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Uma visão da função social da propriedade a partir das teorias da justiça liberal e comunitarista

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Agenda 18/04/2012 às 18:10

3 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

Podemos afirmar com veemência que foi após a adoção da forma republicana no Brasil que a propriedade começou a ser tratada como um direito social, tendo o vislumbre da função como um princípio introduzido por meio da Emenda número 10 à Constituição Federal Brasileira de 1946. Conquanto, foi somente com o “Estatuto da Terra[46]” que a temática ganhou forças, e pela primeira vez nos é apresentado o termo “função social da propriedade”. Essa Lei é de tamanha importância para o assunto em razão do fato de ter sido acolhida pela então futura Constituição Federal de 1988 e, sobretudo, por ser a primeira vez que a expressão “função social” é atrelado à “propriedade”.

Versando sobre isso Costalonga Junior é perspicaz nas palavras ao dizer que

Foram significativas as mudanças ocorridas no campo do direito privado com relação ao Direito Subjetivo da Propriedade. Os indivíduos passam a não possuírem mais direitos e sim funções, deixando de ser fim para serem os meios, transformando a sociedade em função social do possuidor de riqueza. O sistema civilista em detrimento mostra-se aqui injusto, tendendo a proteger unicamente os fins individuais em detrimento dos interesses coletivos.[47]

A nossa Constituição Federal de 1988, dando grande ênfase e importância a coletivização da propriedade, veio a dar destaque, colocando-a no rol dos direitos fundamentais. Tanto é assim, que é possível a leitura no art. 5º[48], caput e nos incisos XXII e XXIII:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. (grifo nosso).

[...]

XXII - é garantido o direito de propriedade.

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social.[49]

É, como visto, indubitável que o tema tenha importância ímpar, porquanto o art. 5º supracitado é, hodiernamente, um norte, ou na voz de Costalonga Junior, a “coluna vertebral” de todo o ordenamento jurídico, sendo dele, e ainda do artigo 3º[50] (que tratará dos objetivos da Constituição vigente) que todos os princípios sociais, políticos e jurídicos terão como ponto de partida.

É de bom alvitre chamar atenção ao fato de que, de acordo com o caput do artigo 5º, a propriedade é um direito de todos, ou seja, é um direito individual. Não obstante, há imperativos na forma constitucional que determinam expressamente que ela respeite sua função social. Isso quer nos dizer que ela deverá ter em foco um dever coletivo apesar de ser um direito do indivíduo.

Seguindo essa mesma linha de raciocínio, podemos afirmar que a função social da propriedade nada mais é do que fazer o interesse social (bem-estar coletivo) prosperar sobre o individual. O significado último da função social não é a “diminuição do direito de propriedade, mas de poder-dever do proprietário, devendo este dar à propriedade destino determinado”[51]. A Carta Magna, assim, deixou evidente que toda propriedade deve ter uma função, pois esse é o dever de seu proprietário. Nessa toada, assevera Eroulths Cortiano Júnior que

Como a função social é um elemento essencial definidor do próprio direito de propriedade, e não uma técnica jurídica limitativa do exercício dos poderes proprietários, pode-se afirmar que não há propriedade sem função social. Equivale a dizer: o proprietário que não faz cumprir a função social da propriedade não merece a tutela que é atribuída ao proprietário que utiliza sua propriedade de forma adequada ao interesse social[52].

Convém recordar, em relação a função social da propriedade, que esta encontra-se no rol das cláusulas pétreas[53], mais precisamente no art. 60, § 4º, IV, CF/88, que disporá sobre a proibição de se abolir os direitos e garantias individuais, ou seja, aqueles dispostos no art. 5º, conforme já tratado mencionado. A importância que depreende disso é a estabilidade dada à questão social da propriedade, pois enquanto vigorar a atual Constitucional Federal, não será possível abolir as normas que tratam sobre o tema.

Rodrigo Xavier Leonardo[54] trata, e não poderíamos deixar de trazer a lume, que existe uma distinção entre direito de propriedade e direito à propriedade. Essa diferenciação surge diretamente da consequência da propriedade ter se tornado funcionalizada, e assim quebrara sua unicidade. Será dessa funcionalização social que a propriedade começará a adquirir uma forma de entendimento ampliada para “além do conhecido direito de propriedade”, consolidando agora “uma verdadeira garantia de acesso (direito) à propriedade”[55].

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Fica mais claro o entendimento nos palavras preciosas de Luiz Edson Fachin, em sua obra intitulada teoria crítica do direito civil:

Passa-se a entender que esse direito subjetivo tem destinatários no conjunto da sociedade, de modo que o direito de propriedade tamém começa a ser lido como direito à propriedade. Gera, por conseguinte, um duplo estatuto: um de garantia, vinculado aos ditames sociais, e outro, de acesso.[56]

Sobre esse mesmo aspecto reverbera também Alcides Tomasetti Junior[57] que o direito à propriedade representa uma garantia de acesso à própria propriedade, por outro enfoque, o direito de propriedade, ou seja, de titularidade, assume um significado ímpar, que não se encontra no art. 5º.

Ao dispor sobre o direito à propriedade no rol das garantias fundamentais, o legislador a garantiu em um plano mais elevado, uma vez que o dispôs juntamente com o direito à vida por exemplo. Da norma em questão, e esse também é o entendimento de Rodrigo Xavier, podemos tirar que não é possível garantir direitos como à própria vida, à liberdade, à igualdade e à segurança, sem a um mínimo que seja de propriedade.

Outro ponto que também merece atenção é a importância da função social da propriedade no que tange à economia. Sobre o assunto, encontramos na Constituição vigente, no art. 170, Capítulo I (Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica) do Título VII (Da Ordem Econômica e Financeira) da seguinte forma:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I - soberania nacional;

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade;

[...][58]

Inicialmente temos que não é mais absoluto o direito do proprietário da terra com relação aos demais que o cercam. Hodiernamente predomina a ideia de que a função social da propriedade na economia surgiu para por um freio à liberdade de iniciativa.

A própria Constituição dispôs, em seus arts. 182 (trata da propriedade urbana) e 186 (por sua vez, trata da propriedade rural), dos requisitos necessários para que a terra atinja sua função social. Aquelas propriedades que não obedecem aos quesitos necessários pode ser passível de desapropriação nos termos da lei, consoante necessidade e utilidade pública. Assim, para que a propriedade seja socialmente funcional ela deverá estar de acordo com os arts. expostos:

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.

[..]

§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

[..]

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.[59]

A figura da “função social” da propriedade surgiu com o intuito de ser uma barreira para a concentração de terras[60] e para possibilitar aqueles menos favorecidos, o direito (fundamental) a propriedade. A conceituação do que vem a ser o termo varia de acordo com o pensamento liberal ou comunitarista do doutrinador. Como exemplo dessa assertiva, Maria Helena Diniz nos apresenta o conceito de função social da propriedade como o 

conjunto de normas e princípios constitucionais que têm por escopo precípuo a harmonização da propriedade particular de terras urbanas ou rurais com fins sociais, dando condições para que sejam economicamente úteis e produtivas de acordo com os reclamos de justiça social.[61]

Com outra visão sobre o mesmo tema, Celso Ribeiro Bastos nos adverte ser a mesma função social um

Conjunto de normas da Constituição que visa, por vezes até com medidas de grande gravidade jurídica, a recolocar a propriedade na sua trilha normal. Há o predomínio do critério econômico no conteúdo da função social da propriedade, abrangendo a mesma as sanções determinadas e aceitas na Constituição ao uso deturpado e degenerado, no que vai de encontro à Ordem Jurídica. Tais sanções referem-se às decorrentes do atentado das normas do poder de polícia, ou então à perda da propriedade na forma da Constituição Federal. A função social da propriedade careceria de um regime único haja vista a diversidade de domínios nos quais se manifesta a propriedade, dependendo sua eficácia de uma rígida e expressa regulamentação constitucional e infraconstitucional.[62]

Das compreensões do tema acima expostas, temos que o pensamento de Maria Helena é mais voltado ao viés comunitário. Ela aproxima a função social da propriedade do coletivo, nos chamando atenção ao fato de que as condições que a propriedade deve seguir para ser produtiva são os reclames da justiça social. Noutra vertente, Celso Bastos tem uma ótica de que a função social da propriedade não passa de mero acessório, ou seja, ela teria apenas como função tratar dos desvios de finalidades tomados pelo uso em excesso do individualismo. Nesse sentido, o fato de a função social não ser seguida não dá o direito que de o dono perca sua legitimidade.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde tempos imemoriais quando a sociedade passou a ser reconhecida como tal, as questões que envolvam a propriedade são alvo de violentas e constantes tensões, o que causa enorme desestabilização nas relações jurídicas e sociais. Dentro deste contexto, os conflitos que envolvem o Movimento Sem Terra (MST) e latifundiários são exemplos modernos do ponto em que chegou a sociedade quando se questiona a matéria.

Não se pode olvidar, porém, que o Estado, por sua vez, veio criando mecanismos que tivessem por fim pacificar tais conflitos e trazer e defender a propriedade. Nessa medida, e fruto de intermináveis pressões socioeconômicas, surge a figura da função social da propriedade no direito moderno.

Via de regra, hoje, a propriedade que não atenda a sua função social deve ser desapropriada, conforme os requisitos da lei, para que demais pessoas do seio social usufruam desse direito fundamental.

Conclui-se que a propriedade, para aqueles que a possuem, traz uma série de direitos equipados por uma série de deveres, uma vez que ela deixou de ser um direito absoluto de seu possuidor, não podendo mais ser de gozo único e exclusivo de um indivíduo. Analisando o tema, tem-se que a propriedade deixou de ser mero direito subjetivo, ou seja, aquele que delimita os poderes ao seu possuidor, para se tornar um princípio geral de ordem social e econômica da sociedade. Alerta-se ainda que o fato de a propriedade constar no rol dos direitos e garantias fundamentais já é suficiente para que adquira status coletivo.

O tema em análise nos eleva ao plano anterior a questão, qual seja: a discussão nada contemporânea entre liberais e comunitaristas. Se de um lado os liberais, como John Rawls, são conhecidos pela defesa do individualismo, em que os direitos fundamentais devem existir para possibilitar que o homem, livre como é, atinja todo seu potencial independente do meio em que esteja; os comunitaristas, como o emblemático MacIntyre, posicionam-se a favor da comunidade como um meio em que todos são interdependentes entre si e, desse modo, enfatizam a valorização a comunidade como o palco montado para que a narrativa da vida dos indivíduos seja escrita.

A Teoria da Justiça de Rawls teve o mérito de ser a primeira teoria que tratou de justiça e contribuiu significativamente para que houvesse uma reorientação do pensamento filosófico, como ficou demonstrado. Isto posto, depreende-se de sua teoria que numa sociedade liberal o indivíduo que retêm grandes parcelas de terras em detrimento de outros que não possuem nada é justo, pois isso foi acordado em uma situação de igualdade de condições. A expressão conhecida “o acordado não sai caro” faz-se lei aqui.

A essa ideia de que os indivíduos se vestem do “véu da ignorância” e se põem numa posição de igualdade para determinar aquilo que é tido como justo, dá a sua teoria certo grau de abstração da realidade vivida, o que gerou resistência por parte dos comunitários.

MacIntyre, por seu turno, levantará a bandeira em favor dos comunitaristas advertindo que o ser que nasce em uma sociedade pode usufruir dos bens que possuem, faz isso em razão de que todos os que o cercam (como coautores de sua narrativa) contribuírem para que aquele status social fosse atingido. Dessa forma, não admissível que uma pessoa rejeite toda a contribuição da comunidade e tome somente para si a posse de um bem.

Diante do exposto, depreende-se do presente ensino que a nossa Constituição Federal foi influenciada tanto por princípios liberais como por comunitários, todavia, no tocante a função social atribuída à propriedade, esse segundo se fez próspero. Eis, então, o motivo da existência da noção de função social atrelada à propriedade: o direito de um bem tão precioso quanto a terra não poderia ser delegado com exclusividade total a um indivíduo sem uma devida contraprestação comunitária.

Finda-se aduzindo que a função social do estado foi uma maneira de superar o individualismo crescente que é intrínseco do homem, na propiciação de uma sociedade livre, justa e solidária, como rege no art. 3º, inciso I, da Lex Fundamentalis, ao tratar de seus objetivos como lei maior de nosso Estado.

Sobre o autor
Teuller Pimenta Moraes

Estudante de Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Teuller Pimenta. Uma visão da função social da propriedade a partir das teorias da justiça liberal e comunitarista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3213, 18 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21547. Acesso em: 5 nov. 2024.

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