Resumo
Este artigo tem por objetivo pesquisar, analisar e descrever o entendimento doutrinário predominante acerca da possibilidade da revisão judicial dos contratos, ante à aplicação do princípio da função social do contrato no Direito Civil brasileiro. Partindo-se dos aspectos conceituais de contrato e função social, fez-se uma análise do artigo 421 do Código Civil brasileiro para, finalmente, concluir pela possibilidade da revisão judicial dos contratos ante à aplicação do princípio da função social do contrato, que preconiza o equilíbrio entre direitos individuais e interesses sociais, visando à obtenção de uma relação jurídica contratual de fato justa. O método de pesquisa utilizado para a elaboração do presente artigo foi a pesquisa bibliográfica.
Palavras-Chave: Código Civil brasileiro. Contrato. Função social. Função social do contrato.
Abstract
This article aims to search, analyse and describe the predominant doctrinal understanding about the possibility of judicial review of contracts considering the application of the principle of social function of contract in Brazilian Civil Law. Based on the conceptual aspects of contract and social function, there was an analysis of the article 421 of the brazilian Civil Code to finally conclude the possibility, of judicial review of contracts considering the application of the principle of social function of the contract, that searchs the balance between individual rights and social interests, to obtain a legal contractual relationship in fact fair. The research method used for the preparation of this article was the bibliographic research.
Keywords: Brazilian Civil Code. Contract. Social function. Social function contract.
1INTRODUÇÃO
O Direito está em constante evolução e, para que a manifestação de seus aspectos formais acompanhe estas mudanças, exigem-se constantes pesquisas que sintetizem em, alguns momentos, a situação dos pressupostos de revisão judicial dos contratos, diante das novas exigências sociais.
Este artigo fixa um desses momentos, com o objetivo de pesquisar, analisar e descrever o entendimento doutrinário predominante acerca da possibilidade da revisão judicial dos contratos, ante à aplicação do princípio da função social do contrato no Direito Civil brasileiro.
O desenvolvimento do tema encontra justificativa por tratar-se de assunto atual, uma vez que o artigo 421 é uma das inovações do Código Civil brasileiro de 2002, tendo suscitado amplos debates, e carecendo de estudos. Vale salientar que a doutrina referente ao tema é relativamente escassa, apesar de sua importância no âmbito do Direito Civil brasileiro, bem como, para o meio acadêmico, para os operadores jurídicos, e para a sociedade. Desta forma, espera-se que a leitura do artigo leve outras pessoas a nutrir real interesse sobre o tema.
2ASPECTOS CONCEITUAIS
A partir da evolução das civilizações, quando se iniciou a experimentar certo progresso espiritual e material, o contrato passou a servir, enquanto instrumento de circulação de riquezas, como justa medida de interesses contrapostos, traduzindo-se na espécie mais importante e socialmente difundida de negócio jurídico, sendo, sem sombra de dúvidas, a força motriz das engrenagens socioeconômicas do mundo. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2005)
Ao tratar-se de tão empolgante tema, função social do contrato, incompleto seria abordá-lo sem ter-se inicialmente uma compreensão conceitual de contrato, bem como da expressão função social, o que se fará a seguir.
2.1CONTRATO
Origina-se a palavra contrato do vocábulo latino contractus, que significa, no entender de Venosa (2003, p. 364) “unir, contrair”. Por sua vez, para Gagliano e Pamplona Filho (2005, p. 11-12, grifo nosso),
contrato é um negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes, limitadas pelos princípios da função social e da boa-fé objetiva, auto-disciplinam os efeitos patrimoniais que pretendem atingir, segundo a autonomia das suas próprias vontades.
Diante disso, entende-se que não se pode falar em contrato, sem que se tenha expressa manifestação de vontade, ou seja, sem o “querer humano”, pois desta forma não haveria negócio jurídico, e, não havendo negócio jurídico, não há contrato. Entende-se, também, que essa manifestação de vontade deve fazer-se acompanhar pela necessária responsabilidade na atuação dos contratantes, subordinando-se estes às limitações derivadas do respeito a normas superiores de convivência, dentre elas as estabelecidas pelo princípio da função social do contrato.
Cumpre observar que o citado princípio da função social do contrato, tema deste artigo, encontra-se expresso no Código Civil brasileiro, em seu artigo 421, cujo enunciado preceitua: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. (BRASIL, 2002, grifo nosso)
Assim, lícito e legítimo será o contrato que respeitar não apenas as regras técnicas de validade, mas, sobretudo, as normas principiológicas que conduzem à necessária observância de um conteúdo ético e social indisponível. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2005)
Destaca-se ainda a conceituação de Diniz (2005, p. 31). Segundo a autora,
contrato é o acordo de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial.
Sendo assim, pode-se dizer que contrato é um acordo de vontades, que objetiva estabelecer uma relação jurídica de natureza patrimonial e eficácia obrigacional. Ocorrendo convergência de pretensões sobre um mesmo objeto, vem a constituir-se num acordo de vontades; por outro lado, uma vez que envolve partes distintas, cujas manifestações repercutem no Direito, constitui-se numa relação jurídica.
2.2FUNÇÃO SOCIAL
No dizer de Blanchet (2004, p. 63): “Função Social – expressão muito difundida, conceituação pouco compreendida”.
Percebe-se, atualmente, que o adjetivo “social” está presente nos discursos e legislações. A socialização de institutos e instituições tem se tornado uma regra, e fala-se constantemente em “função social”, seja ela da propriedade, do contrato ou da empresa. Fato é que a expressão “função social” tornou-se por sua conotação, vasta e imprecisa, percebendo-se nitidamente que esta expressão está sendo corrompida, distorcendo-se o seu significado primeiro: construir uma sociedade justa, o qual não está defasado. (BLANCHET, 2004)
Num primeiro momento, é importante esclarecer o que é função. Segundo a Enciclopédia Saraiva do Direito (1977, p. 480), “o termo função é originado do latim functio; alemão funktion, Amt; inglês function; francês fonction; italiano funzione; espanhol función”. Para Houaiss (2001, p. 1402) função quer dizer “obrigação a cumprir, papel a desempenhar, pelo indivíduo ou por uma instituição”.
Já, social, segundo a Enciclopédia e Dicionário Ilustrado Koogan/Houaiss (2000, p. 1503), “é tudo aquilo que diz respeito à sociedade, relativo a uma sociedade [...].” Para Houaiss (2001, p. 2595), social qualifica o que é “concernente à sociedade; relativo à comunidade, ao conjunto dos cidadãos de um país”.
Função social é assim conceituada pela Enciclopédia Saraiva do Direito (1977, p. 482): “a noção de função social implica a noção de um conjunto de atividades e papéis exercidos por indivíduos ou grupos sociais, no sentido de atender a necessidades específicas.”
Diniz (1998, p. 613), por sua vez, assim se manifesta acerca do tema: “função social: atividade e papéis exercidos por indivíduos ou grupos sociais, com o escopo de obter o atendimento de necessidades específicas”. Ou seja, entende-se como o conjunto de ações que atendem as necessidades da sociedade.
O Estado, primordialmente, possui o cumprimento da função social como um compromisso para com a sociedade, que o criou e o mantém. Pasold (1998, p. 69), escrevendo sobre a Função Social do Estado Contemporâneo, parte da premissa de que “a palavra função possui o seu significado comprometido com dois elementos: a ´ação’ e o ´dever de agir’. Afirma que o dever está presente devido à natureza do agente (O Estado)”.
Pode-se pensar, a partir deste “dever agir”, que todos os atos que compõe a função social devem ser cumpridos apenas pelo Estado, devido ao pacto social firmado por este com a sociedade. Por isto, existem críticas no sentido de que a existência de uma função social da propriedade, do contrato, ou da empresa, e o dever, contido nestes conceitos, seria prejudicial à sociedade, pois retiraria do Estado a responsabilidade de cumprir com os seus deveres sociais.
Este entendimento pode ser tido como equivocado, pois o Estado continua responsável pelo pacto social efetuado com a sociedade; apenas é auxiliado pela função social da propriedade, do contrato ou da empresa, os quais trazem maiores benefícios à sociedade.
Ademais, não pode ser ignorada a real situação da sociedade em que se vive, onde o Estado não possui condições de cumprir totalmente com suas obrigações, por vários motivos que a este artigo não se fazem pertinentes, necessitando do auxílio de todos os mecanismos possíveis à realização de uma sociedade menos desigual.
Pasold (1998, p. 73) afirma que:
a função social possui uma destinação evidente: realizar a justiça social.
[...]
a justiça social somente apresentará condições de realização eficiente e eficaz se a Sociedade, no seu conjunto, estiver disposta ao preciso e precioso mister de contribuir para que cada pessoa receba o que lhe é devido pela condição humana.
Neste aspecto, Pasold (1998, p. 74) ressalta três pontos estratégicos:
a) a noção de JUSTIÇA SOCIAL não pode ser presa a esquemas fixados a priori e com rigidez indiscutível;
b) a conduta do Estado não pode ser paternalista para com os necessitados e protetora ou conivente para com os privilegiados;
c) a responsabilidade pela consecução da JUSTIÇA SOCIAL na sua condição de destinação da FUNÇÃO SOCIAL, deve ser partilhada por todos os componentes da Sociedade.
Deste entendimento, infere-se que, de forma alguma, a propriedade, o contrato, ou a empresa, cumprindo suas funções sociais, retirariam do Estado o seu “dever agir”, uma vez que também é sua responsabilidade o alcance da justiça social. E a justiça social deve ser do interesse de todos, sem exceção.
3FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
O estágio de evolução da teoria contratual tem, como uma de suas principais causas, a multiplicação exacerbada de relações jurídicas despidas de negociação em condições paritárias. O contrato de adesão é, inegavelmente, a regra geral no que diz respeito às modalidades contratuais e, com isso, surgem desequilíbrios, principalmente em detrimento dos direitos da parte contratual mais fraca. (GOMES, 2004)
Alerta Gomes (2004) que não se pode, contudo, querer extirpar o contrato do mundo negocial, uma vez que esse instrumento representa a principal ferramenta para a circulação de riquezas, tanto no modelo de Estado Liberal quanto no modelo de Estado Social. Assim, segundo a sua função social, o contrato deve assumir uma função de circulação equânime de riquezas. O que se pretende tutelar é o equilíbrio social no processo de circulação de bens e serviços massificados.
A transformação que sofre o contrato é a que se concretiza com a realidade da tendência de socialização; vale dizer, a ter um aspecto social, no sentido de que os direitos e os deveres devem ser exercidos funcionalmente, sem desviarem-se dos fins econômicos, dos fins éticos e dos fins sociais, que o ordenamento legal tem em conta. (SANTOS, 2004)
Nesse diapasão, Santos (2004) entende que a finalidade individualista e egoística, que o direito privado gozava e privilegiava, cedeu espaço à sociabilidade. Agora, a intenção de contratar não protege o objeto da contratação apenas ao interesse individual, mas à sociedade. Acima da vontade absoluta das partes, pairam altos valores sociais, que o Estado tutela, se não quiser que os componentes de seu território sejam lesionados, em prejuízo da sociedade em geral.
Santiago (2005, p. 75), ao tratar do assunto, assim se manifesta:
a orientação moderna no campo do direito das obrigações visa realizar melhor equilíbrio social, não apenas no sentido moral de impedir a exploração do mais fraco pelo mais forte, mas, ainda de sobrepor o interesse coletivo, no qual se insere a harmonia social, ao interesse individual, de cunho meramente egoístico.
Pode-se deduzir, então, que esta socialização tem o efeito de corrigir a concepção contratual demasiadamente individualista. Agora, os interesses coletivos são superpostos aos interesses puramente particulares.
Não pode mais, portanto, o homem, num dever jurídico, ser visto como ser individual, cujos atos praticados digam respeito tão-somente a sua esfera patrimonial e moral, sem atentar-se para as conseqüências de seus atos perante os demais indivíduos que compõe a sociedade. Neste sentido, manifesta-se Gomes (2004, p. 86): “O contrato não pode ser o reino do egoísmo, do puro interesse individual, sem pôr em grave risco o bem comum e a paz social”.
Nesta perspectiva, o contrato deve desempenhar a sua função social, calcada, segundo Netto Lôbo (2002, p. 1), sob a determinação de que
o princípio da função social determina que os interesses individuais das partes do contrato sejam exercidos em conformidade com os interesses sociais, sempre que estes se apresentem. Não pode haver conflito entre eles pois os interesses sociais são prevalecentes. Qualquer contrato repercute no ambiente social, ao promover peculiar e determinado ordenamento de conduta e ao ampliar o tráfico jurídico.
Já para Santos (2004, p. 117):
como instrumento ou ferramenta para a satisfação das necessidades humanas, em harmonia com o bem comum ou função social, o contrato continua desempenhando seu rol preponderante, embora ajustado aos novos tempos em sua nova roupagem.
É importante ressaltar que o Código Civil de 1916 nada previu sobre a função social dos contratos. Embora não se possa negar sua grandeza técnica, sem cometer-se grave injustiça, o fato é que o codificador de 1916 absorveu, demasiadamente, os valores individualistas, patriarcais e conservadores da sociedade de então. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2005)
O Código Civil de 2002, por sua vez, demonstra claramente uma compreensão da liberdade de contratar dentro de uma concepção social e fora do padrão individualista, contemplando, pela primeira vez, de forma expressa, a função social do contrato em seu artigo 421, como princípio delimitador da liberdade contratual e também como uma cláusula geral que, em síntese, seria mecanismo, diretriz, técnica de formação judicial da regra a aplicar ao caso concreto, sem modelo de decisão pré-constituído, podendo o juiz preencher os claros do que significa função social ao caso concreto que se apresente.
Já, princípio é preceito, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério de sua compreensão. É o conhecimento dos princípios que preside a compreensão, o entendimento, das diferentes partes componentes do todo unitário do sistema jurídico positivo, E, por isso, violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. (MELLO, 1997)
3.1ABORDAGEM DO ARTIGO 421 DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
A noção de função social do contrato, numa perspectiva anterior ao Código Civil de 2002, condizia com um preceito que, segundo Azevedo (1998, p. 116, grifo nosso), é
destinado a integrar os contratos numa ordem social harmônica, visando impedir tanto aqueles que prejudiquem a coletividade [...] quanto os que prejudiquem ilicitamente pessoas determinadas.
[...]
A idéia de função social do contrato está claramente determinada pela Constituição, ao fixar como um dos fundamentos da República, o valor social da livre iniciativa (art. 1º, inc. IV); essa disposição impõe, ao jurista, a proibição de ver o contrato como um átomo, algo que somente interessa às partes, desvinculado de tudo o mais. O contrato, qualquer contrato, tem importância para toda a sociedade e essa asserção, por força da Constituição, faz parte, hoje, do ordenamento positivo brasileiro [...].
Sendo assim, já se manifestava coerente acolher efetivamente a função social do contrato como princípio jurídico integrante do ordenamento jurídico brasileiro, forte na própria Constituição Federal, ao estabelecer que a livre-iniciativa deve ter um valor social. Cretella Júnior (1992, p. 140-141) define a livre-iniciativa como:
a possibilidade de agir antes de qualquer outro, sem influência externa, como uma expressão da liberdade. O valor social, no caso, significa que essa atividade deve ser socialmente útil e que se procurará a realização da justiça social, do bem-estar social.
A previsão expressa da função social do contrato no Código Civil brasileiro de 2002, através da inserção do artigo 421, vem, então, arrematar esse entendimento, aplicando os preceitos da justiça social, especificamente e expressamente aos contratos, consolidando entre nós, definitivamente, o personalismo e, conseqüentemente, a visão da autonomia privada limitada.
É importante ressaltar que, na definição de função social do contrato, a totalidade dos autores por nós analisados, enfatiza o caráter condicionador de tal princípio, que submete o interesse privado ao interesse público, limitando, assim, a autonomia privada, ou autonomia da vontade.
Discorrendo sobre o artigo 421, assim manifesta-se Aguiar Júnior (2000 apud GODOY, 2004, p. 121, grifo nosso) acerca da expressão “liberdade de contratar exercida em razão e nos limites da função social do contrato”:
a autonomia privada fornece o suporte de fato sobre o qual incidirão as normas jurídicas, atribuindo-lhe os efeitos que lhe são próprios, não mais de acordo com a vontade, mas de acordo com os fins a que se propõe a ordem estatal. A ordem jurídica recebe o ato individual e garante a realização de seus fins – garante-lhe a eficácia – não para satisfazer qualquer propósito, mas apenas àqueles que o sistema escolheu e protege no interesse comum. Ou, antes, ´em vez de considerar-se a intenção das partes e a satisfação de seus interesses, o contrato deve ser visto como instrumento de convívio social e de preservação dos interesses da coletividade, onde encontra a sua razão de ser e de onde extrai sua força – pois o contrato pressupõe a ordem estatal para lhe dar eficácia´.
Os contratos atualmente cada vez mais interferem em terceiros, espraiando seus efeitos à comunidade, em que devem ser protegidas também as partes não contratantes, admitindo-se também a intervenção nos negócios, quando o contrato não estipular uma função social, uma vez que o contrato não é mais limitado às partes, transcendendo e outorgando uma função social frente a toda a sociedade. (GODOY, 2004)
Denota-se, do exposto, que a função social do contrato não se volta apenas para o relacionamento entre as partes contratantes, mas também para os reflexos do negócio jurídico perante terceiros, isto é, o meio social. Diante do reconhecimento da função social atribuída ao contrato, a autonomia privada não desaparece; limitado porém, é o poder individual que dela deflui, pela agregação das idéias de justiça e solidariedade social. O exercício desta autonomia, agora, deve orientar-se não só pelo interesse individual, mas também pela utilidade que possa ter na consecução dos interesses gerais da comunidade. (THEODORO JÚNIOR, 2004)
Neste sentido, assim manifesta-se Gomes (2004, p. 86):
ainda vigora a autonomia privada, nomeadamente no ambiente contratual, conquanto não se perca de vista a necessidade de condições isonômicas quando da ocasião da contratação. A autonomia privada não pode descurar-se das necessidades da vida social, e o surgimento de um diferente modelo de Estado, o Social, faz com que o Direito acabe tendo de se voltar a preocupações de índole coletiva (função social) [...] e, por via de conseqüência, acaba deparando-se com a eticização e a socialização do direito privado.
Pode-se então afirmar que o contrato não pode ser visto apenas como fato dos contratantes, tendo que respeitar os interesses do meio social onde seus efeitos irão refletir. Senão vejamos. Para Negreiros (2002, p. 498, grifo nosso),
a nova função social atribuída ao contrato contrapõe-se, principalmente, ao princípio da relatividade – “o qual, numa visão hoje questionada, postu
evendo seus efeitos apenas aos contratantes. Em contraposição à concepção individualista, o princípio da função social serve como fundamento para que se dê relevância externa ao crédito, na medida em que propicia uma apreensão do contrato como fato social, a respeito do qla o isolamento da relação contratual, circunscrual os chamados ´terceiros’, se não podem manter indiferentes”.
Claro está, então, que diante desta sociabilidade sobre a qual se assenta o contrato, o princípio da relatividade deve sofrer uma nova releitura, podendo ensejar, sim, vantagens ou deveres a terceiros. Conclui-se, diante disso, que o contrato não é um assunto puramente individual, passando a ser uma instituição social que não afeta somente o interesse dos contratantes.
Theodoro Júnior (2004, p. 33), assim se manifesta acerca do assunto:
nessa ótica, sem serem partes do contrato, terceiros têm de respeitar seus efeitos no meio social, porque tal modalidade de negócio jurídico tem relevante papel na ordem econômica indispensável ao desenvolvimento e aprimoramento da sociedade. Têm também os terceiros direito de evitar reflexos danosos e injustos que o contrato, desviado de sua natural função econômica e jurídica, possa ter na esfera de quem não participou de sua pactuação.
[...]
O que se revela, nesse passo, é a mitigação do princípio da relatividade dos efeitos do contrato, consagrado em nosso sistema contratual, mas que se encontra em xeque, na sua perspectiva dogmática, especialmente em relações que tocam o mercado [...].
Diante do exposto, denota-se que o contrato deixa, então, de ser interesse apenas dos contratantes, passando a refletir positiva e negativamente também em relação a terceiros. Sua eficácia, no tocante às obrigações contratuais, é sempre relativa, mas sua oponibilidade é absoluta, quando em jogo interesses de terceiros ou da comunidade.
3.2 REVISÃO CONTRATUAL ANTE A APLICAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO ? POSSIBILIDADE
O desenvolvimento deste artigo permite deduzir que os contratantes, embora livres para ajustar os termos do contrato, deverão agir sempre dentro dos limites necessários para evitar que sua atuação negocial se torne fonte de prejuízos injustos e indesejáveis para terceiros. Para embasar este entendimento, trazem-se, à colação, os dizeres de Theodoro Júnior (2004, p. 33). Para ele:
é bastante nítida a preocupação social do legislador ao se afastar do princípio da relatividade dos contratos, quando impõe a responsabilidade pelo dano causado ao consumidor não apenas ao fornecedor que com ele contratou, mas a todos os integrantes da cadeia de produção e circulação (CDC, art. 12); e também quando estende a proteção contra defeitos do produto, responsabilizando o fornecedor perante qualquer vítima que o tenha consumido, e não apenas em face daquele com quem contratou o fornecimento (CDC, art. 14). No mercado de consumo, exige-se amplamente um comportamento social adequado, que vai muito além dos limites tradicionais ditados pela relatividade das obrigações contratuais.
O Estado social não se alheia aos problemas que o abuso da iniciativa contratual pode gerar no meio social em que os efeitos do contrato irão repercutir. Se algum dano indevido a terceiro ou à coletividade for detectado, a autonomia contratual terá sido exercitada de forma injurídica. Não poderá o resultado danoso prevalecer. Ou o contrato será invalidado ou o contratante nocivo responderá pela reparação do prejuízo acarretado aos terceiros. (THEODORO JÚNIOR, 2004)
Neste sentido, assim se manifesta Santos (2004, p. 127):
o contrato será passível de modificação se não observar os critérios de justiça, eqüidade, sociabilidade e paridade. Que o forte não se aproveite da credibilidade do mais fraco e abuse da confiança depositada, obrigando-o a efetuar contratos que contenham cláusulas leoninas e abusivas, que venham a acarretar danos inclusive a terceiros e à coletividade. [...]
Importante ressaltar que não faltam vozes a demonstrar descontentamento diante desta realidade fática da possibilidade de revisão do contrato por força da sua função social. A este respeito, colacionam-se os dizeres de Santos (2004, p. 127-128):
sempre que se fala nessa ampla possibilidade de o contrato perder aquele caráter de pacta sunt servanda, porque objeto de espoliação e ser aberto ao prejudicado o caminho do recurso ao Poder Judiciário para a revisão ou resolução dos contratos, os ortodoxos que ainda não conseguiram se desprender do liberalismo econômico brandem com o argumento de que a segurança e a certeza jurídicas se desvanecem quando o legislador confere poderes ao juiz para alterar o que as partes aceitaram, celebraram e quiseram.
[...]
Qualquer perspectiva de o contrato ser objeto de revisão e colocado em seu rumo de justiça, eqüidade e sociabilidade, faz surgir corifeus do neoliberalismo que atendem interesses econômicos de grandes grupos privados, para afirmar que a segurança jurídica está morta. Para eles, “a estabilidade quer dizer segurança para as classes mais altas e as grandes companhias estrangeiras, cuja prosperidade deve ser preservada”. Bresser Pereira, economista que já serviu ao poder, não perdeu a visão crítica quando assinalou que “o problema da América Latina não é o populismo, mas a subordinação do Estado aos ricos”.
A função social do contrato garante, então, a socialização dos contratos, submetendo o direito privado a novas transformações e garantindo a estabilidade das relações contratuais, sensível ao ambiente social em que ele foi celebrado e está sendo executado, e não, apenas, a submissão às regras de um mercado perverso. Preconiza, desta forma, o equilíbrio entre direitos individuais e interesses sociais, permitindo a obtenção de uma relação jurídica de fato justa.
Vale destacar que o Princípio do pacta sunt servanda, que determina que os contratos devem ser obrigatoriamente cumpridos pelas partes, revelando-se em muitos casos como uma regra injusta, por determinar o cumprimento incondicional da obrigação, não foi extirpado do mundo jurídico, mas sim enfraqueceu-se, passando a sofrer uma releitura frente à sociabilidade do Código Civil brasileiro. Vejamos o que diz Netto Lôbo (2002, p. 1):
[...] O princípio clássico pacta sunt servanda passou a ser entendido no sentido de que o contrato obriga as partes contratantes nos limites do equilíbrio dos direitos e deveres entre elas.
Já Santos (2004, p. 117), a respeito da feição social, assumida pelos contratos frente ao Código Civil atual, assim se manifesta:
[...] Os contratos, aos poucos, vão se transformando, tendo uma feição social como forma de diminuir as desigualdades das partes contratantes. Mais que este aspecto social que emerge da contratação, existe uma função social que é o fiel da balança que impede o desequilíbrio arrogante, pecaminoso e ultrajante.
Atingido em sua substância pelo princípio da função social, o contrato não se presta mais apenas à mesquinha função de criar direitos e obrigações para as partes, enquanto indivíduos, devendo estar amoldado aos preceitos do Estado Social sob pena de ser invalidado. (SANTIAGO, 2005)
Diante do exposto, entende-se que o referido artigo 421 revitaliza o contrato, para atender aos interesses sociais, limita a manifestação de vontade dos contratantes, cria condições para o equilíbrio econômico-contratual, e possibilita a revisão judicial, sempre que os efeitos externos do contrato prejudiquem injustamente os interesses da outra parte, da comunidade ou de terceiros, estranhos ao vínculo contratual.