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O instituto da recuperação de empresas e sua função social

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Agenda 17/04/2012 às 06:27

4. O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA

 O direito privado brasileiro passou por importantes transformações nos últimos anos, que impuseram uma releitura das suas instituições, abandonando-se a ótica individualista para assumir um posicionamento de defesa da coletividade[70]. Essa nova visão do direito privado também refletiu sobre o tratamento dispensado à empresa, que, conforme restou assentado no ponto anterior, deixou de ser vista como mero instrumento de satisfação dos seus empresários para se tornar uma instituição que deve realizar interesses de toda a sociedade.

 A empresa representa hoje um dos principais pilares da economia moderna, sendo uma grande fonte de postos de trabalho, de rendas tributárias, de fornecimento de produtos e serviços em geral e de preservação da livre concorrência. Acerca da importância econômica e social da empresa, Waldo Fazzio Júnior[71] expõe que “insolvente ou não, a empresa é uma unidade econômica que interage no mercado, compondo uma labiríntica teia de relações jurídicas com extraordinária repercussão social”, razão porque o seu desaparecimento pode causar seqüelas irrecuperáveis para o mercado e para a sociedade. Sobre o papel da empresa, é importante conhecer as lições de João Glicério Oliveira Filho[72]:

O instituto da empresa assume papel de extrema relevância na sociedade. Por meio de sua atividade dinâmica, a empresa transforma-se em grande fomentador da circulação de riquezas na sociedade. Em razão de sua atuação, verifica-se uma imensa rede de interação entre empresário e agentes assalariados e não assalariados, o que faz reduzir o índice de desemprego no país. Outrossim, a atividade empresarial permite a circulação de bens e serviços no mercado de consumo, além de fornecer receitas significativas ao Estado, por meio da arrecadação de impostos [...] vê-se que a empresa exerce papel fundamental na conformação de valores no seio da sociedade, sobretudo os valores sociais constitucionalmente protegidos.

 Diante desse papel de extrema importância que a empresa assumiu na sociedade, notadamente quando cumpre a sua função social, despontou o princípio da preservação da empresa, que, na lição de Gladston Mamede[73], consagra, sempre que possível, o prosseguimento da atividade empresarial, reconhecendo os efeitos deletérios da extinção da empresa como fator prejudicial não só para o empresário, mas também para trabalhadores, fornecedores, consumidores, parceiros negociais e para o Estado. Por isso, tal princípio deve orientar a interpretação dos dispositivos legais do Direito Empresarial, bem como deve ser utilizado no preenchimento de lacunas da lei[74]-[75]. Lançadas essas premissas, cumpre analisar o tema central deste estudo.


5 A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA E O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA COMO FUNDAMENTOS JURÍDICOS DA ALTERAÇÃO DO INSTITUTO DA CONCORDATA PELO INSTITUTO DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS.

 A nova Lei de Falências, a Lei n. 11.101, de 09.02.2005 despontou de um cenário empresarial marcado por grandes e modernas empresas corporativas, ao invés das empresas individuais e familiares que inspiraram a antiga legislação concursal, o Decreto-Lei n. 7.661/45. Seus institutos – tanto da falência quanto da concordata – não eram mais suficientes para satisfazer aos interesses envolvidos nessas grandes instituições modernas. É que a concordata havia se tornado obsoleta, dando ensejo a diversas fraudes e não evitando mais a derrocada da empresa em crise, de modo que a reforma do Direito Falimentar, mais do que um mero aprimoramento jurídico do Direito Empresarial, havia se tornado um imperativo da sociedade brasileira. Nesse ponto, são categóricas as palavras de José Cretela Neto[76]:

Imposta a mais de seis décadas, nos estertores do período ditatorial de Getúlio Vargas, a legislação anterior limitava-se a oferecer regras para o fechamento de empresas com dificuldades financeiras e critérios para que os credores pudessem ressarcir-se de seus prejuízos. [...] frequentemente o comerciante decretado falido deslocava as suas atividades para, em nome de terceiros, continuar no mercado, sem sofrer qualquer espécie de punição, ainda que a falência fosse fraudulenta. Enfim, punia-se, em regra, os bons comerciantes – que ficavam a ver navios com seus créditos esfumaçando-se no decorrer do processo – e deixava-se impunes os mal intencionados.

 Tradicionalmente, a falência foi instituída para eliminar do mercado as empresas deficitárias, os empresários “mal intencionados”, mediante a liquidação judicial dos seus ativos para a satisfação dos credores, resultando no encerramento de suas atividades e na conseqüente dispensa de seus empregados. Consagrou-se, assim, o mito de que o comerciante falia por má-fé, por ter o intuito de lesar os seus credores[77], o que não é verdade.

 Os empresários considerados de boa-fé, por sua vez, contavam com a concordata – um favor legal concedido, independentemente da vontade dos credores, ao devedor comerciante honesto e infeliz que preenchesse determinados requisitos formais taxativamente previstos em lei. Esse favor poderia consistir na prorrogação do prazo para pagamento da dívida, na redução do seu valor ou na reunião de ambos os benefícios.

 Hoje, em face dos riscos que a atividade empresarial apresenta, tão suscetível a sofrer abalos decorrentes das crises políticas, das tensões externas e dos colapsos de outros setores da economia, não há dúvidas de que a maioria dos empresários vai à falência por circunstâncias alheias à sua vontade – ou até mesmo por exercer uma má administração – e não exatamente por má-fé.

 Uma nova visão do Direito Falimentar vem, então, sendo construída, afastando a idéia de falência e voltando-se cada vez mais para a criação de mecanismos de reorganização da empresa. Uma unidade empresarial pode representar um elo insubstituível na cadeia produtiva, razão pela qual a sua derrocada causaria graves danos para a economia e para a sociedade como um todo. Comprometeria gravemente o funcionamento de outras empresas; o Estado perderia divisas, já que deixaria de arrecadar seus tributos; postos de trabalho seriam extintos; consumidores não seriam mais beneficiados com o fornecimento de certos serviços ou produtos, além de que seriam também prejudicados com a redução da concorrência naquele setor. Daí porque o Direito Falimentar passa a se preocupar de forma efetiva com a preservação da empresa e não apenas com a sua liquidação judicial. Com precisão, ressalta Waldo Fazzio Junior[78]:

[...] mediante procedimentos de soerguimento da empresa em crise, os credores têm melhores perspectivas de realização de seus haveres, os fornecedores não perdem o cliente, os empregados mantêm seus empregos e o mercado sofre menos (impossível não sofrer) os impactos e as repercussões da insolvência empresarial.

 A empresa que cumpre a sua função social – naquela acepção aqui chamada de lato sensu e também na stricto sensu – exerce um papel importantíssimo na sociedade e, por isso, deve ser preservada. Primeiro, porque cria uma extensa rede de interação e de interdependência entre agentes econômicos assalariados e não assalariados que gravitam em torno dos empreendimentos empresariais. Segundo, porque produz grande parcela de bens e presta a maioria dos serviços que atendem as necessidades da população. Terceiro, porque é uma importante fonte de arrecadação fiscal para o Estado[79]. Daí porque se invocam, neste artigo, a função social e o princípio da preservação da empresa como fundamentos jurídicos da substituição do instituto da concordata pelo instituto da recuperação de empresas, isto é, dessa nova visão do Direito Falimentar[80].

 Enquanto a empresa era tida como mero instrumento de satisfação dos interesses particulares de seus empresários, tendo como função única gerar dividendos para eles e para os investidores – note que aqui não havia que se falar em função social da empresa, mas apenas em função econômica –, a concordata e a falência atendiam bem aos interesses envolvidos na empresa, ao menos em tese. O fato de ser exigido o requisito da boa-fé para a concessão do benefício, por si só, já era indicativo da impossibilidade de se desassociar a empresa, de seus proprietários. A concordata, portanto, estava voltada para o empresário, para a satisfação de seus interesses e não para a realização de uma utilidade social.

 Tanto era assim que esse instituto estava concebido na Lei n. 7.661/45 como um favor legal, concedido pelo juiz independentemente da aquiescência dos credores, sem levar em consideração até mesmo a viabilidade de recuperação daquela empresa e a função que ela exercia na sociedade – se tal função era merecedora do esforço a ser feito pela sociedade em prol da sua recuperação (o que pressupunha um estudo efetivo de viabilidade da empresa). Desconsiderava-se, assim, o próprio funcionamento do mercado, o que terminava transferindo o risco da atividade empresarial do empresário para os seus credores e, conseqüentemente, para a própria sociedade. Tratando da ineficácia da concordata na tarefa de soerguimento da empresa e apontando tal instituto como instrumento voltado tão somente para os interesses dos empresários devedores, afirma mais uma vez com precisão José Cretela Neto[81]:

as concordatas fraudulentas passaram a ser corriqueiras [...] e representavam uma janela de oportunidades ímpar para que, durante até dois anos (o prazo da concordata) fosse elaborado um planejamento astuto para burlar o Fisco, os empregados, os fornecedores e a própria sociedade.

 Quando começa a se delinear essa concepção de função social, a empresa passa a assumir um papel muito mais relevante na sociedade. O poder-dever do empresário, dos controladores e dos administradores[82] da empresa de harmonizarem as suas atividades conforme os interesses da sociedade – quer seja como fonte geradora de empregos, renda, tributos, riquezas em geral (função social lato sensu), quer seja por meio de deveres positivos e negativos previstos nas leis e na Constituição Federal (função social stricto sensu) – trouxe uma nova visão da empresa também para o Direito Falimentar, que passou a ter como foco primordial a reestruturação da empresa em crise[83]. Foi, portanto, essa a concepção que embalou o legislador falimentar de 2005 na criação do instituto da recuperação judicial e extrajudicial de empresas[84].

 A função social da empresa, como visto, foi elemento indispensável para que a empresa assumisse a importância que revela hoje na sociedade – não apenas como unidade de produção capitalista, mas também como fonte de riquezas em geral para a sociedade. Em face dessa importância, o foco do legislador falimentar voltou-se primordialmente para a recuperação da empresa em crise. Por isso, pode-se afirmar que a função social, em ambas as acepções aqui defendidas, e o princípio da preservação da empresa representam os fundamentos jurídicos da alteração dos institutos falimentares.

5.1 AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DO NOVO INSTITUTO E SEUS FUNDAMENTOS

 Delineados os aspectos jurídicos que apontam a função social e o princípio da preservação da empresa como fundamentos da alteração dos institutos falimentares, resta comprovar que tal premissa encontra respaldo na própria Lei n. 11.101/05. Para tanto, faz-se necessário analisar as principais mudanças trazidas pelo instituto da recuperação de empresas, buscando, em cada uma delas, o seu fundamento.

5.1.1 O requisito da viabilidade jurídica da atividade econômica

 O primeiro pressuposto exigido pela Nova Lei de Falências para que uma empresa ou um empresário obtenha o benefício da recuperação de empresas é a sua viabilidade[85], ou seja, que a mesma tenha potencial para soerguer-se. Malgrado em um primeiro momento defenda-se que a falência deve ser evitada a qualquer custo, na verdade, nem toda falência é prejudicial para sociedade. É que caso as empresas tecnologicamente atrasadas, descapitalizadas ou que possuam uma organização administrativa precária não sejam encerradas, o custo da sua recuperação – que nunca irá ocorrer – será suportado pelos credores, e estes irão repassá-lo à sociedade [86].

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 Por se tratar de um tema que repercute sobre os interesses de toda a sociedade brasileira, a distinção entre empresas viáveis, portanto, passíveis de se beneficiar do instituto, e inviáveis deve ser feita pelo Poder Judiciário[87]. De todo modo, a empresa viável será sempre aquela que tem condições de devolver à sociedade brasileira, pelo menos em parte, o sacrifício feito para salvá-la. Nesse mister, quem melhor sistematizou o exame da viabilidade, a ser feito pelo Judiciário, foi Fábio Ulhoa Coelho[88], no terceiro volume do seu Curso de Direito Comercial, apontando os seguintes critérios como balizas: importância social da empresa; mão de obra e tecnologias empregadas, volume do ativo e passivo, tempo de funcionamento e porte econômico.

 Na vigência do Decreto-Lei n. 7.661, por seu turno, não era exigido um projeto que demonstrasse a viabilidade do cumprimento da concordata impetrada. A lei exigia “apenas uma vaga demonstração da potencialidade da empresa, deduzida de um balanço de determinação, nas mais das vezes montado de ‘encomenda’ ”[89]. Não havia, portanto, uma preocupação efetiva com o fato de a empresa ter ou não potencial para se recuperar, merecer ou não os esforços que seriam despendidos pela sua recuperação e, ainda, se traria alguma utilidade para o grupo social ao ser reestruturada. O foco do instituto, pois, não estava na empresa, mas sim no empresário, em dar uma segunda chance para aquele sujeito honesto e de boa-fé que fora mal sucedido em seus negócios.

 Com a nova lei, o foco volta-se para a empresa, não mais para o empresário. Porque a empresa cumpre uma função social, agrega uma utilidade para o meio em que se insere, gerando empregos e boas condições de trabalho, riqueza, tributos, ela deve ser recuperada. Note, porém, que apenas as empresas viáveis, ou seja, que cumprem uma função social lato sensu, devem ser beneficiadas pelo instituto. Tal viabilidade deve ser analisada, como antecipado, de acordo com a importância social, a mão de obra e tecnologias empregadas, a idade da empresa e o seu porte econômico[90], que são fatores indicativos também do atendimento de uma maior ou menor função social.

 Vê, portanto, que o cumprimento da função social, em sentido amplo e restrito, passa a ser parâmetro balizador da concessão do benefício da recuperação judicial e extrajudicial de empresa, deixando extreme de dúvidas a assertiva de ser ela um dos fundamentos jurídicos da alteração dos institutos falimentares.

5.1.2. Os meios de recuperação.

 No âmbito do Decreto-Lei n. 7.611/45, os meios de recuperação da empresa se restringiam à prorrogação do prazo para pagamento da dívida[91], à redução do seu valor[92] ou à reunião de ambos os benefícios[93]. Malgrado a concordata suspensiva também objetivasse a recuperação do negócio do devedor, o instituto possuía uma amplitude muito restrita. Com precisão, leciona Luiz Fernando Valente de Paiva[94]sobre o tema:

[...] o devedor que impetrasse concordata preventiva via-se, em muitos casos, obrigado a pagar débitos já vencidos nas mesmas condições de débitos que somente se venceriam anos após, como também via-se impedido de pagar fornecedores com créditos de pequena monta, que algumas vezes não chegavam sequer a 1% do valor dos créditos sujeitos à moratória. A proibição de pagamento desses pequenos fornecedores não produzia nenhum efeito em termos de adequação do fluxo de caixa do devedor.

 Diante dessa realidade, a Lei n. 11.101/05 trouxe a lume um fértil elenco de meios capazes de proporcionar a recuperação empresarial, possibilitando ao devedor a propositura de um plano moldado às suas reais condições e que tivesse efetivamente o condão de soerguer a atividade empresarial, permitindo a remoção das causas da crise. Além dos meios previstos na concordata, a recuperação judicial e extrajudicial de empresas contempla ainda diversos outros meios como a fusão ou cessão de empresas; a alteração ou substituição do bloco de controle social e de administradores, aumento do capital social; arrendamento; constituição de garantias reais ou pessoais e condições especiais de pagamentos[95]. Sobre o assunto, convém transcrever a lição de Waldo Fazzio Junior[96]:

Com a oportunidade da necessária reforma da legislação falimentar, vem a não menos necessária reformulação dos propósitos justificadores de soluções para as crises econômico-financeiras das empresas nacionais. Essas soluções não estão mais ancoradas, simplesmente, à proteção dos fornecedores do devedor, mas amarram-se à tutela de créditos sociais e públicos. Percebeu-se que de nada adianta a concessão de perdões e moratórias para a preservação da atividade empresarial, se a empresa endividada e descapitalizada não cumpre sua função social e acaba constituindo num estorvo para o mercado.

 O mais importante, contudo, é que o plano seja econômica e financeiramente viável, o que é vital para o sucesso da empreitada. Raquel Sztajn[97] leciona que os planos pouco viáveis, além de manter a situação de crise, podem – e é provável que assim ocorra – agravá-la, gerando efeito oposto ao que foi pretendido pela lei. Nesse ponto, fazem-se categóricas as palavras da autora:

Aprovar planos mal formulados a pretexto de que a ‘função social da empresa’ se superpõe aos interesses dos credores pode resultar em aprofundamento da crise, envolvimento de maior número de credores quando a falência vier a ser a única solução para a crise da tal empresa.

 O que se extrai dessa opção legislativa é que o legislador está efetivamente preocupado com o soerguimento da empresa e não apenas com o atendimento dos interesses de empresários e credores. Esses, por óbvio, também serão beneficiados com a recuperação, mas tal benefício é um mero consectário lógico da recuperação da empresa. O que o legislador deseja criar, em verdade, são mecanismos para viabilizar reestruturação da atividade empresarial, ainda que para tanto seja necessário reestruturar o poder de controle, a administração da empresa e até mesmo afastar o seu proprietário. Mais uma vez, foi a função social da empresa a mola propulsora das escolhas do legislador rumo à criação de mecanismos mais efetivos para viabilizar a recuperação da sociedade empresária.

5.1.3 A separação dos conceitos de empresa e empresário.

 A complexidade crescente das empresas contemporâneas tornou insustentável a atribuição do poder de controle aos proprietários, como decorrência natural do direito de propriedade. Igualmente, os conceitos de empresa e empresário tornaram-se cada vez mais distintos e autônomos, uma vez que a atividade da empresa tendeu a se destacar, necessariamente, do regime de propriedade. Assim, se o empresário detém o poder de controle da empresa e realiza uma má administração, é ele quem deve ser punido. Diante da nova realidade empresarial, não interessa mais punir a empresa, e sim, o mau empresário. A empresa, quando viável e útil para a sociedade, deve ser preservada, porquanto ela realize uma função social.

 A função social da empresa não é mais um poder-dever do proprietário (ou apenas do proprietário), mas do controlador[98]. O conceito de poder de controle não se confunde com o de propriedade – enquanto o primeiro é um poder de organização e direção, envolvendo pessoas e coisas; o segundo é um direito real que incide sobre a coisa. O que se busca, atualmente, não é apenas a plena realização do proprietário da empresa no exercício de seus direitos, mas também a satisfação de interesses sociais que a empresa deve atender. Acerca do tema, é imprescindível conhecer as lições de Fábio Konder Comparato[99]:

O reconhecimento claro e conseqüente de que o controle empresarial não é propriedade implica uma verdadeira revolução copernicana no estatuto da empresa, que passa de objeto a sujeito de direito. Com essa substituição do centro de gravidade, é o empresário que deve servir a empresa e não o contrário.

 Como foi analisado no ponto anterior, a Lei n. 11.101/05 trouxe, em seu art. 50, diversos meios de recuperação da empresa, destacando-se, dentre eles, a reestruturação do poder de controle e da administração empresarial. Essas novas propostas de solução para a crise da empresa só se tornaram possíveis porque o legislador percebeu que o conceito de empresa não se confunde com o de empresário e que deve ser a empresa – e não o empresário – o objeto de preocupação da lei.

 Na vigência da concordata, não era assim. O foco da lei estava no empresário devedor, que, em hipótese alguma, seria separado da sua propriedade, é dizer, da sua empresa. Se o devedor sucumbisse em seu intuito de recuperar-se, a empresa falecia junto. Tanto era assim que a empresa só seria beneficiada pelo instituto se o seu empresário estivesse de boa-fé. Hoje, não. A luta da sociedade está voltada para salvar a empresa; esta sim, fonte de empregos, de rendas, de arrecadação para o Estado[100]; esta sim, protagonista de um importante papel na sociedade e merecedora, por isso, do esforço a ser despendido na sua recuperação.

5.5.4. Os efeitos em relação a todos os credores

 A concordata, como estava prevista no Decreto-Lei n. 7.661/45, apenas contemplava os credores quirografários, de modo que os credores com garantia real, privilégio especial ou geral não eram atingidos pelo instituto[101]. “Na verdade, deixava de fora os débitos fiscais, os encargos trabalhistas e as dívidas bancárias garantidas por direito real, para abranger tão somente o pagamento dos créditos dos fornecedores. Em outras palavras, os verdadeiros problemas da empresa em crise não eram alcançados pela concordata preventiva.”[102]. Aqueles credores não alcançados pelo benefício poderiam acionar desde logo o devedor insolvente e requerer, inclusive, a sua falência, comprometendo, assim, a eficácia do instituto.

 Buscando resolver esse impasse, a Lei n. 11.101/05 estabeleceu que a recuperação judicial de empresas sujeita todos os credores existentes ao tempo da impetração do benefício, inclusive aqueles titulares de privilégios ou preferência. As únicas limitações trazidas pela lei são relativas aos pagamentos das dívidas trabalhistas, que devem ocorrer em no máximo um ano, e aos débitos fiscais, cujo adimplemento (ou, ao menos, o parcelamento) tem de ser realizado antes da concessão do benefício[103]. Ao contemplar um elenco maior de credores, o novo instituto reduziu o risco de o devedor ter a sua falência decretada, tornando-se, por consectário lógico, um instrumento mais eficaz de recuperação de empresa. Sedimenta-se, com mais essa alteração, o entendimento de que o instituto da recuperação de empresas tem como fundamento a função social e o princípio da preservação da empresa.

5.5.5. A decisão conjunta entre credores e devedor.

 Na vigência do Decreto-Lei n. 7.661/45, era a sociedade devedora quem decidia, de forma unilateral, qual o benefício mais adequado à sua situação. Não havia qualquer participação do credor na escolha da estratégia para superação da crise da empresa, eis que, uma vez preenchidos os requisitos legais da concordata, o juiz era obrigado a concedê-la nos termos em que fora requerida pelo devedor[104]. A aprovação da concordata, portanto, não dependia da aprovação dos credores a elas submetidos, sendo que a única limitação existente dizia respeito à proposta de dividendos mínimos, prevista no art. 156, §1º, da referida lei[105]. Nesse aspecto, é imprescindível conhecer as palavras de Rubens Requião[106]:

Não cabe ao juiz apreciar o quantum percentual da proposta formalmente correta, apresentada pelo concordatário. Não lhe é dado examinar de sua conveniência ou não, se o concordatário agiu de conformidade, ou não, com o potencial econômico e financeiro da empresa. Cabe-lhes, apenas, examinar os elementos formais, para ver se a proposta se compatibiliza ou não com a lei.

 Com o advento da Lei n. 11.101/05, essa situação foi alterada. Agora, o credor exerce um papel essencial na escolha do caminho para reestruturar a empresa, aprovando, através da assembléia de credores, o seu plano de recuperação. De mero figurante do procedimento, passa a protagonista das decisões, manifestando seus interesses, participando das deliberações e decidindo, enfim, pela continuidade ou não da instituição. O legislador falimentar de 2005, portanto, fez ressurgir, com toda a força, a assembléia geral de credores como órgão responsável pelas mais importantes deliberações da atividade empresarial[107].

 Ao fazer uma análise comparativa dos institutos da concordata e da recuperação de empresas, levando em consideração o papel que o credor passa a assumir com a nova lei, sintetiza Fábio Ulhoa Coelho[108] com precisão:

[...] o sacrifício imposto aos credores, na concordata já vem definido na lei (dividendo mínimo) e é da unilateral escolha do devedor, ao passo que, na recuperação judicial, o sacrifício imposto, se houver, deve ser delimitado no plano de recuperação, sem qualquer limitação legal, e deve ser aprovado por todas as classes de credores.

 Parece bastante razoável a postura adotada pela Lei n. 11.101/05, e assim o fez o legislador por diversos motivos, a saber: i) é o credor quem, inicialmente, arca com os ônus da recuperação; ii) dessa forma haverá um maior controle de que apenas aquelas empresas que realmente merecem o sacrifício despendido pela sua recuperação (porquanto cumprem a sua função social lato sensu e stricto sensu e são potencialmente viáveis) serão beneficiadas pelo instituto; iii) uma maior participação dos credores nas decisões implica, em contrapartida, em uma maior fiscalização sobre a atividade exercida pelo devedor, evitando fraudes e beneficiando tanto aos empresários quanto à sociedade como um todo. Sob esse prisma, pondera Manoel Justino Bezerra Filho[109]:

Evidentemente a assembléia, constituída por credores diretamente interessados no bom andamento da recuperação, deverá levar sempre ao juiz as melhores deliberações, que atendam de forma mais eficiente ao interesse das partes envolvidas na recuperação, tanto devedor quanto credor [...]

 Não restam dúvidas de que foi louvável a iniciativa do legislador de trazer, para um procedimento até então estático e unilateral, um elemento novo, de equilíbrio entre as relações empresariais e as necessidades do mercado[110], qual seja, a participação dos credores[111]. Atende-se, assim, ao princípio da preservação da empresa, sem torná-lo, contudo, um princípio absoluto e incondicionado, já que, em regra, aquelas empresas que melhor atendam à sua função social e que sejam mais interessantes para o mercado contarão com um maior apoio dos credores. Em contrapartida, as menos interessantes sofrerão um crivo maior da assembléia, competindo ao empresário, portanto, demonstrar que a viabilidade e o papel do seu negócio na sociedade merecem o esforço a ser feito por ele.

5.5.6. Possibilidade de convocação extrajudicial de credores

 Uma das maiores inovações trazidas à baila pela Lei n. 11.101/05 foi o instituto da recuperação extrajudicial de empresas. Há muitos anos, a doutrina já criticava o Decreto-Lei n. 7.661/45, por classificar a convocação de credores fora do juízo como ato de falência[112], afastando-se, assim, das soluções de mercado e desvirtuando-se da nova tendência de pacificação de conflitos baseada em saídas amigáveis. Sobre o assunto, convém transcrever a lição de Luis Fernando Valente Paiva[113]:

De fato, o Decreto-Lei 7.661/45 não amparava essa forma de composição e ainda classificava a convocação de credores pelo devedor para apresentação de propostas de dilação, remissão de créditos ou cessão de bens como “atos de falência”, impedindo soluções de mercado. Há muitos anos a doutrina criticava essa opção legislativa e indicava a necessidade de reformulação do sistema, de forma a garantir a aplicação de soluções de mercado.

 Sucede que, de forma gradativa, as próprias cortes brasileiras já começavam a admitir, ainda que contra legem, formas alternativas de composição para as empresas em crise sujeitas à concordata[114]. Essas decisões, contudo, não conferiam a necessária segurança jurídica ao sistema falimentar brasileiro, sendo necessário que a legislação viesse também ao encontro dessa realidade. Daí porque os integrantes da comissão legislativa da nova Lei de Falências, em meados de 2002, incluíram o instituto da recuperação extrajudicial de empresas no projeto de Lei 4.376/93, que foi convertido, em seguida, na Lei 11.101/05.

 Com efeito, a recuperação extrajudicial de empresas “consiste na possibilidade de homologação judicial de acordo pelo devedor com seus credores e tem por finalidade oferecer um meio, que seja de um lado eficaz e rápido, e de outro, menos custoso, complexo e traumático, para o devedor reorganizar suas dívidas”[115] Nessa senda, o papel do Estado-juiz restringe-se a homologação do acordo, aferindo apenas se estão presentes os seus requisitos legais.

 O instituto da recuperação extrajudicial tem duas modalidades, uma meramente homologatória e outra impositiva[116]. A primeira consiste na possibilidade de o devedor levar à homologação judicial um acordo no qual haja adesão voluntária de todos os credores sujeitos ao plano de recuperação extrajudicial, obrigando, tão somente, a essas partes signatárias[117]. Tal modalidade pressupõe a concordância expressa e prévia da totalidade dos credores sujeitos ao plano[118], podendo o devedor negociar livremente com os credores que escolher.

 Há, todavia, algumas restrições a essa modalidade de recuperação extrajudicial. É que seu plano não poderá prever o pagamento antecipado de dívidas, nem o tratamento desfavorável aos credores a ele não estejam sujeitos – credores estes que poderão exercer seus direitos regularmente como se a recuperação extrajudicial não existisse, sendo-lhe facultado, inclusive, pleitear, e obter, a decretação de falência do devedor. Esses limites impostos pelo legislador têm por desiderato a defesa de princípios expressamente abraçados pela Nova Lei como os da universalidade e o da pars conditio creditorio[119].

 A recuperação judicial impositiva, por seu turno, é aquela que exige a assinatura de pelo menos três quintos dos credores de cada espécie[120] ou grupo de credores sujeita ao plano que, após ser homologado, obrigará todos os credores a ele sujeitos, ainda que não tenham concordado com o plano. Esse é um dos maiores avanços da Nova Lei Falimentar. Consoante ensina Fábio Ulhoa[121], com essa inovação, a lei impede que uma pequena minoria, resistindo em aderir ao plano de recuperação, obste a oportunidade de reerguimento da empresa. A propósito, Eduardo Spinola e Castro[122] afirma afirmam que a partir dessa regra, tornam-se inócuas estratégias de credores minoritários que pretendam obter vantagens sob a ameaça de não aprovação do plano.

 Em que pese a louvável iniciativa da comissão reformadora da legislação falimentar de vincular o plano não só aos credores que com ele anuíssem como também àqueles que se opusessem, quando tal comportamento fosse de encontro ao interesse da maioria, era necessário criar mecanismos para impedir que esses credores recebessem tratamento desfavorável em relação aos demais e ainda assim, fossem coercitivamente vinculados ao plano. A solução encontrada pelo legislador foi a exigência de que, ao elaborar o plano, o devedor contemplasse uma ou mais espécies de credores, ou abarcasse um grupo de credores de mesma natureza e sujeito a semelhantes condições de pagamento, não se permitindo, desse modo, um arbítrio na definição de quais sejam, ou não, os créditos incluídos para alcançar o percentual de três quintos de adesão.

 Uma vez homologado o plano, seja na modalidade meramente homologatória, seja na impositiva, os credores não poderão desistir da adesão, salvo com a expressa anuência dos demais,[123] “regra que impede que uma minoria descontente possa embaraçar o regular cumprimento do plano”[124]. A adoção dessa regra recebeu unanimemente os aplausos da doutrina, uma vez que, permitir a um ou mais credores a retratação, após já terem sido postos os termos do acordo, “abriria flanco para tais manobras que redundariam em insegurança.”[125] O objetivo da lei, portanto, foi o de evitar que qualquer credor utilizasse “seu ‘arrependimento’ como forma de obter vantagens adicionais, sob ameaça de retirar a sua concordância, levando ao rompimento do acordo celebrado.”[126].

 Tendo em vista que a atividade da empresa está sujeita ao atendimento de uma função social, o legislador buscou os mais diversos caminhos para consagrar o princípio da preservação da empresa, sendo a recuperação extrajudicial um dos mais eficientes desses mecanismos, pois, ao mesmo tempo em que concede aos credores e ao devedor a oportunidade de elaborar, em conjunto, um plano para solucionar a crise da empresa, evita que o devedor arque com todos os custos e riscos inerentes a uma recuperação judicial. Tem-se, aqui, mais um indício de que o legislador deseja, a todo custo, salvar aquelas instituições viáveis e que podem ser bastante úteis para a sociedade, gerando empregos, renda, riqueza para os credores (que na falência não possuem grandes perspectivas de reaverem seus créditos) e para o próprio devedor.

5.2 PERSPECTIVAS EM TORNO DA NOVA LEI.

 São naturais e sadias as tensões, expectativas e até frustrações em torno das propostas inovadoras, “especialmente quando se pensa em inovar substancialmente na ordem jurídica e no modo de ser das coisas da justiça”[127]. Toda reforma legislativa traz uma série de interrogações que só poderão ser respondidas após algum tempo de vigência da lei, quando se tornar possível ver os seus reflexos na realidade e a forma pela qual ela vem sendo aplicada pelos tribunais. Isso porque “a norma é produzida, pelo intérprete, não apenas a partir de elementos que se desprendem do texto (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade (mundo do ser)”[128].

 Após três anos de vigência da Lei n. 11.101/05, já se pode observar alguns de seus reflexos na realidade. Conforme levantamento realizado pelo Serasa, em 2006, já houve uma queda dos pedidos de falência em 56,1%; redução do número de falências decretadas de 31,3%; e, em contrapartida, a aplicação do novo instituto tem aumentado, pois foram registrados 252 pedidos de recuperação judicial e dois pedidos de recuperação extrajudicial naquele mesmo ano, sendo 156 deferidos; em 2005, haviam sido contabilizados apenas 110 requerimentos de recuperação judicial, e 53 foram deferidos[129]. Tais dados mostram que a nova lei, na prática, já tem produzido efeitos, exaltando o princípio da conservação da empresa.

 No que toca à aplicação prática do novo instituto, a recuperação judicial da Varig é o caso paradigma da Lei n. 11.101/05. Com dívida estimada em 7,9 milhões de reais, a empresa já vinha enfrentando, por diversos motivos, sérias dificuldades há muitos anos, beirando, por isso, o estado de falência. Sem dúvidas, a Varig realizou um profícuo trabalho na aviação brasileira – com mais de 80 anos de existência, possuía 17.800 empregados, cinco milhões de titulares de cartões smiles, 13,8 milhões de pessoas transportadas por ano –, razão pela qual a sua falência geraria danos inestimáveis para toda sociedade[130]. A função social em sentido lato que essa instituição exerce é, portanto, indiscutível, fato que impunha a sua preservação.

 Sob a égide do art. 187 do Código da Aeronáutica[131], as empresas que, por seus atos constitutivos, tivessem por objeto a exploração de serviços aéreos de qualquer natureza ou de infraestrutura aeronáutica, não podiam impetrar concordata. Com a nova Lei de Falências, as empresas do setor aéreo também foram contempladas pelo instituto da recuperação de empresas, passando a ter a prerrogativa de recorrer ao benefício para escapar da falência. Assim que, beneficiando-se dessa prerrogativa, a empresa Varig requereu em juízo o benefício da recuperação de empresa, o qual foi deferido, nos autos da ação n. 2005.001.072.887-7, pelo magistrado Alexander dos Santos Macedo, nos seguintes termos:

A ausência de lei especial disciplinadora do parcelamento de créditos tributários de quem esteja em processo de recuperação, exige tratamento que for mais benéfico ao contribuinte, sendo inaplicável a norma do art. 191-A do CTN, enquanto não se dê cumprimento ao disposto no § 3o, do art. 155-A daquele diploma legal.

[...] Assim, considerando o interesse público revelado pelo princípio da preservação da empresa, inserto no art. 47 da Lei 11.101/2005; considerando a suspensão de parte dos débitos tributários da 1a requerente; considerando que a 1a requerente é potencial credora da União da importância aproximada de R$ 4 bilhões; considerando a ausência de lei disciplinadora do parcelamento de débitos tributários de empresas em recuperação, não faz sentido impedir a possibilidade das requerentes de se reorganizarem por falta de certidão negativa de débitos fiscais.

Isso posto, nos termos do art. 58 da Lei 11.101/2005, consideramos cumpridas as exigências legais e concedemos a recuperação judicial das devedoras, cujo plano foi aprovado na assembléia de credores realizada no dia 19/12/2005.

 Como se depreende da leitura do supracitado dispositivo sentencial, em uma atitude de extrema coerência, o juiz Alexander afastou, no caso, o requisito do art. 57 da Lei n. 11.101/05 – que exige a apresentação pela sociedade devedora de certidões negativas de débito tributário –, priorizando a preservação da empresa Varig e de sua função social. De fato, esse é o papel do magistrado que, ao interpretar o texto legal, deve analisar, diante de cada caso concreto, quais os valores irão prevalecer, orientando-se sempre pelo princípio da razoabilidade.

 Nesse ponto, a razoabilidade é utilizada como diretriz que “exige harmonização da norma geral com o caso individual”[132], quer seja para mostrar sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer seja para indicar em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de enquadrar-se na norma geral. Deveras, não seria razoável – e até mesmo justo para a sociedade – que uma empresa como a Varig, cuja função social salta aos olhos, sucumbisse para que a lei fosse aplicada em todos os seus termos – o não significa, por outro lado, que a dicção legal deva ser sempre afastada. A aplicação da lei geral é a regra, a qual só deve ser excepcionada em casos extremos, quando o fim a que se deseja alcançar justifique o seu afastamento. Caso contrário, cair-se-ia em um casuísmo desmedido, tornando inútil o papel do legislador.

 Com efeito, a inexistência de lei prevendo o parcelamento das dívidas fiscais de empresas em recuperação judicial pode ser considerada como um dos grandes obstáculos para o acerto de contas entre o fisco e as empresas em crise. Essa situação, frise-se, tem sido também um desestímulo para pedidos de recuperação judicial, diante da exigência legal de que o devedor apresente certidões negativas de débitos após a aprovação do plano de recuperação pela assembléia-geral[133]. Como a interpretação da lei pode ser ampla, existe a dúvida acerca do comportamento que será adotado pelos juízes: irão homologar os planos sem a apresentação de dita certidão; extinguir os processos sem julgá-los; ou, até mesmo, determinar a quebra das empresas?

 Fábio Ulhoa Coelho[134], nesse ponto, entende que, enquanto não for editada a norma prevista no art. 155-A do Código Tributário Nacional, para dispor sobre o parcelamento do crédito fiscal da empresa que deseje obter o benefício da recuperação judicial, este instituto não importará nenhuma mudança no perfil do passivo fiscal da empresa requerente. Esse, contudo, não parece ser o entendimento mais razoável, tendo em vista que uma empresa em crise dificilmente estará cumprindo pontualmente as suas obrigações tributárias, razão pela qual esta exigência destituiria por completo o instituto de eficácia. Assim, uma vez inexistindo norma específica para tratar do tema, deve ser aplicado o tratamento mais benéfico ao contribuinte.

 Diante das críticas que militam em desfavor do instituto da recuperação de empresas, torna-se ainda mais relevante o papel do magistrado na concretização do instituto. Ele deve buscar, no caso concreto, a solução mais adequada para cada situação, tendo como foco os fundamentos jurídicos que ensejaram a alteração dos institutos falimentares, quais sejam, a função social e o princípio da preservação da empresa. Esses, entretanto, não são valores absolutos, podendo ser afastados quando, por exemplo, a reestruturação da empresa não for viável ou quando o plano de recuperação judicial não se mostrar idôneo para alcançar os fins do instituto. Afinal, aprovar planos mal elaborados ou conceder benefícios para empresas inviáveis, a pretexto de que a função social da empresa se sobrepõe aos interesses dos credores, pode resultar em aprofundamento da crise, não produzindo qualquer benefício para a sociedade, que arcará com o ônus de uma inócua tentativa de recuperação.

 Acerca do papel do magistrado na construção da nova Dogmática Concursal, convém transcrever as lições de Manoel Alonso[135]:

[...] a futura lei não irá resolver todos os males e crises que, de um tempo a esta parte, enfrentam os empresários do país. Nossa convicção decorre do fato de que na sociedade capitalista moderna, de livre iniciativa e concorrência entre as empresas, nenhum diploma legal tem o condão de eliminar a Teoria do risco. Mas o novo diploma brasileiro ajudará e, em muito, a evitar danos maiores. Alguns ajustes e acertos de que o texto necessita por certo serão introduzidos pelos dd. Juízes que irão atuar nos feitos, dentro do que lhes é facultado pelo art. 5º da L.I.CC., pelos srs. Administradores Judiciais, pelos operadores do direito e, em especial, pelos srs. Credores, os grandes balizadores nas decisões da efetividade da recuperação da empresa.

 Para efetivar a reforma do Direito Concursal, contudo, os juízes – que, aqui, assumem um papel fundamental – terão de equacionar os interesses conflituosos que envolvem a empresa, valendo-se sempre de princípios como o da razoabilidade e da ponderação de interesses. Tal operador do direito deve ter em vista que o texto normativo não pode ser interpretado em tiras, “um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado normativo algum”[136]. Disto se alcança a importância de investigar quais são os fundamentos jurídicos que embalaram o legislador na criação do novo instituto falimentar, para, valendo-se desses fundamentos, aplicar o melhor direito ao caso concreto.

Sobre a autora
Gabriela Macedo Ferreira

Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia, especialista em Direito Processual Civil pelo Jus Podivm, Juíza Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Gabriela Macedo. O instituto da recuperação de empresas e sua função social . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3212, 17 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21530. Acesso em: 21 nov. 2024.

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