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Deserdação por falta de vínculo afetivo e de boa-fé familiar

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08/02/2012 às 10:20
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Indaga-se se uma filha poderia ser afastada da concorrência sucessória pelo fato de nunca ter tido qualquer tipo de aproximação do seu pai, mesmo isso lhe sendo possível, de modo a evidenciar um absoluto desinteresse afetivo relativamente à figura de seu genitor.

Resumo: O presente ensaio direciona-se ao estudo da possibilidade de se deserdar herdeiros necessários por falta de vínculo afetivo e de boa-fé familiar, a despeito de tais hipóteses não estarem expressamente previstas nos róis dos artigos 1.962 e 1.963 do Código Civil Brasileiro. De uma leitura estritamente constitucional, percebe-se que a afetividade é um dos princípios gerais implícitos na Carta Magna de 1988, assim como o sistema jurídico hodierno é aberto e móvel, inexistindo hierarquia entre as regras e os princípios, que são espécies do gênero normas jurídicas. Por isso, entendemos que a falta de afeto entre herdeiros necessários, nos casos crônicos em que a própria vida os separa e os torna estranhos, autorizaria a deserdação, uma vez desfeita a relação familiar e, consequentemente, as recíprocas obrigações civis. Também efetuamos breve estudo acerca da forma testamentária da deserdação e da necessidade de os coerdeiros ajuizarem ação ordinária, após o decesso do autor da herança, dentro do prazo decadencial indicado pelo Código Civil.

Palavras-chave: Família. Afetividade. Ausência. Deserdação. Sucessão testamentária.

Sumário: 1. Introdução; 2. Breve escorço histórico e legislação alienígena; 3. A família eudemonista e a herança na Constituição Federal de 1988; 4. A deserdação no Código Civil Brasileiro de 2002; 5. A abertura e mobilidade do sistema jurídico hodierno; 6. O pós-positivismo. As normas jurídicas são um gênero que comporta duas grandes espécies: as regras e os princípios; 7. O princípio da afetividade aplicado ao campo sucessório; 8. A forma da deserdação: testamento; 9. Ação ordinária de deserdação: aspectos processuais; 10. Conclusões; Referências bibliográficas.


"Quando um herdeiro necessário é excluído da sucessão, por meio de testamento, com fundamento em um dos motivos permitidos pela lei, a este ato se denomina deserdação.

Como se vê, a deserdação, que só pode ser ordenada por meio de testamento, é ato de iniciativa do autor da herança, sendo a única forma que este tem para afastar de sua sucessão os herdeiros necessários, descendentes e ascendentes.

(...) A deserdação, pois, excepciona aquela regra geral que reserva aos herdeiros necessários – descendentes, ascendentes e cônjuge – pelo menos a metade dos bens deixados pelo falecido, parte esta denominada quota indisponível. No entanto, embora útil, no nosso sentir, a existência desta possibilidade de alguém afastar da sua sucessão aqueles a quem a lei garantiu, em princípio, toda proteção, não se imagine que possa se dar de modo arbitrário, conforme o momentâneo estado de espírito, por exemplo, do testador. Não. A exclusão só se dará por razões expressamente contempladas na lei, cujo rol é taxativo, razões essas que deverão estar claramente mencionadas no testamento, que é o habitat obrigatório desta medida excludente extrema."

(HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Deserdação. In: Direito das Sucessões. Coautor:CAHALI, Francisco José.3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 298)


1. INTRODUÇÃO

A ideia de redigir o presente ensaio nasceu a partir de uma consulta que nos foi endereçada por uma de nossas clientes, a qual se dizia interessada em preservar o quinhão hereditário de seu filho menor impúbere, bem como o seu próprio.

Segundo a narrativa que nos foi apresentada, a consulente vive há mais de dez anos em união estável com o seu companheiro quinquagenário, tendo nascido desse relacionamento um filho que presentemente tem sete anos de idade. Além disso, registra-se a existência de dois outros filhos, maiores de idade, exclusivos do companheiro, advindos de anterior casamento.1

Ocorre que, às vésperas de completar quarenta e cinco anos de idade, o companheiro foi surpreendido com o recebimento de um oficial de justiça em sua residência, que o citou para responder aos termos de uma ação investigatória de paternidade movida por uma jovem de então vinte e oito anos de idade, supostamente sua filha primogênita.

Realizado o exame de DNA, o companheiro foi, de fato, apontado como sendo o pai da autora da ação de investigação, com percentual de acerto de praticamente cem por cento. Até onde é dado saber, os pais da jovem teriam tido um antigo relacionamento afetivo, acompanhado evidentemente de congresso carnal, durante o período em que frequentaram juntos o mesmo colégio em uma cidade do interior paulista.2

A surpresa da paternidade causou profunda indignação ao companheiro da consulente, pois jamais havia sido sequer informado acerca da gravidez da mãe da jovem, tampouco esta o procurou nesses anos todos com o fito de estreitar os laços de afetividade, de modo a constituírem uma família, ainda que monoparental.

A atitude inusitada e repentina da filha ao buscar solução pela via do Poder Judiciário deixa transparecer, em verdade, que almeja "preparar o terreno" para, futuramente, pleitear parte ideal do acervo hereditário a ser deixado em virtude do decesso de seu pai, em concorrência sucessória com os outros três filhos – seus meio-irmãos –, além da companheira-consulente. Tal suspeita ganha força na medida em que o pai – réu na ação de investigação de paternidade3 – é conhecido empresário na cidade em que tem residência e domicílio, sendo proprietário de diversos terrenos e politicamente influente no meio social em que vive.

Obviamente, não se está aqui a questionar, a princípio, a qualidade de filha da autora da investigação de paternidade, mormente tendo sido a ação julgada procedente à luz do enorme grau de certeza que o exame de DNA hodiernamente proporciona4. Aliás, todos conhecem o dito popular que preconiza: "Filho é filho e ponto final!". Contudo, pensamos que, atualmente, possa não ser bem assim. De fato, filho é filho, mas daí a colocar um "ponto final" vai longa distância.

Esse nosso modo de refletir encontra fundamento no fato de a afetividade ter sido elevada à importante categoria de princípio do Direito das Famílias. Por conseguinte, onde não houver afetividade não haverá uma família verdadeiramente formada para cumprir o seu primordial papel de possibilitar aos seus integrantes o desenvolvimento das suas melhores potencialidades humanas. É que no atual período pós-positivista vem prevalecendo na doutrina e nos pretórios o entendimento de que não bastam os laços de sangue para a constituição de uma família dita nuclear5, mas sim a capacidade de se estabelecer um vínculo de afeto, carinho e amor, é que deve prevalecer em todos os sentidos.

Assim delineada a quaestio iuris que envolve a consulente, seu companheiro e os filhos dele exclusivos, bem como o filho único comum do casal, indaga-se se, ao menos teoricamente, a filha primogênita do companheiro poderia ser afastada (rectius: deserdada) da concorrência sucessória pelo fato de nunca ter tido qualquer tipo de aproximação do seu pai, mesmo isso lhe sendo possível, de modo a evidenciar um absoluto desinteresse afetivo relativamente à figura de seu genitor.

Acresça-se a informação de que, ao optar por ingressar no Judiciário, a autora da ação de investigação de paternidade deixa ainda mais evidenciada a falta de entrosamento com seu pai que, frise-se, muito tardiamente veio saber de sua existência. A propósito, nem mesmo durante grave cirurgia a que se submeteu mais recentemente, o pai pôde contar com a presença carinhosa e auxílio da filha, pois ambos apenas se cruzaram – sem se falarem – nos corredores da clínica médica onde foi colhido material para a realização do exame de DNA.

Por tudo isso, sabendo-se que o contrário do amor é a indiferença – e não o ódio como se poderia eventualmente supor6 –, passaremos a analisar a seguir a possibilidade de a referida filha (herdeira necessária7) ser deserdada por seu genitor, pela via testamentária, por falta de afetividade e de boa-fé familiar, hipóteses estas não contempladas expressamente nos artigos 1.962 e 1.963 do Código Civil Brasileiro8, que são considerados taxativos, ou seja, numerus clausus. Dita deserdação, é óbvio, teria o condão de resguardar os nacos da herança que tocariam aos demais herdeiros do falecido – que com ele conviveram, prestaram auxílio mútuo e foram afetuosos –, sem nenhum decréscimo patrimonial.


2. BREVE ESCORÇO HISTÓRICO E LEGISLAÇÃO ALIENÍGENA

No Direito Romano, primeiro surgiu a deserdação para, depois, passar a serem reconhecidos os casos de indignidade. O pai de família, segundo Eugene Petit9, estava sempre obrigado a instituir ou deserdar seus herdeiros, não podendo omiti-los. Se o testador não se referisse a um dos filhos o testamento era anulado. Mas, se se tratasse de omissão de filhas ou herdeiros mais distantes, valia o testamento, atribuindo-se parte da herança aos herdeiros omitidos.

A denominada exheredatio foi o primeiro ato solene de despojamento da herança do filho, imposto como castigo pelo pai. Posteriormente, essa forma de deserdação se converteu em uma declaração testamentária com o fito de excluir determinados herdeiros da sucessão. 10

Sílvio de Salvo Venosa 11 relata que "as formas e consequências da deserdação eram diversas se dirigidas a um filho, ou uma filha, ou a outros herdeiros. Pelas fontes parece que podemos concluir que as deserdações abusivas eram raras e, nesse caso, cabia ao pretor deixar intacta a ordem legítima da herança. Havia grande margem de decisão para o pretor decidir no caso concreto. Somente na época imperial é que se concede ação contra a deserdação injusta (querela inofficiosi testamenti), numa época em que Roma já vivia na corrupção e dissolução de costumes. Não se consegue fixar corretamente a origem dessa ação, parecendo ter sido trazida dos costumes gregos. Já por essa ‘querela’ não se colocava o herdeiro como beneficiário do testamento, mas anulava-se todo o testamento".

No direito justinianeu (Novela 115), já estava criada uma herança legítima, sendo que a deserdação devia ser feita nominalmente, com base na lei, pautando-se na ideia de ingratidão. O exercício da querela ficava restrito aos descendentes e ascendentes, aos irmãos e irmãs, quando eram excluídos em benefício de pessoa torpe. Nessa época, então, a deserdação só era possível quando colocada no testamento e justificada por motivos expressos e plausíveis, cuja discussão ficava sempre aberta ao herdeiro legítimo. A expressão moderna da indignidade e deserdação já estava desde essa época desenhada 12, mas sabe-se que, historicamente, a deserdação é uma instituição que vem de remotas eras, pois se encontra no Código de Hammurabi, que data de 2000 anos antes de Cristo. 13

Hodiernamente, embora a deserdação constitua instituto jurídico bastante polêmico, não admitido em diversas legislações, é, todavia, acolhido pela legislação civil de Portugal, Espanha, Suíça, Áustria, Alemanha, Argentina, Uruguai, Paraguai, Peru, Chile, Colômbia, Macau, além da brasileira 14. Contudo, conforme adverte Zeno Veloso 15, "em alguns países, não há que se falar em deserdação, pois a liberdade testamentária é irrestrita, absoluta, não havendo o modelo de nosso herdeiro necessário (Inglaterra, EUA, México), podendo o autor da herança dispor, sem nenhuma limitação, de todos os seus bens. Realmente, o Código Civil francês, o Código Civil belga, o Código Civil italiano, o Código Civil venezuelano deixaram de abrigar o instituto, que foi absorvido pela figura da indignidade".

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3. A FAMÍLIA EUDEMONISTA E A HERANÇA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Na visão moderna do Direito das Famílias (não do vetusto Direito de Família), a família é identificada pela comunhão de vida, de amor e de afeto no plano da igualdade, da liberdade, da solidariedade e da responsabilidade recíproca 16 (g.n.). Portanto, mesmo que existentes os laços de sangue, não se terá uma verdadeira família, na expressão jurídica da palavra, caso os demais elementos mencionados não estejam presentes entre pessoas de um mesmo círculo. É a vitória do afeto sobre a formal indiferença!

Com efeito, no momento em que o formato hierárquico da família cedeu à sua democratização, em que as relações são muito mais de igualdade e de respeito mútuo, e o traço fundamental é a lealdade, não mais existem razões morais, religiosas, políticas, físicas ou naturais que justifiquem a excessiva e indevida ingerência do Estado na vida das pessoas 17. Daí ter surgido uma nova designação para essa tendência de identificar a família pelo seu envolvimento afetivo: família eudemonista, isto é, que busca a felicidade individual vivendo um processo de emancipação de seus membros 18. Por outras palavras, o eudemonismo 19 enxerga a felicidade como um bem supremo, que não pode ser comparado a qualquer outro.

A absorção do princípio eudemonista pelo ordenamento altera o sentido da proteção jurídica da família, deslocando-o da instituição para o sujeito, como se infere da primeira parte do § 8º do artigo 226 da Constituição Federal: o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos componentes que a integram 20. A possibilidade de buscar formas de realização pessoal e gratificação profissional é a maneira que as pessoas encontram de viver, convertendo-se em seres socialmente úteis, pois ninguém mais deseja e ninguém mais pode ficar confinado à mesa familiar 21. (g.o.)

Por conseguinte, a busca da felicidade, a supremacia do amor, a vitória da solidariedade, ensejam o reconhecimento do afeto como único modo eficaz de definição da família e de preservação da vida 22. Logo, pode-se afirmar que existe uma família onde houver afetividade como elo de união e comprometimento entre os seus diversos integrantes. (g.n.)

Relativamente ao direito de herança, tem-se que ele foi constitucionalizado na Carta Magna de 1988, no artigo 5º, XXX 23, não podendo a lei civil deixar de reconhecer a sucessão hereditária de herdeiros necessários (filhos, especialmente), se os houver, nos bens deixados pelo de cujus 24.

De fato, o Código Civil de 2002 não deixou de contemplar os descendentes, os ascendentes e o cônjuge supérstite, na qualidade de herdeiros necessários de primeira, segunda e terceira vocação, respectivamente – vide as hipóteses de concorrência (artigo 1.829) 25 –, de modo a atender plenamente o comando constitucional. Porém, há que se ter em mente que mesmo tendo sido assegurado o direito de herança, por meio da lei civil, isso não quer dizer, necessariamente, que herdeiros não possam ser deserdados, mormente por falta de afetividade e de boa-fé familiar 26, ainda que estas hipóteses não estejam previstas nos róis exaustivos dos artigos 1.962 e 1.963 do Código Reale.

Esse nosso modo de pensar se justifica plenamente na medida em que "em pleno século XXI não seria mais admissível legislar-se por normas que definissem precisamente certos pressupostos e indicassem, também de forma precisa, suas consequências, formando uma espécie de sistema fechado. (...) Já não basta, para bem interpretar o direito e dar a ele efetividade, analisar os fatos e confluí-los com as normas oriundas do Estado para se chegar a uma solução plausível para os problemas" 27. Além disso, mister não deslembrar que o ordenamento jurídico é dotado de normas, que são um gênero que comporta duas grandes espécies (as regras e os princípios) 28, sendo que a afetividade é princípio geral do Direito das Famílias.

Lobriga-se, portanto, que mesmo tendo a Constituição Federal de 1988 assegurado o direito de herança, e mesmo tendo o Código Civil de 2002 determinado a ordem da vocação hereditária, seria possível, em tese, operar-se a deserdação de herdeiros necessários, por quebra de afeto, ao menos naqueles casos crônicos em que a própria vida se encarrega de separar definitivamente parentes tão próximos como, v.g., pais e filhos 29. Outrossim, é forçoso considerar que o sistema jurídico hodierno é aberto e móvel, conforme veremos com maior vagar na sequência (item 5).


4. A DESERDAÇÃO NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002

A deserdação vem tratada nos artigos 1.961 a 1.965 do Código Civil Brasileiro (vide íntegra do texto legal no apêndice – item 12), sendo considerada como o ato pelo qual o de cujus exclui da sucessão, mediante testamento com expressa declaração de causa (Código Civil, artigo 1.964), herdeiro necessário (Código Civil, artigos 1.962 e 1.963), privando-o de sua legítima (Código Civil, artigo 1.846), por ter praticado qualquer ato taxativamente enumerado nos artigos 1.814, 1.962 e 1.963 do Código Civil 30. Tal pena não irá além da pessoa do delinquente, logo não incidirá sobre os sucessores deste. 31

Além das causas que autorizam a exclusão de herdeiro por indignidade (Código Civil, artigo 1.814), a deserdação do descendente pelo ascendente dar-se-á se houver: a) ofensas físicas, leves ou graves, por indicar falta de afeição para com o ascendente; b) injúria grave que atinja seriamente a honra, a respeitabilidade e a dignidade do testador; c) relações ilícitas com a madrasta ou o padrasto, por serem incestuosas e adúlteras; d) desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade, por indicar, da parte do herdeiro, desafeição pelo autor da herança, e falta de sentimento de solidariedade humana. 32 (g.n.)

Já o descendente terá autorização legal para deserdar ascendente se ocorrerem as causas justificadoras da exclusão por indignidade (Código Civil, artigo 1.814), ou as arroladas no artigo 1.963: ofensas físicas, injúria grave, relações ilícitas (conjunção carnal, lascívia, concupiscência) com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta, e abandono do descendente (filho ou neto) doente física ou mentalmente. 33

Para que se efetive a deserdação será preciso testamento válido com expressa declaração do fato que a determina, ocorrido, obviamente, antes da morte do testador. Se nulo for o testamento, nula será a deserdação. 34

Por fim, a lei retira do arbítrio do testador a decisão quanto aos motivos da deserdação, devido à gravidade do fato 35. Logo, imprescindível será que o disponente especifique a causa legal (Código Civil, artigos 1.814, 1.962 e 1.963) que o levou a deserdar herdeiro necessário. 36

Nesse contexto, porém, faz-se necessário um esclarecimento: não discordamos que a lei determina taxativamente quais são as hipóteses de deserdação, o que, aliás, é entendimento uníssono da doutrina 37. Acontece que o ordenamento jurídico brasileiro não é, definitivamente, composto somente de regras, mas sim de regras e princípios 38, que são espécies do gênero normas jurídicas.

Portanto, a despeito de a lei (Código Civil, artigos 1.962 e 1.963) prever as hipóteses de deserdação de descendente pelo ascendente e de ascendente por descendente, mister considerar que a afetividade é princípio do Direito das Famílias, conforme já tivemos oportunidade de afirmar, o que, a nosso ver, autoriza a exheredatio nos casos em que restar configurada a sua quebra.

A propósito, note que uma das hipóteses legais, prevista no artigo 1.963, IV, do Código Civil, contempla justamente a desafeição ao fazer referência ao "desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade". Mas a tanto o legislador nem precisaria ter chegado, pois o rompimento definitivo da afetividade, por si só, autoriza a deserdação 39, por mera aplicação sistemática dos princípios, sem que houvesse sequer necessidade de se proceder a qualquer inclusão ou alteração no texto da lei.

Ressalte-se, por derradeiro, que a quebra da afetividade autorizadora da deserdação deverá ser sempre definitiva, não podendo se sujeitar a estados de humor inconstantes, como o do pai que num dia diz amar o filho e no outro não, depois ama de novo e assim por diante. Óbvio que, além disso, há que se atentar constantemente à boa-fé familiar, pois assim não age o filho que se aproxima do pai, depois de décadas de falta de convivência, auxílio e afeto, movido exclusivamente pelo desejo de assegurar o seu naco da herança.

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Sobre o autor
Tarlei Lemos Pereira

Especialista em Direito de Família e das Sucessões e Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP; Membro fundador da Academia de Pesquisas e Estudos Jurídicos – APEJUR; Advogado em São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEMOS PEREIRA, Tarlei. Deserdação por falta de vínculo afetivo e de boa-fé familiar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3143, 8 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21035. Acesso em: 21 nov. 2024.

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