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Deserdação por falta de vínculo afetivo e de boa-fé familiar

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Agenda 08/02/2012 às 10:20

5.A ABERTURA E MOBILIDADE DO SISTEMA JURÍDICO HODIERNO

Por qualquer prisma que se analise a questão da possibilidade de deserdação dos herdeiros necessários por falta de vínculo afetivo e de boa-fé familiar, é preciso não descurar que, atualmente, o nosso sistema jurídico é aberto e móvel.

A expressão "sistema jurídico aberto", nas palavras de Rogério Ferraz Donnini [40], significa que é reconhecida a sua não plenitude ao se permitir a intromissão de elementos estranhos, além de não se recusar a incertezas de questões exteriores, enquanto a expressão "sistema jurídico móvel", como o próprio nome diz, significa que possui mobilidade, o que permite um progresso, um verdadeiro aperfeiçoamento pela aplicação e interpretação das cláusulas gerais. Esse sistema está, em verdade, recheado de cláusulas gerais, conceitos legais indeterminados, conceitos legais determinados pela função, além dos princípios gerais do direito, em constante interação (g.n.). É o que sucede com o Código Civil atual.

Por outras palavras, é necessário compreender que, a partir da Constituição Federal de 1988, houve uma ruptura com o sistema rígido [41] e fechado [42] (que outrora regia o Código Civil de 1916) [43], o qual era "impermeável às modificações econômicas e sociais, não tendo mais lugar na sociedade hodierna" [44].

A rigidez procura preservar a estabilidade da ordem constitucional e a segurança jurídica, ao passo que a plasticidade procura adaptá-la aos novos tempos e às novas demandas, sem que seja indispensável recorrer, a cada alteração da realidade, aos processos formais e dificultosos de reforma. [45]

Com razão, o magistrado paulista Jorge Tosta [46] anota que "é sensível a diferença entre os Códigos Civis de 1916 e de 2002 no que toca ao papel do juiz. A tendência dogmática, que marcou o início do século XX, realçava o império da lei como um dos postulados do Estado de Direito e reservava ao juiz o papel de simples intérprete da vontade do legislador. Essa tendência foi substituída no Código Civil de 2002 pela abertura e flexibilização de diversas normas jurídicas que remetem diretamente ao juiz a solução do caso concreto, seja por meio da concreção judicial de ‘conceitos vagos ou indeterminados’, seja por intermédio da incidência de normas cuja aplicação se faz por juízos de oportunidade".

Com efeito, o sistema de antanho não mais se justifica, o que levou Renan Lotufo [47] a afirmar que "o direito cria o seu mundo sobre o mundo dos fenômenos sociais". Tem razão o eminente desembargador, pois as normas do direito oitocentista não têm lugar na sociedade do Século XXI.

O método tradicional de interpretação jurídica – o subsuntivo, fundado na aplicação de regras – continua válido para a solução de boa quantidade de problemas, mas não é suficiente para o equacionamento de inúmeras situações envolvidas na interpretação constitucional. No Direito contemporâneo, mudou o papel do sistema normativo, do problema a ser resolvido e do intérprete. Para acudir às novas demandas, decorrentes da maior complexidade da vida moderna, foram identificadas, desenvolvidas ou aprofundadas categorias específicas, voltadas sobretudo para a interpretação constitucional, que incluem: os conceitos jurídicos indeterminados, a normatividade dos princípios, a colisão de direitos fundamentais, a ponderação e a argumentação (g.n.). Nesse ambiente, nem sempre será possível falar em resposta correta para os problemas jurídicos, mas sim em soluções argumentativamente racionais e plausíveis. [48]

Precisamente em decorrência da normatividade dos princípios [49] acima referida, pode-se asseverar que, havendo quebra de afetividade entre membros de um mesmo círculo familiar, autorizado está o testador a deserdar seus herdeiros necessários, pois, como dito, a afetividade é princípio do Direito das Famílias. Note-se que nem mesmo seria necessário se valer dos princípios de forma subsidiária, caso a deserdação não fosse prevista na lei [50], pois, sendo o sistema jurídico aberto e móvel, regras e princípios convivem lado a lado, formando um todo unitário e harmônico de elementos conjugados entre si.

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6.O PÓS-POSITIVISMO. AS NORMAS JURÍDICAS SÃO UM GÊNERO QUE COMPORTA DUAS GRANDES ESPÉCIES: AS REGRAS E OS PRINCÍPIOS

Um dos aspectos mais interessantes da discussão em torno do direito, nesses anos, é o fato de terem sido questionadas as fontes tradicionais das normas jurídicas, inclusive nos países continentais. Esse questionamento é acompanhado da importância cada vez maior dada às chamadas fontes extralegislativas (ou, até mesmo, extra-estatais). Um dos dogmas do positivismo jurídico em sentido estrito foi que a fonte principal de direito no Estado moderno fosse a lei, isto é, a norma presumidamente geral e abstrata posta por um órgão específica e exclusivamente competente, de acordo com a constituição. Um dos aspectos pelos quais se manifesta a crise do positivismo jurídico é a crescente consciência da emergência de outras fontes do direito, que minam o monopólio da produção jurídica detido pela lei – em uma sociedade em rápida transformação e intensamente conflituosa, como é a sociedade capitalista na atual fase de desenvolvimento. (...) De resto, não há nada de novo sob o sol: meio século atrás, falaríamos da revolta dos fatos contra as leis, da emergência de um "direito social" contra o direito do Estado. [51]

Com efeito, após longo processo evolutivo, consolidou-se na teoria do Direito a ideia de que as normas jurídicas são um gênero que comporta, em meio a outras classificações, duas grandes espécies: as regras e os princípios. (...) O reconhecimento da distinção qualitativa entre essas duas categorias e a atribuição de normatividade aos princípios são elementos essenciais do pensamento jurídico contemporâneo. Os princípios são a porta pela qual os valores passam do plano ético para o mundo jurídico. Em sua trajetória ascendente, os princípios deixaram de ser fonte secundária e subsidiária do Direito para serem alçados ao centro do sistema jurídico. De lá, irradiam-se por todo o ordenamento, influenciando a interpretação e aplicação das normas jurídicas em geral e permitindo a leitura moral do Direito [52]. É que se se pode fazer coisas com a regra, com os princípios se pode fazer muito mais. [53] (t.n.)

Por isso se diz que os princípios são mandados de otimização: devem ser realizados na maior intensidade possível, à vista dos demais elementos jurídicos e fáticos presentes na hipótese. Daí decorre que os direitos neles fundados são direitos prima facie – isto é, poderão ser exercidos em princípio e na medida do possível [54]. Aliás, entre regras e princípios constitucionais não há hierarquia jurídica, como decorrência do princípio instrumental da unidade da Constituição.

Logo, não há empecilho algum para que se opere a deserdação de herdeiros necessários, por quebra de afetividade, mesmo não sendo hipótese prevista no Código Civil, pois, como demonstrado, os princípios têm inegavelmente conteúdo normativo. Ademais, o Poder Judiciário não pode se fechar às transformações sociais, que, pela sua própria dinâmica, muitas vezes se antecipam às modificações legislativas. O intérprete deve, enfim, buscar a justiça, ainda quando não a encontre na lei!

Entretanto, pensamos que caberá ao juiz, diante do caso concreto, avaliar se a aplicação do princípio da afetividade a autorizar a deserdação se dará na busca do justo, do equânime, bem como se realmente teria havido um grave rompimento do vínculo afetivo por período de tempo suficiente para tornar o testador e o herdeiro deserdado pessoas praticamente estranhas uma à outra.


7.O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE APLICADO AO CAMPO SUCESSÓRIO

Trata-se a família de um núcleo social primário, tendo havido consideráveis mudanças nas relações familiares, passando a dominar novos conceitos em detrimento de valores antigos. Nesta visão, tem mais relevância o sentimento afetivo [55], não mais sendo suficientes meros laços de sangue para se concluir pela existência de uma entidade familiar. [56]

A Constituição elenca um rol imenso de direitos individuais e sociais, como forma de garantir a dignidade de todos. Isso nada mais é do que o compromisso de assegurar afeto: o primeiro obrigado a assegurar o afeto por seus cidadãos é o próprio Estado [57]. Mesmo que a Constituição tenha enlaçado o afeto no âmbito de sua proteção, a palavra afeto não está no texto constitucional [58]. Ao serem reconhecidas como entidade familiar merecedora da tutela jurídica as uniões estáveis, que se constituem sem o selo do casamento, tal significa que a afetividade, que une e enlaça duas pessoas, adquiriu reconhecimento e inserção no sistema jurídico. Houve a constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitário, com maior espaço para o afeto e a realização individual. [59] (g.o.)

Nesse sentido, Paulo Luiz Netto Lôbo [60], discorrendo sobre o princípio da afetividade, escreve:

"A afetividade como princípio jurídico fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico. Recebeu grande impulso dos valores consagrados na Constituição de 1988 e resultou da evolução da família brasileira nas últimas décadas do século XX, refletindo-se na doutrina jurídica e na jurisprudência dos tribunais. O princípio da afetividade especializa, no âmbito familiar, os princípios constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da solidariedade (art. 3º, I), e entrelaça-se com os princípios da convivência familiar e da igualdade entre cônjuges, companheiros e filhos, que ressaltam a natureza cultural e não exclusivamente biológica da família. A evolução da família ‘expressa a passagem do fato natural da consanguinidade para o fato cultural da afinidade’ (este no sentido de afetividade). A família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida."

Com efeito, o princípio jurídico da afetividade e o sentimento de solidariedade recíproca não podem ser perturbados pela preponderância de interesses patrimoniais. É o respeito à pessoa humana, nas relações familiares, que deve prevalecer [61]. Por isso, reportando-nos ao caso narrado na introdução deste ensaio, entendemos que não agiu de boa-fé a filha que ajuizou ação investigatória de paternidade com o claro intuito de, uma vez tendo sido reconhecida a filiação judicialmente, assegurar o seu quinhão hereditário. Obviamente, a boa-fé constante do Código Civil de 2002 não é apenas e tão somente a boa-fé contratual e dos negócios jurídicos, mas também a boa-fé familiar, eis que um pai não poderá agir de má-fé em relação aos seus filhos, nem vice-versa. Ferir-se-ia fundamentalmente a eticidade [62], que é um dos três princípios norteadores do Código Reale, ao lado da socialidade e da operabilidade. [63]

Outrossim, a conduta da mencionada filha configuraria até mesmo um abuso de direito [64], a encontrar óbice no disposto no artigo 187 do Código Civil. [65]

Sendo assim, acreditamos que o juiz, na hipótese sub examine, não deveria prestigiar interesses meramente econômicos da herdeira em detrimento dos laços afetivos que jamais existiram entre ela e o seu genitor. Mutatis mutandis, seria o mesmo que conceder remuneração a alguém que não tivesse trabalhado, pois a filha (autora da ação de investigação de paternidade) estaria concorrendo à herança juntamente com os demais coerdeiros que, ao longo de toda uma vida, mostraram-se afetuosos e solidários em relação ao falecido. [66]

Aliás, foi por isso que, logo no início deste ensaio, tivemos oportunidade de frisar que a conhecida frase "Filho é filho e ponto final" não mais tem lugar, pois reescrevendo-a à luz da eficácia irradiante oriunda da Constituição Federal "Filho é filho desde que haja um mínimo de afetividade em relação a seus genitores" [67]. Não sendo assim, melhor que cada um siga o seu caminho e, principalmente, não busque herança um do outro, como se estivesse a arriscar a sorte grande. Afinal, se toda uma vida não foi suficiente para unir, por laços afetivos, o ascendente ao descendente, não será o decesso de um deles que o fará.


8.A FORMA DA DESERDAÇÃO: TESTAMENTO

Já vimos que a falta de vínculo afetivo e de boa-fé familiar autorizam, em tese, a deserdação do herdeiro necessário pelo autor da herança, por força da aplicação dos princípios, notadamente dos princípios da afetividade e da eticidade.

Resta-nos tratar agora da forma dessa deserdação que, certamente, se dará por via testamentária, a teor do disposto no artigo 1.964 do Código Civil [68], verbis:

"Somente com expressa declaração de causa pode a deserdação ser ordenada em testamento." (g.n.)

Conforme explica Márcia Maria Menin [69], são requisitos indispensáveis para a configuração da pena de deserdação: a) a validade do testamento; b) a existência de herdeiros necessários; c) a existência de cláusula de deserdação [70]; e d) a prova da existência da causa arguida pelo testador (por meio de ação ordinária, conforme será visto no item 9).

Portanto, para que o testador prive herdeiro necessário de sua metade indisponível, necessitará, no que ora releva salientar, fazer constar por ocasião da facção do testamento, cláusula de deserdação com expressa declaração de causa (i.e., rompimento definitivo do vínculo afetivo e/ou falta de boa-fé familiar).

Nada impede, antes recomenda, que menção expressa também seja feita no testamento acerca do desrespeito ao princípio da afetividade, descrevendo-se as circunstâncias em que se deu o último contato entre o autor da herança e o herdeiro deserdado, bem como de quando datam as últimas notícias suas. Todo e qualquer aspecto que demonstre a má-fé do deserdado, igualmente deverá ser pormenorizado na cédula testamentária [71], pois, conforme dito, a eticidade é princípio norteador do Código Civil de 2002, compreendendo a boa-fé familiar, o que é curial.

Contudo, a deserdação não se opera de pleno direito, não bastando a inserção de cláusula exclusória em testamento para que se retire herdeiro necessário da sucessão [72]. É o que analisaremos a seguir.

Sobre o autor
Tarlei Lemos Pereira

Especialista em Direito de Família e das Sucessões e Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP; Membro fundador da Academia de Pesquisas e Estudos Jurídicos – APEJUR; Advogado em São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEMOS PEREIRA, Tarlei. Deserdação por falta de vínculo afetivo e de boa-fé familiar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3143, 8 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21035. Acesso em: 5 nov. 2024.

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