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Fundamentação e coisa julgada material.

Breve análise acerca dos reflexos da fundamentação das decisões judiciais sobre a coisa julgada material

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Agenda 19/04/2012 às 09:44

A consideração isolada da parte dispositiva da decisão, em muitos casos, não é suficiente para a identificação do objeto sobre o qual recairá a autoridade da coisa julgada material. É imprescindível, portanto, que o dispositivo seja interpretado com base na fundamentação.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O dever de fundamentar as decisões judiciais; 3. A fundamentação como parâmetro interpretativo da coisa julgada material; 4 O papel da fundamentação na coisa julgada secundum eventum probationis; 5. As consequências da ausência de fundamentação; 6. Considerações finais.

RESUMO: Apenas as questões principais são alcançadas pela coisa julgada material e seus efeitos; as questões resolvidas incidenter tantum na fundamentação do julgado não se tornam indiscutíveis por força desse instituto. A despeito disso, elas são extremamente relevantes para fixar o alcance da coisa julgada material (a parte dispositiva deve ser interpretada com base na fundamentação); bem assim como para determinar, em alguns casos, se a norma concreta contida no dispositivo se tornará, ou não, imutável. Desta última hipótese, cita-se como exemplo a formação da coisa julgada secundum eventum probationis, isto é, apenas quando houver o esgotamento de todos os meios probatórios. Portanto, é extremamente importante o estudo da relação existente entre a fundamentação e a coisa julgada material.

PALAVRAS CHAVES: FUNDAMENTAÇÃO; COISA JULGADA; IMUTABILIDADE


1 INTRODUÇÃO

Ao estudo da relação existente entre as questões resolvidas incidenter tantum e a coisa julgada material se dedica este artigo, cujo resultado há de demonstrar que, embora não seja acobertada pelo instituto, a fundamentação é extremamente importante para fixar o seu alcance; bem como para determinar, em alguns casos, se o dispositivo da decisão se tornará, ou não, imutável por força da coisa julgada material.


2 O DEVER DE FUNDAMENTAR AS DECISÕES JUDICIAIS

A fundamentação é o elemento da decisão judicial que traduz o resultado de um ato de inteligência relativo ao exame e a conseqüente valoração das questões de fato e de direito deduzidas pelas partes no processo (OLIVEIRA, 2004, p. 199). Nesta etapa da decisão, o juiz analisa as questões que devem ser solucionadas como premissa lógica para que a questão principal, objeto da pretensão processual das partes, seja decidida.

A maioria dos ordenamentos processuais contemporâneos consagra expressamente o dever de motivar as decisões judiciais. No Brasil, esse dever encontra-se em diversos dispositivos legais do Código de Processo Civil, tais como no art. 165 e no art. 458. Em alguns casos, a própria lei permite que a fundamentação seja concisa, como prevê o aludido art. 165, mas, “concisión no significa omissión: en ninguna hipotese se le faculta al juez la posibilidad de pasar em silencio total el fundamento de su resolución.”[1] (MOREIRA, 2004, p. 108-110). Toda decisão judicial – independente de sua natureza ou da denominação que lhe seja atribuída – deve ser fundamentada.

Com a Constituição Federal de 1988, a regra que impõe a necessidade de fundamentar as decisões judiciais, prevista em seu art. 93, inciso IX, ganhou status de garantia constitucional, tornando-se um direito fundamental do jurisdicionado. Mas, ainda que não existisse essa previsão constitucional, a regra da motivação se caracterizaria como direito fundamental, porque é consectário do Estado Democrático de Direito e decorre da garantia do devido processo legal.


3 A FUNDAMENTAÇÃO COMO PARÂMETRO INTERPRETATIVO DA COISA JULGADA MATERIAL

A fundamentação é elemento indispensável para que o conteúdo da decisão – aquela parte sobre a qual recairá a autoridade da coisa julgada – seja adequadamente interpretado. Nesse sentido, o art. 469 do Código de Processo Civil reconhece que, embora os motivos, em si, não sejam aptos a formação da coisa julgada, eles são “importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença”.

A parte dispositiva da decisão judicial é texto, sinal lingüístico, a partir do qual é alcançada a determinação de um conteúdo normativo, por meio da interpretação[2]. “Atividade que se presta a transformar disposições (textos, enunciados) em normas, a interpretação é meio de expressão dos conteúdos normativos das disposições, meio através do qual o intérprete desvenda as normas contidas nas disposições.” (GRAU, 2003, p. 80). Contudo, interpretar é construir a partir de algo (ÁVILA, 2009, p. 33), razão por que a norma extraída da decisão deve ser produzida pelo intérprete não de forma isolada, destacada do todo, mas a partir do seu percurso, da sua fundamentação.

Do mesmo modo, o texto contido na parte dispositiva do comando decisório não pode ser interpretado como “um simples retrato”, prescindindo do seu histórico e de suas razões – elementos constantes da fundamentação. Nesse ponto, imprescindível a análise de algumas hipóteses que demonstram, em termos práticos, a importância do tema[3].

As sentenças que disciplinam relações jurídicas continuativas versam sobre obrigações homogêneas de trato sucessivo, que se projetam no tempo, envolvendo, em regra, prestações periódicas (AMARAL SANTOS, 2003, p. 59-60). Elas estão disciplinadas no art. 471 do Código de Processo Civil, segundo o qual “nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito” (inciso I). Com base nesse dispositivo, discute-se na doutrina a aptidão dessas sentenças para revestir-se da autoridade da coisa julgada material.

O posicionamento majoritário é no sentido de que tais sentenças, como todas as outras, são aptas a produzir coisa julgada material[4]. A alteração dos fatos que dão ensejo à relação jurídica continuativa, em verdade, legitimaria a propositura de uma nova ação – com causa de pedir e pedido distintos –, fazendo surgir uma nova decisão e uma nova coisa julgada (MOREIRA, 1984. p. 110-111). Diante desse quadro, é a análise dos fundamentos da decisão coberta pela coisa julgada material que permitirá concluir em quais circunstâncias a primeira decisão foi proferida, se há novas circunstâncias, e havendo, se elas autorizam o ajuizamento da ação revisional. A fundamentação, portanto, é elemento imprescindível à determinação do alcance da coisa julgada material formada nas demandas sobre relações jurídicas continuativas.  

O exemplo típico das relações jurídicas continuativas é o dever de prestar alimentos, de cujos pressupostos dois são naturalmente variáveis ao longo do tempo: a necessidade do alimentando e a possibilidade do alimentante. Se, em uma primeira ação, o pedido de alimentos é julgado improcedente, os limites da coisa julgada material que recairá sobre a decisão serão determinados pela fundamentação, onde será constatada a causa da improcedência. Se o pedido foi rejeitado por negativa da paternidade do réu, a alteração das circunstâncias fáticas, a primeira vista, não dará ensejo a uma nova ação; se foi rejeitado porque se entendeu que não havia o binômio necessidade-possibilidade, é preciso analisar, tendo como base a situação jurídica concreta regulada na primeira decisão, se a atual circunstância configura uma nova causa de pedir e permite o exame da nova ação.

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Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina ainda trazem mais um exemplo para o tema aludido quando afirmam que, declarada a falta de requisito do título de crédito com a ausência do nome do beneficiário, o ajuizamento de nova execução com base no mesmo título, cuja omissão foi suprida, não viola a garantia da coisa julgada (2003. p. 101). Para saber a causa pela qual foi declarada a falta de requisito do título – e admitir, por conseguinte, que seja ajuizada uma nova ação de execução com base agora em um título executivo (antes inexistente diante da falta de requisito) – é imprescindível analisar a fundamentação. A parte dispositiva da decisão, pois, deverá ser interpretada à luz dos seus fundamentos.

Feitos esses esclarecimentos, torna-se evidente que a consideração isolada da parte dispositiva da decisão, em muitos casos, não é suficiente para a identificação do objeto sobre o qual recairá a autoridade da coisa julgada material. É imprescindível, portanto, que o dispositivo seja interpretado com base na fundamentação, elemento que revela o caminho traçado até a decisão, suas premissas e as especificidades do caso. A fundamentação, pois, é elemento extremamente útil ao instituto da coisa julgada material.


4 O PAPEL DA FUNDAMENTAÇÃO NA COISA JULGADA SECUNDUM EVENTUM PROBATIONIS

No sistema processual civil brasileiro, em regra, a coisa julgada se forma independentemente do resultado do processo, do teor da decisão proferida e de sua fundamentação – é a coisa julgada pro et contra. Excepcionalmente, a coisa julgada pode ser secundum eventum litis, que é aquela formada somente em um dos resultados da demanda; ou secundum eventum probationis, quando a sua produção está condicionada ao esgotamento de todos os meios probatórios. Nesse último caso, se a decisão proferida no processo julgar improcedente a demanda por insuficiência de provas, ela não se tornará imutável, como ocorre, por exemplo, nas ações coletivas[5].

As peculiaridades do direito material a ser tutelado nas ações coletivas justificam a necessidade de ser adotado um regramento especial no que concerne à coisa julgada. Como esses direitos são, de um modo geral, insuscetíveis de divisão, a decisão proferida em seu bojo atingirá necessariamente a esfera jurídica de todos os membros da coletividade. Por conta disso, uma delimitação excessivamente rigorosa dos limites da coisa julgada poderia importar uma interferência injusta nas garantias do indivíduo titular do direito subjetivo, que ficaria sujeito a imutabilidade de uma decisão da qual não participou (DIDIER JR., ZANETI JR., 2010, p. 365).

Uma das soluções encontradas pelo ordenamento para adaptar o instituto da coisa julgada tradicional às peculiaridades das ações de caráter coletivo foi o modo de produção secundum eventum probationis. Nesse passo, a Lei Federal n. 4.717/65, que dispõe sobre a ação popular, estabeleceu, em seu art. 18, que “a sentença terá eficácia de coisa julgada oponível ‘erga omnes’, exceto no caso de haver sido a ação julgada improcedente por deficiência de prova; neste caso, qualquer cidadão poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”. Do mesmo modo, o art. 16 da Lei n. 7.347/85, cuja redação foi acrescentada pela Lei n. 9.494/97, também estabeleceu para a ação civil pública a coisa julgada secundum eventum probationis.

Sistematizando o regime jurídico da coisa julgada coletiva, o Código de Defesa do Consumidor, que funciona como a regra geral do microsistema da tutela coletiva, apresentou o seguinte regramento:

Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada:

I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81;

II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;

III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.

Com base no mencionado dispositivo legal, surgem três hipóteses: i) caso seja julgado improcedente o pedido deduzido na ação coletiva, com instrução probatória suficiente, a sentença fará coisa julgada ultra partes ou erga omnes, para atingir os titulares dos direitos discutidos, impedindo que qualquer legitimado ajuíze a mesma ação coletiva, mas sem obstar a propositura de ações individuais por parte dos titulares do direito coletivo;  ii) se for julgado improcedente o pedido, por insuficiência de provas, a sentença não será apta a formação da coisa julgada material; iii) na hipótese de procedência do pedido, a decisão será coberta pela coisa julgada material, com eficácia erga omnes ou ultra partes, beneficiando a esfera individual de todos os titulares do direito[6]

Sobre a natureza da decisão que julga improcedente a demanda por ausência de provas, Hely Lopes Meirelles sustenta que ela não examina a questão de mérito e, por essa razão, não está apta a formação da coisa julgada material (1995, p. 120).  Nessa mesma linha, Fredie Didier Jr. e Hermes Zanetti Jr. explicam que “na verdade a decisão é considerada uma decisão sem enfrentamento do mérito, a questão não é decidida ou é decidida sem o caráter de definitividade em face da própria cognição revelar-se secundum eventum probationis”( DIDIER. JR., ZANETI JR., 2010, p. 365.). Em seguida, concluem ser essa uma exceção a regra que veda o non liquet em matéria probatória.

Adotando posição distinta, Antônio Gidi defende que o juiz não se exime de julgar e decidir a lide, “julga com base no ônus da prova, que é técnica desenvolvida pelo direito moderno para impedir que, dada a insuficiência de provas, e em respeito à segurança jurídica, fique a causa sem um pronunciamento judicial que ponha fim ao conflito” (1995, p. 121). Ao que parece, esse posicionamento é o mais razoável, pois não se pode negar o enfrentamento do mérito quando o juiz fixa os pontos controvertidos, analisa as questões de fato e de direito, examina as provas produzidas, conclui que elas não são suficientes para comprovar os fatos alegados pela parte autora e aplica, ao caso, a regra de ônus da prova, julgando improcedente a demanda.

Em qualquer hipótese, nos casos de improcedência da ação coletiva por insuficiência de provas, a decisão não se tornará imutável. Todos os legitimados – inclusive o mesmo autor da demanda anterior – poderá ajuizar uma ação idêntica, desde que em sua petição inicial seja indicada a produção de nova prova. Ao menos em tese, é a fundamentação que determinará se a norma jurídica concreta contida no dispositivo da decisão proferida na ação coletiva se tornará indiscutível, razão por que ela assume papel de extrema relevância para a formação da coisa julgada secundum eventum probationis.

Nesse ponto, é interessante a discussão sobre a exigência de que o juiz afirme expressamente – ou, ao menos, implicitamente –, na fundamentação da sentença, que a improcedência do pedido decorreu da insuficiência de provas, para que a coisa julgada não seja produzida.

Parte da doutrina, a qual se filia Rodolfo de Camargo Mancuso, sustenta ser condição para o afastamento da coisa julgada material a afirmação expressa de que a ação foi julgada improcedente por insuficiência de provas. Ante a omissão do julgado, caberia a parte autora interpor embargos de declaração para sanar o vício, sob pena de tornar a via coletiva definitivamente preclusa (2001. p. 284). A fundamentação da sentença, de acordo com essa teoria, assumiria papel decisivo na formação da coisa julgada material.

Uma segunda corrente doutrinária, capitaneada por Fredie Didier Jr. e Hermes Zanetti Jr., sustentam que “deve, contudo, decorrer do conteúdo da decisão que outro poderia ter sido o resultado caso o autor comprovasse os fatos constitutivos de seu direito”. Isto significa que, embora não seja necessário constar nos fundamentos do julgado a expressão “por ausência de provas”, deve ser possível inferir dos argumentos deduzidos pelo magistrado que o material probatório não foi suficiente para a comprovação do direito do autor (2010. p. 367). Seria imprescindível uma afirmação implícita de que a ação foi julgada por insuficiência de provas, razão por que a fundamentação também assumiria papel fundamental para a formação da coisa julgada material

Apresentando entendimento diverso, Antônio Gidi defende a adoção de um critério substancial para saber se a improcedência foi ocasionada por insuficiência de provas. “Assim, sempre que qualquer legitimado propuser a mesma ação coletiva com novo material probatório, demonstrará, ipso facto, que a ação coletiva anterior havia sido julgada por instrução insuficiente” (1995, p. 133-134.). Nessa linha, ainda que o juiz entenda expressamente que a parte autora não possui o direito alegado, a coisa julgada material poderá ser afastada, ante a apresentação de novas provas.

A primeira vista, a adoção dessa tese retiraria a relevância dos fundamentos da sentença proferida na primeira ação coletiva, pois – independentemente de qual fosse o seu teor – apresentada uma prova nova, a ação poderia ser repetida. Mas, mesmo se adotada a aludida tese, a apresentação de nova prova, por si só, não seria suficiente para autorizar a repetição da demanda coletiva anterior, pois seria necessário ainda verificar se naquela ação se discutiu questões de fato, bem assim se a prova é efetivamente nova e não versa sobre fatos já reconhecidamente comprovados[7]. Todos esses elementos somente poderão ser verificados na fundamentação, cujo exame se torna fundamental para saber se a segunda ação terá o seu exame obstado por força da coisa julgada material.

Segundo Antônio Gidi, sempre que houver discordância sobre questões de fato – o que, como antecipado, somente pode-se constatar a partir do exame dos fundamentos da primeira decisão – é possível, em tese, repropor a demanda com base em prova mais convincente. Já se, na ação coletiva anterior, os fatos foram incontroversos e o mérito versou apenas sobre questões de direito, a coisa julgada material recobrirá a sentença, impedindo a repropositura da ação coletiva. O só fato de outro legitimado possuir argumentos mais eficientes, não autoriza o afastamento do instituto da coisa julgada material (1995, p. 134).

Ademais, para autorizar a repetição da demanda coletiva, a prova nova deve possibilitar, ao menos em tese, que seja proferida uma decisão diversa, o que também somente poderá ser constatado a partir da fundamentação da sentença anterior. Primeiro, porque as provas já produzidas e sua respectiva valoração estão nela descritas e não deverão ser desprezadas, mas sim analisadas em conjunto com a nova prova. Segundo, porque esta última prova deve inovar em relação aos fatos já reconhecidamente comprovados (1995, p. 137), de acordo com o juízo de valor realizado na fundamentação da sentença anterior.

Em síntese, os motivos da decisão exercem papel relevante para a formação da coisa julgada secundum eventum probationis, independentemente de qual seja a tese adotada. Em qualquer hipótese, é o exame da fundamentação que evidenciará: i) se a demanda coletiva versa sobre questões de fato, condição indispensável para que a decisão não se torne imutável; ii) quais foram as provas produzidas no processo anterior – pois elas serão analisadas em conjunto com as novas provas; iii) quais fatos já foram comprovados na primeira demanda, o que é fundamental para averiguar se as provas novas terão o condão de gerar um resultado distinto.

Reunindo o que há de interessante nas teorias anteriormente expostas e, partindo das noções básicas acerca do instituto da coisa julgada material, analisado no capítulo anterior, adota-se neste trabalho um terceiro posicionamento sobre o tema.

Como cediço, a coisa julgada existe a partir do momento em que são reunidos os quatro pressupostos que dão causa ao fato jurídico cujo efeito é a imutabilidade da decisão judicial; e não, em um segundo momento, quando se reproduz a ação anteriormente ajuizada[8]. Por isso, a coisa julgada nas ações coletivas também se formará no primeiro momento, após ser constatada a presença de seus pressupostos, e não quando a mesma ação coletiva for proposta com novo material probatório. Caso contrário, haverá um grande enfraquecimento do instituto, cuja produção ficará submetida ao arbítrio do magistrado responsável pelo exame da segunda demanda, afastando-se a necessária estabilidade das relações jurídicas.

Mas, considerando que os direitos tutelados nas ações coletivas demandam uma proteção maior que os direitos individuais, a coisa julgada material nessas ações somente deve se formar quando, na fundamentação da sentença, estiver explícito que o julgamento ocorreu com suficiência de provas, evidenciando-se a convicção do juiz de que não existe o direito alegado pelo autor. A decisão proferida com base em quaisquer outros motivos – ainda que não trate expressa ou implicitamente da insuficiência de provas –, não estará apta a formação da coisa julgada material.

Desse modo, o réu já saberá previamente se aquela lide poderá ser novamente submetida à apreciação judicial caso surjam novas provas; ou, se sobre ela já recaiu a eficácia preclusiva da coisa julgada material, tornando-a imutável. Assegura-se, de um lado, a estabilidade das relações jurídicas – pois já se sabe previamente se a coisa julgada material foi produzida –, preservando-se, de outro lado, os processos coletivos contra o conluio e a fraude processual. Trata-se de solução que atende aos interesses do Estado Democrático de Direito, sem perder de vista as peculiaridades das ações coletivas.

Por fim, Cristiano Chaves de Farias alerta ainda que, não apenas as ações coletivas impuseram uma nova postura acerca do instituto da coisa julgada material, como também, com muito mais razão, “as ações sobre a filiação não podem ficar emolduradas nas estreitas latitudes da coisa julgada regulada pelo CPC, art. 467 e ss" (FARIAS, 2006. p. 65.). Nessa linha, considerados os modernos métodos de investigação científica que permitem a formação de um juízo de valor mais seguro, sustenta que a técnica de produção secundum eventum probationis deve ser aplicada à coisa julgada nas ações filiatórias[9].

Adotando posicionamento distinto, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina sustentam que, embora se esteja diante da tutela do direito ao reconhecimento à filiação, existe também a “necessidade de proteger situações familiares reconhecidas e consolidadas”, razão por que não se pode aplicar a essa espécie de ações a técnica de produção secundum eventum probationis. A segurança jurídica oriunda da “coisa julgada veda que a estabilidade familiar – tão frágil nos dias de hoje – seja arranhada pelo manejo sucessivo de ações investigatórias de paternidade” (2003, p. 194).

Segundo os aludidos autores, o próprio sistema processual brasileiro já apresenta solução jurídica razoável para o problema da coisa julgada nas ações de estado, cuja aplicação realizará tanto o valor segurança jurídica, imprescindível ao Estado Democrático de Direito, como o direito ao reconhecimento da paternidade. Com base no art. 485, inciso VI, do Código de Processo Civil, segundo o qual é admissível a ação rescisória com base em documento novo, defendem o cabimento da ação rescisória com fundamento em laudo pericial novo, qual seja o exame de DNA (MEDINA, WAMBIER, 2003, p. 202.)[10].

A posição adotada por Cristiano Chaves de Farias, no sentido de aplicar às ações filiatórias a técnica da coisa julgada secundum eventum probationis, contudo, parece a mais adequada às peculiaridades dessa espécie de ações, bem assim como aos direitos por ela tutelados e a ela já vem aderindo o Superior Tribunal de Justiça[11] e demais tribunais do país. 

Com a extensão da coisa julgada secundum eventum probationis a outras demandas, como é o caso das ações relativas à filiação, a fundamentação – que determina, nessas hipóteses, se a norma jurídica concreta contida na parte dispositiva da sentença se tornará, ou não, imutável –, ganha papel cada vez mais relevante para a definição do instituto da coisa julgada material.

Sobre a autora
Gabriela Macedo Ferreira

Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia, especialista em Direito Processual Civil pelo Jus Podivm, Juíza Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Gabriela Macedo. Fundamentação e coisa julgada material.: Breve análise acerca dos reflexos da fundamentação das decisões judiciais sobre a coisa julgada material. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3214, 19 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21529. Acesso em: 2 nov. 2024.

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