“O direito perderia a nota de ciência, se o jurista se insulasse nos horizontes herméticos de seu sistema nacional” (Caio Mário da Silva Pereira).
Capacidade contributiva: conceito e classificação
Inicialmente, destaca-se que o princípio da capacidade contributiva – diretamente relacionado com os ideais históricos de justiça e igualdade – ocupa posição preeminente entre os postulados fundamentais da tributação, irradiando os seus efeitos sobre toda a seara fiscal (DANTAS NETO, Afonso Tavares. Temas tributários: capacidade contributiva, custas judiciais, dação em pagamento. Rio – São Paulo: ABC Editora, 2003. p. 10).
O significado da expressão capacidade contributiva é algo intuitivo, pois sugere capacidade de pagar, mas nem por isso logra dissipar de antemão todas as dúvidas, haja vista que existe a chamada capacidade tributária, que a despeito da semelhança de grafia, guarda distância ponderável em relação à primeira noção referida, conforme será explicado no momento próprio.
Existem vários designativos para a chamada capacidade contributiva, conforme a época, o lugar e autor do pensamento. Assim é que, no Brasil, usam-se, a par da primeira, as denominações de capacidade econômica (alguns, sem razão, vêem nessa expressão algo diverso da capacidade contributiva), proporcionalidade à capacidade contributiva, capacidade de contribuir, aptidão econômica, tributação de acordo com a capacidade contributiva e capacidade de pagar tributos. No direito anglo-saxônico, empregam-se as designações “ability to pay” e “capacity to pay”. Na língua espanhola, a capacidade contributiva ora atende pela denominação de “capacidad contributiva”, ora por “capacidad económica”. Os italianos referem-se a “capacità contributiva”. Em francês diz-se capacité de payer, facultés contributive e capacité contributive.
A capacidade contributiva pode ser conceituada como sendo a capacidade, relativa ao contribuinte, de arcar com o pagamento de tributos. Por outras palavras, é a capacidade econômica do indivíduo de suportar o ônus tributário.
Mas o que significa ter capacidade econômica? Os escritores espanhóis Eusebio González e Ernesto Lejeune formulam idêntica pergunta e apresentam a resposta prontamente:
“Pero ¿ que significa tener capacidad económica? Puesto que el tributo, como se verá, se resuelve en una prestación de carácter pecuniario, tener capacidad económica no puede significar otra cosa que disponer de recursos económicos con cargo a los cuales sea posible realizar esa prestación en que el tributo consiste. Dicho más sensillamente, se tiene capacidad económica cuando se es titular de una riqueza. Como ha señalado el Tribunal Constitucional con toda precisión y en una Sentencia reiteradamente citada (20 de Julio de 1981) «capacidad económica, a efectos de contribuir a los gastos públicos, tanto significa como la incorporación de una exigencia lógica que obliga a buscar la riqueza allí donde la riqueza se encuentra»”[1].
Dito de outra forma, a capacidade contributiva exprime:
“Aptidão que têm, do ponto de vista econômico, os destinatários da incidência para suportar os ônus da tributação.
Recomendam os doutrinadores da ciência das finanças que a exigência de tributos obedeça às condições dos tributados. Assim, não se deve exigir tributo que não possa ser absorvido pela economia ou, em outras palavras, não possa ser suportado pelos contribuintes”[2].
No raciocínio idealizado pelo célebre tributarista Dino Jarach, pode-se deduzir que a capacidade contributiva tem um inafastável matiz de valoração política:
“Por nossa parte, consideramos que o princípio da capacidade contributiva, tal como se aceita na atualidade, não é uma medida objetiva da riqueza dos contribuintes, senão uma valoração política da mesma. Esta valoração política implica instrumentar o imposto sobre a base dos valores que conformam o acervo ideológico do governo. Isso exclui a possibilidade de um contraste entre os fins da política fiscal, no sentido das finanças modernas e o princípio de igualdade identificado com o da capacidade contributiva, visto que esta contempla todos os valores relevantes para a atividade do Estado. Com isso não se reduz o princípio da capacidade contributiva porquanto esta contempla todos os valores relevantes para a atividade do Estado. Com isso não se reduz o princípio da capacidade contributiva a um cascarrão vazio de conteúdo, já que este corresponde precisamente aos fins e propósitos da política fiscal”[3] (tradução livre).
Em percuciente explanação, que traduzimos livremente, Jose Luis Perez de Ayala e Miguel Perez de Ayala Bicerril destacam três aspectos da capacidade contributiva: a) o primeiro diz respeito ao fato de que nem sempre se requer uma “contribuição” positiva da cada figura tributária para realização do princípio, senão uma pretensão meramente negativa: que as espécies tributárias não atentem contra os requisitos mínimos derivados da capacidade econômica; b) em segundo lugar, ao lidarmos com um imposto determinado, para calibrar sua adequação à capacidade econômica, não será necessário, sempre e em cada caso particular, que o fato imponível de tal figura tributária seja indicativo de riqueza (podem existir impostos que recaiam sobre inexistente capacidade econômica, sem que isto desqualifique a existência da predita figura); c) o princípio da capacidade contributiva ou econômica se torna o princípio base de todo regramento tributário, de tal maneira que todos os demais princípios constitucionais tributários se configuram, somente podem ser compreendidos, em torno do princípio da capacidade contributiva”[4].
Um tema que não deve escapar à análise do operador do direito é a essência dos institutos jurídicos. Dessarte, no que tange ao princípio da capacidade contributiva, importa perscrutar a sua essência, ou dito de outra forma, aquilo que está no âmago da noção de capacidade de pagar tributos. Uma traço essencial do princípio da capacidade contributiva, por certo, é a idéia de limitação ao poder de tributar. E por quê? Um começo de explicação seria a célebre frase do Chief Justice Marshall, quando no caso líder McCullock v. Maryland, afirmou que “o poder de tributar é o poder de destruir” (“the power to tax [is] the power to destroy”[5]). Dito de outra maneira, a capacidade contributiva atua contendo e refreando uma tributação excessiva , de efeitos potencialmente destrutivos, que poderia ultrapassar as forças econômicas do contribuinte, reduzindo-o à ruína ou, o que também é grave, debilitando sua subsistência.
A capacidade contributiva (capacidade econômica de pagar tributos) pode ser bipartida em objetiva e subjetiva:
a) Capacidade contributiva subjetiva ou relativa: é a efetiva e concreta capacidade de pagar tributos de cada contribuinte [6].
b) Capacidade contributiva objetiva ou absoluta: é a aptidão genérica para pagar tributos[7].
Assim, a capacidade contributiva subjetiva ou relativa é reconhecida quando opera-se uma autêntica individualização do tributo, valorando-se as distintas circunstâncias pessoais e familiares de cada contribuinte.
Estar-se-ia diante da capacidade contributiva objetiva ou absoluta naqueles casos em que o legislador mira as manifestações objetivas de riqueza.
O consagrado Prof. Aliomar Baleeiro, mediante engenhosa reflexão, diferencia a capacidade econômica objetiva da subjetiva. No dizer do renomado mestre, a capacidade econômica objetiva seria aquela cuja medição da base econômica repousa em circunstâncias concretas, tais como a renda ou o patrimônio, com abstração das condições individuais dos contribuintes. Em contrapartida, a capacidade econômica subjetiva seria aferida com auxílio da apreciação de fatores subjetivos, como a idade, saúde, estado civil, encargos de família, individualmente considerados. Sob tal perspectiva, o valor do patrimônio ou da renda, isoladamente considerados, não é índice seguro de capacidade contributiva[8].
Existem índices diretos e indiretos de capacidade contributiva[9]. Tratam-se de signos relativos a manifestações exteriores de riqueza. Podem ser apontados como índices diretos de capacidade contributiva a renda e o patrimônio; os índices indiretos são a circulação de bens, o consumo, os quais pressupõem a existência de renda ou patrimônio prévios, daí o qualificativo “indireto”, exprimindo que a capacidade contributiva é detectada, no último caso, por situações indiciárias, que conduzem aos sinais indicativos de riqueza (patrimônio ou renda)[10].
Notas
[1] GONZÁLES, Eusebio; Lejeune, Ernesto. Derecho Tributario. Salamanca: Plaza Universitaria Ediciones, 1997. v. I. p. 158.
[2] Capacidade Contributiva. In: FRANÇA, R. Limongi (coord.). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. v. 13. p. 22.
[3] JARACH, Dino. Finanzas Públicas y Derecho Tributario, p. 303-304.
[4] AYALA, Jose Luis Perez de; BECERRIL, Miguel Perez de Ayala. Fundamentos de Derecho Tributario. 3. ed. Madrid: Edersa, 1999. p. 73-74.
[5] O eminente constitucionalista norte-americano LaurenceTribe esmiúça o significado da célebre máxima citada, em fecunda análise, que traduzimos livremente: “seria terrivelmente difícil para as cortes, uma vez tendo dado luz verde para a tributação de um dado tipo, começar a mudar para a cor vermelha quando as alíquotas dos tributos ficassem excessivas, o único caminho para proteger o governo federal da tributação estadual potencialmente destrutiva, falto de requisição ao Congresso para considerar cada caso em si mesmo, era promulgar uma regra contra qualquer tributo estadual sobre um instrumental federal como tal sem prévio consentimento congressional” (American Constitucional Law. 3. ed. New York: Foundation Press, 2000. v. I. p. 1.148).
[6] GONZÁLES, Eusebio; Lejeune, Ernesto. Op. cit. p. 161.
[7] Idem. Ibidem. p. 161.
[8] BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 5. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 1977. p. 368-369.
[9] Principalmente por influência da doutrina de Adam Smith, a renda foi durante significativo período de tempo enfatizada com índice apropriado da capacidade para pagar, em detrimento da propriedade. Nessa ordem de idéias, “o imposto de renda pessoal passou a ser considerado como o tributo mais eqüitativo”, segundo afirma Richard Abel Musgrave. O autor citado acrescenta: “O tratamento de índices, tais como lucros não distribuídos das sociedades anônimas, lucros de estoques, lucros capitais diferidos, ou depreciação, não preocupou os autores clássicos, mas hoje encontra-se entre os maiores problemas da tributação” (Teoria das Finanças Públicas – Um Estudo de Economia Governamental, p. 128).
[10] Dizem Eusebio González e Ernesto Lejeune: “Dicho lo anterior, hemos de dar un paso más: ¿como se concreta esa existencia de riqueza que, al tiempo que legitima para establecer y recaudar tributos obliga pagarlos? A este respecto se ha generalizado en la doctrina la referencia a los llamados índices directos e índices indirectos de capacidad contributiva. Son índices directos la renda y el patrimonio; e índices indirectos la circulación de bienes, en definitiva la realización de gasto, en la medida en que ésto solo es posible a partir de la previa existencia de una renta o patrimonio” (Derecho Tributario. Salamanca: Plaza Universitaria Ediciones, 1997. v. I. p. 159.