Sumário: 1. Introdução; 2. O conceito de sistema de Direito: 2.1. O Direito como sistema fechado; 2.2. A transição para um sistema aberto; 3. A função social: 3.1. Função social da propriedade; 3.2. Função social na legislação brasileira; 3.3. Função social da empresa; 4. O princípio da preservação da empresa; 5. A função social da empresa e o princípio da preservação da empresa como fundamentos jurídicos da alteração do instituto da concordata pelo instituto da Recuperação de Empresas: 5.1 As principais alterações do novo instituto e seus fundamentos: 5.1.1 O requisito da viabilidade jurídica da atividade econômica; 5.1.2. Os meios de recuperação; 5.1.3 A separação dos conceitos de empresa e empresário; 5.1.4. Os efeitos em relação a todos os credores; 5.1.5. A decisão conjunta entre credores e devedor; 5.1.6. Possibilidade de convocação extrajudicial de credores. 5.2 Perspectivas em torno da nova lei. 6. Conclusão. Referências bibliográficas.
Resumo: A empresa é tida hoje como a instituição de maior significado da sociedade contemporânea e não pode mais estar voltada apenas a satisfação dos interesses individuais de seus titulares, devendo atender também a uma função social. Diante disso, o foco do legislador falimentar voltou-se ao acentuado interesse social que a manutenção da empresa guarda, trazendo à baila a Lei n. 11.101/05 e o instituto da recuperação de empresas. Como a real reforma no Direito Falimentar não depende tão-só da alteração legislativa advinda com a nova Lei, mas também, e, principalmente, da devida interpretação que se faça dos seus novos institutos, vem a lume a importância de se investigar os fundamentos jurídicos da alteração dos institutos falimentares: a função social e o princípio da preservação da empresa.
Palavras-chave: Reforma do Direito Falimentar. Recuperação de empresas. Função Social da empresa. Princípio da manutenção da empresa.
1 INTRODUÇÃO
A Lei n. 11.101/05, denominada Lei de Falência e Recuperação de Empresas, entrou em vigor para substituir a Lei de Falência e Concordata, o Decreto-Lei n. 7.661 de 1945, que, produzido nos estertores do período ditatorial de Getúlio Vargas, já não se coadunava com os novos paradigmas jurídicos nem com a realidade sócio-econômica do país.
Com efeito, a Constituição Federal de 1988 instaurou uma nova ordem jurídica focada na dignidade da pessoa humana, no valor social do trabalho, na função social da propriedade e na livre iniciativa. Seguindo essa linha, o legislador infraconstitucional trouxe à baila também uma nova concepção do direito privado, lastreado em princípios como o da boa-fé objetiva e da função social. Assistiu-se, enfim, a uma crescente unificação do direito privado, a interpenetração do direito público e a uma transmigração do individual ao coletivo, operando-se uma verdadeira revolução legislativa no país, cujas balizas não admitiam mais que interesses de uma coletividade restassem prejudicados em razão de posturas egoísticas e solitárias.
Sob a égide do Decreto-Lei n. 7.661/45, nosso Direito Concursal tinha à sua disposição um instituto de eficácia duvidosa: a concordata. Instituto esse que apresentava diversos inconvenientes: era excessivamente formal, previa prazos intransigentes, não contemplava todos os credores, não atacando, assim, os verdadeiros focos de crise da empresa. Aliados a esses aspectos, a complacência de muitos magistrados e o não acompanhamento do processo pelos credores – que tinham um papel ínfimo no instituto – relaxaram as suas malhas, tornando-o um campo fértil para fraudes e perfídias, um instrumento a serviço de empresários inescrupulosos.
Diante das deficiências acima destacadas, não era mais admissível se conceder um benefício de larga repercussão econômica e social como esse, plantado apenas em discutíveis pressupostos formais, sem a mínima preocupação com a viabilidade da empresa e com o caminho a ser adotado para a persecução de seus fins. Por essa razão, o foco do legislador falimentar deslocou-se do empresário para a própria empresa, é dizer, para o acentuado interesse que sua manutenção guarda, surgindo, assim, com a Lei n. 11.101/05, o Instituto da Recuperação de Empresas.
O objetivo deste artigo é demonstrar que a função social e o princípio da preservação da empresa são os fundamentos jurídicos da substituição do instituto da Concordata pelo instituto da Recuperação de Empresa, isto é, da reforma do Direito Falimentar, cuja concretização depende, em grande monta, do papel fundamental desempenhado pelos operadores do direito. Estes, sem dúvida, terão que equacionar os interesses conflituosos do devedor em crise e os dos credores em instâncias até então subutilizadas no Direito Brasileiro, como a assembléia de credores e terão que manejar instrumentos jurídicos inéditos, como o plano de reorganização, sempre tendo como parâmetro aqueles que aqui serão estudados.
Mais do que uma simples escolha de um tema, o enfrentamento da questão ora proposta fascina por contemplar pesquisas não só teóricas, mas também de aplicação prática acerca de um novo instituto que, sem dúvidas, repercutirá diretamente na vida da empresa, ícone da sociedade contemporânea.
2 O CONCEITO DE SISTEMA DE DIREITO
Analisar o conceito de sistema de direito, perpassando por suas duas fases – o Direito como sistema fechado e a evolução para um sistema aberto –, é pressuposto indispensável para se alcançar a definição contemporânea de função social. Isso porque, como está posta hoje, a expressão função social exige uma técnica legislativa que somente é possível em um sistema aberto de direito.
Etimologicamente, a palavra sistema[1] possui diversas acepções, destacando-se, dentre elas, a acepção jurídica – que será o foco do estudo a ser desenvolvido neste ponto. Analisado sob tal espectro, o termo consigna as noções de ordem, conjunto, coerência e unidade, o que leva Carin Prediger[2] a afirmar que a Ciência do Direito é sistemática, pois as suas normas estão conectadas entre si, facilitando a aplicação dos seus princípios, conceitos e regras gerais, e assegurando uma certa previsibilidade dos seus efeitos jurídicos.
2.1 O DIREITO COMO UM SISTEMA FECHADO
A idéia de sistema no âmbito jurídico surge na Europa por volta no século XVIII. Até então, na Idade Média, coexistiam direitos provenientes de diversas fontes, cada qual aplicado a um determinado grupo, em virtude das desigualdades que eles guardavam entre si. Como decorrência desse modelo, a justiça terminava sendo particularizada, de modo que os juízes tratavam situações iguais de forma distinta, concedendo privilégios para uns em detrimento de outros. Não havia, por isso, qualquer parâmetro de justiça, o que era ainda acentuado pela intervenção constante da aristocracia e da Igreja nas querelas jurídicas. [3]
Diante desse quadro de desigualdade, a burguesia, classe então emergente, passou a lutar pela criação de um modelo que proporcionasse maior segurança jurídica nas decisões judiciais. Para tanto, era necessário desenvolver uma técnica legislativa que dispensasse as valorações dos aplicadores do direito, de modo a tornar o juiz, como bem expressou Montesquieu, a “boca da lei”. Com o surgimento do Estado Moderno e a conquista do poder pela burguesia, tal intento foi concretizado, e os ideais burgueses foram levados à codificação, em um sistema completo e harmônico, cuja relevância das normas era ponderada com base em critérios meramente formais, sem atenção específica ao seu conteúdo implícito[4].
A codificação que surgia nesse período era dominada por uma pretensão de plenitude lógica e de completude legislativa, excludente de tudo o mais que nela não estivesse contido. Tratava-se, nas palavras de Judith Martins-Costa[5], de um fenômeno típico da modernidade oitocentista chamado “códigos totais”, totalizadores e totalitários, que, pela conexão sistemática de regras casuísticas, aspiravam cobrir a plenitude dos atos possíveis na esfera privada, prevendo todas as soluções necessárias às mais variadas questões da vida civil. Era, pois, um sistema fechado, exatamente porque, visando a alcançar essa regularização totalitária, utilizava-se de uma linguagem que não permitia uma efetiva comunicação com a realidade, sendo irrelevantes, por isso, quaisquer discussões acerca de postulados e de valores extrajurídicos. Tratava-se de um modelo completamente fechado de Direito.
2.2 A TRANSIÇÃO PARA UM SISTEMA ABERTO
A complexidade da vida moderna, contudo, mostrou que os “códigos totais” não estavam aptos para regular todos os problemas da vida civil, tornando constante a necessidade de intervenção legislativa para suprir as lacunas que começavam a aparecer no sistema. Por esta razão, surgiram diversas leis extravagantes para regular as novas relações que despontavam na sociedade[6], o que terminou por desmitificar a idéia de que o Código poderia cobrir todas as situações da vida. Este quadro fez “esmorecer a noção do Código Civil enquanto expressão de um sistema único, em face da pluralidade de sistemas ora surgida, a neutralizar a centralidade antes existente, representada pela Codificação Civil”[7].
Retratando o dilema que pôs em cheque as premissas do sistema fechado de direito, Leandro Martins[8] assevera:
A ciência do direito vê-se às voltas com um permanente dilema, sem o qual ela nem mesmo existiria na forma como a entendemos hoje: o de encontrar a solução justa em cada caso concreto.
Com isso, o estudo dos sistemas jurídicos passou a ser orientado pelos sistemas sociais, reconhecendo-se, finalmente, o Direito como uma ciência humana. O caráter estático do positivismo jurídico foi, então, substituído pela complexidade inerente às relações sociais[9].
Desponta, assim, o sistema aberto do direito civil, o qual, em virtude da linguagem que emprega – conceitos cujos termos têm significados intencionalmente vagos e abertos, chamados “conceitos jurídicos indeterminados” –, permite uma constante incorporação de novos problemas. O juiz passa a assumir uma função integralizadora diante do caso concreto, e o legislador é progressivamente chamado a complementar o sistema com a criação de novas leis. Se, por um lado, foi reconhecida a incompletude do sistema, por outro, foi consolidada a sua capacidade de evoluir, admitindo modificações, eis que “um Código não totalitário tem janelas abertas para a mobilidade da vida, pontes que o ligam a outros corpos normativos – mesmo os extrajurídicos – e avenidas, bem trilhadas, que o vinculam, dialeticamente, aos princípios e regras constitucionais”[10].
Essas “janelas” – que possibilitam uma constante adaptação do direito à realidade – são constituídas por cláusulas gerais, partes móveis que compõem o sistema, complementando e acomodando as previsões normativas rígidas[11]. Segundo leciona Judith Martins-Costa[12], tais cláusulas podem ser definidas como uma técnica legislativa que conforma o meio hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico codificado, de princípios, valores, standards, de direitos e deveres configurados de acordo com diretivas econômicas, sociais e políticas, “viabilizando a sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamento positivo”. Destarte, por também contemplar as cláusulas abertas, incorporando valores e princípios ao ordenamento jurídico[13], que o sistema aberto – e apenas ele – torna possível a definição contemporânea da fórmula “função social”.
3. A FUNÇÃO SOCIAL
O termo função[14], quando aplicado juridicamente, significa “a finalidade de um modelo jurídico, certo modo de operar um instituto, ou seja, o papel a ser cumprido por determinado ordenamento jurídico”[15]. Segundo José Diniz de Morais[16], o termo função pode ser definido como a satisfação de uma necessidade e se, assim é, a função social será a satisfação das necessidades sociais ou da sociedade. Dizer que algo tem ou é função social significa que algo é ou desenvolve suas atividades visando ao social.
O conceito de função social aplicado aos institutos jurídicos impõe que o ordenamento somente reconheça um direito subjetivo individual se ele se coadunar com as necessidades sociais, é dizer, se ele for útil para a sociedade. Não se admite mais, portanto, que os interesses de uma coletividade restem prejudicados em razão de posturas solitárias. E mais: o ordenamento não só inadmite o exercício de direitos individuais quando choquem com interesses coletivos, como também estimula condutas que resultem em um benefício para a coletividade. Atua, pois, a função social, na lição de Cristiano Chaves[17], como um instrumento de mão dupla: de um lado, incentiva atuações coletivamente úteis; de outro, inibe condutas individualistas que não atendem as necessidades sociais. Nesse ponto, merece ser transcrita a lição do autor:
[...] ao cogitarmos da função social, introduzimos no conceito de direito subjetivo a noção de que o ordenamento jurídico apenas concederá merecimento a persecução de um interesse individual, se este for compatível com os anseios sociais que com ele se relacionam.
O que propriamente significa o atendimento dessas necessidades sociais – ou quais são essas necessidades que carecem de atendimento – deve ser perquirido em cada época histórica. Daí porque, o legislador pátrio estabelece a função social como uma cláusula genérica, revestida da necessária elasticidade que possibilita transferir para a lei as variações da realidade social.[18]
3.1 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
A instituição jurídica da propriedade surgiu para responder à necessidade de se afetar certas riquezas a fins individuais ou coletivos. Inicialmente, a propriedade foi regulada por princípios individualistas, razão pela qual caracterizava um direito absoluto voltado apenas à satisfação de interesses individuais – refletia, assim, um ideário regido pela autonomia da vontade e pela soberania do indivíduo[19]. Segundo Leon Duguit[20], “consistía en dar al poseedor de la cosa um derecho subjetivo absoluto: absoluto em su duracción, absoluto em sus efectos”[21].
Na etapa inicial da evolução do capitalismo, a felicidade traduzia-se na concepção de ampla liberdade para que qualquer cidadão pudesse atuar em prol dos seus interesses pessoais[22]. Por isso, da mesma forma que o proprietário tinha o direito de gozar, usar e fruir da sua propriedade, ele tinha o direito de não utilizá-la, de não produzir, de ficar inerte diante dela. Por ser um direito absoluto seu, o proprietário poderia manejá-lo como quisesse e, se ao fazê-lo causasse danos a terceiro, não seria responsável por isso, porquanto apenas estaria exercitando o seu direito[23].
Aos poucos, contudo, percebeu-se que o indivíduo tinha o dever de cumprir uma certa função na sociedade, em razão do lugar que nela ocupa, devendo, para tanto, empregar o seu esforço físico ou intelectual em prol do desenvolvimento dessa coletividade. Não havia, pois, interesse em se proteger o indivíduo como um fim em si mesmo, mas pelo proveito que ele agrega à sociedade. Retratando essa nova concepção sobre o papel do indivíduo na sociedade, León Duguit[24]-[25] revela:
Ahora bien, hoy en día tenemos la clara conciencia de que el individuo no es un fin, sino un medio; que el individuo no es más que una rueda de la vasta máquina que constituye el cuerpo social; que cada uno de nosotros no tiene razón de ser en el mundo más que por la labor que realiza en la obra social. Así, pues, el sistema individualista está en flagrante contradicción con ese estado de la conciencia moderna.[26]
Pela mesma razão que o indivíduo tinha o dever de cumprir uma função social, o possuidor de riqueza também tinha o dever de utilizá-la para aumentar a riqueza geral da sociedade. O seu bem só seria protegido socialmente na medida em que fosse utilizado como instrumento de multiplicação da riqueza geral. Assim, a propriedade deixava de ser um direito subjetivo do indivíduo para se tornar uma propriedade-função[27]. Nesse sentido, Guillermo Benavides Melo[28]:
En otras palabras, la propiedad que no resulte dirigida, orientada, hacia el servicio de la sociedad, no es una propiedad deficiente, o a la cual haga falta un atributo, falta que la situaría en condición de inferioridad frente a otras propiedades que si satisfagan ese requerimiento constitucional. O como solemos decir en el lenguaje común los colombianos, no es que la propiedad con función social sea de “mejor familia” que aquella huérfana de tal función. No. Para el derecho colombiano, la función social condiciona la existencia misma del derecho, lo que equivale a afirmar categóricamente que la propiedad privada que no cumple función social, sencillamente no es propiedad privada.[29]
Tendo surgido para atender a uma necessidade econômica, o instituto jurídico da propriedade, então, evoluiu de acordo com as novas formas que essas necessidades foram adquirindo. Se a necessidade econômica que ensejou o surgimento da instituição se transformava, por consectário lógico, a concepção jurídica da propriedade também tinha que se transformar[30], para atender também a interesses coletivos. Isso, todavia, não implicava na coletivização da propriedade, eis que o proprietário não só tem o poder-dever de utilizar sua coisa para a satisfação de necessidades comuns, como também deve buscar a satisfação de necessidades individuais[31]. Afinal, a intensidade da divisão do trabalho é diretamente proporcional à atividade que é individualmente realizada[32].
Como bem afirma José Diniz de Morais[33], a idéia de função social não é de inspiração socialista, como muitos sustentam. Ao contrário, serve para legitimar o negócio do empresário e do proprietário produtor de riquezas como sendo uma atividade de interesse geral, o que termina por legitimar o próprio lucro, fortalecendo e embelezando o sistema capitalista. Hoje, sem dúvida, a fórmula função social reveste-se de um conceito técnico-jurídico que, além de reconhecer a propriedade privada dos bens, veio à baila para tornar tal instituto ainda mais consolidado, configurando-se, assim, como uma característica peculiar do modelo jurídico capitalista. Nesse ponto, é interessante conhecer as lições do autor[34]:
Não se pode, a partir desse fato, concluir que a propriedade torna-se social, que o direito se socializa, uma vez que, como base estrutural do ordenamento jurídico, a noção de propriedade privada imprime ao direito cunho individualista e a fórmula função social, muito mais do que negá-la, confirma-a. “Tem” ou “é” função social a propriedade privada porque é propriedade privada, porque se não o fosse seria propriedade pública ou social e, portanto, função pública ou função social.
Atualmente, a função social tem sido definida como sendo uma série de encargos, ônus e estímulos que formam um complexo de recursos que remetem o proprietário a direcionar o bem às finalidades comuns. Daí a razão de ser da propriedade, comumente chamada de poder-dever ou de direito-função[35]. Como forma de rechaço das concepções individualistas, a função social da propriedade foi positivada em diversas cartas constitucionais do século XX[36], no bojo das quais se exaltaram direitos extrapatrimoniais e valores como a dignidade da pessoa humana e a solidariedade – “o indivíduo solitário, isolado em sua atividade econômica, é convertido na pessoa solidária que convive em sociedade e encontra nas necessidades do outro um claro limite à sua liberdade de atuação”[37].
3.2 FUNÇÃO SOCIAL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
A Constituição Federal de 1988, ao tratar do direito de propriedade, vinculou o exercício de tal direito ao atendimento de uma função social[38]. Com isso, o constituinte deixou transparecer a sua intenção de tutelar a propriedade, não pelo aspecto formal de quem a titulariza, mas sim pelo seu caráter instrumental[39], que permite ao proprietário a realização de interesses sociais, sem privá-lo, em contrapartida, do exercício de prerrogativas inerentes a este mesmo direito – até porque é bastante razoável que se entenda a função social como um quinto elemento do direito de propriedade[40]. O direito fundamental de acesso à propriedade traz em si um dever social. Acerca do tema, ensina, com precisão, Fredie Didier Jr.[41]:
A propriedade privada e a sua função social são dois dos princípios que regem a ordem econômica, previstos no art. 170 da Constituição da República, que estruturam a regulação da chamada iniciativa privada. Princípios que, em análise apressada, poderiam ser entendidos como antitéticos, na verdade se complementam, sendo a função social, atualmente, vista como parte integrante do próprio conteúdo do direito de propriedade, seu outro lado — só há direito de propriedade se este for exercido de acordo com a sua função social.
Trata-se este princípio que atribui à propriedade conteúdo específico, dando-lhe novo conceito. A positivação constitucional destes princípios demonstra uma tentativa de unir dois extremos da história jurídica: o clássico direito de propriedade e a sua nova feição, caracterizada pelo desenvolvimento teórico de sua função social.
Não se descuidando dessa premissa, o legislador infraconstitucional trouxe à baila, com o Código Civil de 2002, uma nova concepção de Direito Civil. Um direito lastreado na tutela do ser humano e da sua dignidade, erigido por princípios como o da boa-fé objetiva, da função social e por teorias como a do risco e a conseguinte objetivação do dever de indenizar.
A par disso, outras legislações também trouxeram a lume disposições relativas à função social. A título meramente ilustrativo, cita-se a Lei n. 6.404/1976, a qual traz diversos dispositivos que conferem às companhias uma função social, além de prever que o acionista controlador deve estar atento, no exercício de suas atividades[42], ao atendimento de uma função social; e a Lei n. 11.101/2005, que prevê a recuperação judicial de empresas como forma de preservar a função social da empresa.
3.3 FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA.
A empresa é a instituição de maior significado na sociedade contemporânea e, por isso, não pode mais ser tida como mero instrumento de satisfação dos interesses particulares dos empresários. Ela também deve focar-se na realização de fins sociais[43], o que não quer dizer que a persecução de objetivos do empresário, como o lucro, deva ser descartada, e que a sua atuação tenha que se voltar exclusivamente à satisfação de interesses que não são seus. Afinal, é a perspectiva de ganhos[44] que atrai o empreendedor para a assunção dos riscos inerentes à atividade empresarial; sem tal perspectiva, a empresa se desnaturaria. O que ocorre é que esse proveito não pode mais ser considerado como o centro da atividade empresarial, um dever supremo da empresa, razão única do seu existir. Acerca do tema, afirma Fábio Konder Comparato[45]:
O lucro não entra, na organização do sistema econômico, com as características de um oportere, de um dever supremo, ou então de uma liberdade fundamental do homem. É um simples licere, uma liceidade sem conteúdo impositivo, o que demonstra a sua não inclusão na esfera do social, dos interesses comuns do povo, e sua pertinência ao campo dos interesses particulares, hierarquicamente inferiores àquele.
Para conciliar os diversos interesses que despontam em torno da empresa, torna-se fundamental estabelecer um parâmetro orientador do seu comportamento, quando ganha relevo o princípio da função social da empresa. Malgrado este princípio não esteja expressamente disposto na Constituição Federal de 1988, a doutrina[46] vem entendendo que ele encontra amparo naquele diploma supremo, primeiro porque decorre diretamente da função social da propriedade – esta, sim, prevista na Carta Constitucional[47]; segundo, em razão da necessária releitura dos institutos privados face às novas diretrizes trazidas pela própria Carta Constitucional; terceiro, por causa da superação da clássica dicotomia entre os direitos públicos e privados[48]-[49].
O Código Civil de 2002 também não previu expressamente a função social da empresa, limitando-se a estabelecer, no §2º do art. 966, que o exercício da atividade de empresário, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, observará os limites impostos pelo seu fim econômico e social. Tecendo crítica acerca da omissão perpetrada pelo legislador, Eduardo Tomasevicius Filho[50] afirma que “não faz sentido imaginar que uma empresa não está obrigada a cumprir com os deveres positivos e negativos decorrentes da função social da sua atividade por inexistência de dispositivo legal expresso”. O autor, todavia, não nega que a previsão legal do instituto em um diploma como o Código Civil tornaria mais fácil exigir a sua obediência[51].
A Lei das Sociedades por Ações[52], por sua vez, tratou expressamente da função social da empresa, estabelecendo, no art. 116, parágrafo único, que o acionista controlador deve usar o poder de controle com o fim de fazer a companhia realizar seu objeto e cumprir sua função social. No art. 154 desse mesmo diploma, ainda dispõe que o administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e os interesses da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa. A Lei n. 11.101/05 também prevê expressamente a função social da empresa, dispondo que a recuperação judicial tem por objetivo a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Contemporaneamente, a fórmula função social está alicerçada no binômio direito subjetivo- dever jurídico, de forma que o titular de um direito deve sempre ponderar o exercício de suas prerrogativas com interesses alheios à sua vontade[53]. Seguindo essa linha, Eduardo Tomasevicius Filho[54] define a função social da empresa como “o poder-dever de o empresário e os administradores da empresa harmonizarem as atividades da empresa, segundo o interesse da sociedade, mediante a obediência de determinados deveres positivos e negativos”.
O problema, no que toca ao conceito de função social da empresa, é a excessiva dose de abstração que lhe acompanha. Tentando resolver esse impasse, a doutrina definiu o conteúdo da expressão função social da empresa com base nos valores gerais estabelecidos como diretrizes do ordenamento jurídico brasileiro[55]. Nessa tarefa, a Constituição Federal deu uma efetiva contribuição, ao prever, em seu art. 170[56], parâmetros objetivos para a construção dos deveres inerentes à função social, tais como a valorização do trabalho humano, a defesa do consumidor e a defesa do meio ambiente.
Buscando não apenas conceituar a fórmula função social, mas também estabelecer o seu conteúdo, Guilherme Gama[57] divide o condicionamento do exercício da empresa em duas espécies, uma endógena e outra exógena[58], sendo a primeira relacionada aos agentes internos da instituição, e a segunda ligada aos grupos de interesses externos à sua estrutura.
Com efeito, o caráter endógeno se refere às relações trabalhistas desenvolvidas no âmbito da empresa, em conformidade com os arts. 7º e 170, VIII, da CF/88, e à criação de um ambiente de trabalho seguro e salutar[59]. Outro interesse também classificado como endógeno é aquele dos sócios em relação ao administrador, bem assim como os interesses dos sócios minoritários em relação ao sócio controlador[60]. Isso porque é imprescindível para os sócios que o administrador aja com lisura e transparência, observando as normas legais e contratuais pertinentes e buscando dar cumprimento com eficiência aos interesses da sociedade. Igualmente, é importante para os sócios minoritários que o controlador paute sua conduta não apenas de acordo com seus próprios interesses, mas também observando aos interesses da sociedade.
As limitações exógenas são subdivididas em três subgrupos de interesses distintos: dos concorrentes, dos consumidores e do meio ambiente. No que concerne ao primeiro grupo, o art. 170, IV, da CF/88 estabelece a livre concorrência como princípio balizador da ordem econômica[61], “o que significa que a atividade empresarial não pode atentar contra esse princípio, porque este é um valor instrumental para a consecução de diversos objetivos econômicos [...]”[62]. A livre concorrência garante a abertura do mercado a novas iniciativas particulares, estimulando-se, em conseqüência, a competitividade em benefício do mercado e da própria comunidade.
No que se refere aos interesses dos consumidores, “a atividade empresarial tem que ser exercida de modo a não causar dano ao consumidor, não apenas por deveres de abstenção, mas também de ação, a exemplo dos deveres positivos anexos da boa-fé objetiva de informação, de proteção e de lealdade”[63]. Agora, os empresários devem desenvolver serviços de maior qualidade e segurança para a sociedade, evitando a desenfreada e inconseqüente busca por lucro. Os interesses dos consumidores, portanto, são um dos principais focos de atenção no correto exercício da empresa, tendo, inclusive, diploma próprio, a lei 8.078/90, fundamental no estudo deste viés da função social.
Por fim, no tocante ao meio ambiente, os recursos não podem ser usados de forma irresponsável, colocando-se como prioridade a busca do desenvolvimento econômico. Devem tais recursos ser utilizados de forma sustentável, compatibilizando-se desenvolvimento econômico com equilíbrio ecológico[64]. Nessa linha, a Constituição Federal e diversas normas infraconstitucionais estabelecem critérios para a utilização do meio ambiente, impondo, com isso, um limite a liberdade de empresa. Assim, cumprirá sua função social a empresa que utilizar os recursos naturais de forma justa e reduzir ao mínimo o impacto de suas atividades no meio ambiente.
Cabe frisar também que a função social da empresa não se confunde nem com a responsabilidade social, nem com a função econômica dessa instituição. Enquanto a responsabilidade social[65] “corresponde a uma recente etapa de maior conscientização do empresariado no que diz respeito aos problemas sociais e ao seu potencial papel na resolução dos mesmos, principalmente em virtude da crescente falta de capacidade e de credibilidade do Estado na busca da eliminação daqueles”[66], a função social da empresa não só incide sobre a atividade empresarial de modo cogente, como também seu raio de aplicação limita-se às atividades que constituem os elementos da empresa, as quais geralmente coincidem com o objeto social da sociedade empresária.
Para cumprir sua função econômica, por outro lado, é suficiente que a empresa seja um centro produtor de riquezas, congregando capital e trabalho – concepção esta que se adéqua perfeitamente aos valores individualistas e liberais[67]. Basta, portanto, que a empresa esteja funcionando para que atenda à sua função econômica. A função social, por sua vez, é muito mais ampla, compreendendo uma gama de deveres positivos e negativos impostos ao empresário que visam a atender aos interesses gerais da sociedade.
Esses deveres impostos pela função social, todavia, não se esgotam nas previsões normativas, sejam do texto constitucional, sejam das leis ordinárias. Em que pese a doutrina, em regra, não tratar da função social como incentivo ao exercício da empresa, como forma de geração de empregos, de renda para o Estado, de concorrência positiva no mercado e de riqueza geral da sociedade, parece razoável conceber tais diretrizes como um espectro da função social latu sensu[68]. É bem verdade que o ordenamento jurídico não obriga nenhum indivíduo a criar postos de emprego, a gerar receita para o Estado e a aumentar a riqueza geral da sociedade, mas, a partir do momento em que esse sujeito se propõe a exercer uma atividade empresarial, ele tem que gerar tais benefícios. É uma decorrência lógica do exercício da atividade economicamente viável e, mais do que isso, um dever moral do empreendedor.
Discordando desse posicionamento, Eduardo Tomasevicius Filho[69] sustenta que esta função da empresa (de geração de renda, empregos) é, em verdade, uma função econômica que traduz apenas o papel social do instituto jurídico. Não parece razoável, contudo, fazer distinções entre papel social e função social da empresa, sob pena de enveredar-se por formalismos inúteis. Tratar-se-ia de uma distinção sem qualquer razão de ser, já que, de fato, o que o autor chama de papel social da empresa nada mais é do que uma decorrência da função social da empresa. É que ao cumprir sua função social a empresa, por consectário lógico, exerceria o que o autor chama de papel social.
A função social da empresa, portanto, pode ser analisada sob duas acepções: em sentido estrito, como sendo o poder-dever dos empresários e administradores da empresa de harmonizarem sua atividade com os interesses sociais, através de deveres positivos e negativos legal ou constitucionalmente impostos; e, em sentido amplo, como sendo o dever do empreendedor de, ao realizar uma atividade empresarial, gerar empregos, arrecadação para o Estado e desenvolvimento econômico em geral.