a isso". (LEBRUN, 2008). E me parece que o STF tem fugido por algum interesse não confessado, talvez inconfessável, justamente, da busca de respostas judiciosas diante da profundidade do fosso que se abre na realidade, e, "sanciona" tudo por via das dúvidas.

Sobre a autora
Walter Aguiar Valadão

Professor universitário. Bacharel em História (UFES). Pós-Graduado "lato sensu" em Direito Público (UFES). Mestre em Direito Internacional pela UDE (Montevidéu, Uruguai). Editor dos Cadernos de Direito Processual do PPGD/UFES.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALADÃO, Walter Aguiar. A desordem do discurso jurídico.: Reflexões intempestivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3126, 22 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20902. Acesso em: 20 nov. 2024.

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