RESUMO
A função social da propriedade presente na Constituição Federal de 1988 em uma análise comparativa entre a primeira e grande teoria liberal da justiça em contraste com a Teoria Comunitária. John Rawls, ao lado da defesa aos princípios liberais, é um filósofo norte-americano, tido como um dos principais teóricos da atualidade que defendem a democracia liberal. Seu principal trabalhou ficou para a história intitulado de Uma Teoria da Justiça e tem como qualidade distintiva o retorno à clássica teoria do Contrato Social. Do lado oposto, Alasdair MacIntyre filósofo de sociedade e apontado como um dos principais precursores do comunitarismo, cuja teoria renomada se chama Depois da Virtude, tem-se por pilar de sustentação as virtudes do indivíduo e o resgate à ética aristotélica. Ambas as doutrinas são tratados tendo por fim último a relação existente com a propriedade, considerando, principalmente, a primícia da função social, bem como o fato de a terra ser considerada um direito fundamental presente no ordenamento jurídico pátrio.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria da Justiça; John Rawls; Teoria Comunitária; Alasdair MacIntyre; Função Social da Propriedade.
INTRODUÇÃO
O homem não foi criado para viver só. Desde os tempos de sua aurora, a vida em comunidade se fez presente pela razão simples principal de ser extremamente necessária em virtude das condições adversas da própria vida em natureza. Nesse período a ideia de bens em posse única e exclusiva de uma pessoa ou de um pequeno grupo era inexistente.
O desenvolvimento tecnológico e, principalmente, intelectual, fizeram, ao reverso, com que o homem começasse a desejar mais do que as próprias vestimentas, pois percebeu que assim, deteria um poder de mando sobre seus demais pares. Logo, quanto menos pessoas tivessem em sua posse um determinado bem, mais aqueles que a possuíam tornavam-se poderosos. Igualmente antiga quanto essas ideias, a propriedade pode ser considerada o primeiro bem a viver a dicotomia de ser almejado por todos, todavia possuído por poucos.
Ao entendimento de propriedade como sinônimo de poder compartilhamos do entendimento de Cássia Celima Paulo Moreira Costa, que diz ter sido a propriedade sempre vinculada
à ideia de poder, ao qual o Estado, fundamentado em inúmeras razões, sejam estas de ordem política, social, cultural, filosófica, religiosa, econômica, ou de outra natureza, interveio na propriedade como forma de afirmação do seu poder[1].
O Estado Moderno, que não poderia se alhear dessa realidade, interveio no tema criando barreiras perceptíveis de distribuição de bens. Uma dessas medidas que encontrados na nossa Carta Magna é a figura da função social da propriedade, extremamente necessária para que o indivíduo tenha uma vida regida pela dignidade. Nesse mesmo sentido, Costalonga Junior vem nos advertir sabiamente que
O instituto da propriedade, assim como o da posse atualmente está se desarraigando dos princípios individualistas de outrora e concebendo, no seu âmago, a dignidade da pessoa humana como estrela guia por onde deve, obrigatoriamente gravitar, para a busca de uma sociedade justa.[2]
Visto isso, cabe advertir que não é pretensão do presente estudo criticar ou até mesmo desnaturar o caráter privado da propriedade. Sem se posicionar a favor de qualquer viés ideológico o que se pretende e tratar o tema apenas de modo imparcial como o feito pela Constituição Federal de 1988. O que propomos a ter por fim é a análise das correntes liberais e comunitárias e suas interferências na Carta Magna brasileira, sobretudo quando se tem por foco a função social da propriedade.
Problemática impossível de medir, e isso não só no estudo do Direito, é lidar com palavras plurissignificativas. Tratar daquilo que exceda o universo de palavras e adentra no âmbito pessoal do indivíduo é o mesmo que andar por trilhas desconhecidas: nunca se sabe qual paradeiro terá. Cremos que seja essa a situação quando se tenta falar de “justiça”.
Na busca por um sentido, de elevado modo, denotativo para a palavra, podemos dar o seguinte significado como “qualidade do que está em conformidade com o que é direito; maneira de perceber, avaliar o que é direito, justo”[3]
Como se infere, o significado trazido pelo dicionário cobre bastante das perspectivas que a palavra tem, contudo é impossível que delimite todos. A justiça muitas vezes adentra na carga histórica de vida da pessoa, o que faz com que um considere “justo” que a uma propriedade fique a mercê do tempo almejando a especulação econômica, uma vez ela é parte de um bem do indivíduo, enquanto outros prefiram a versão de “justiça” do Estado que busca desapropriar essa propriedade que não esteja cumprindo com sua função social, em benefício de uma coletividade que supera o direito individual. Assim, são preciosas as palavras de Aristóteles quando trata dessa questão. Para o autor
“justiça” e “injustiça” parecem ser termos ambíguos, mas como seus diferentes significados se aproximam uns dos outros a ambiguidade não é notada, enquanto no caso de coisas muito diferentes designadas por uma expressão comum, a ambiguidade é comparativamente óbvia[4].
É sabido que, quanto a questão do método de estudo, “não existem um método perfeitamente adequado à investigação jurídica”[5], todavia, ele é inteiramente necessário posto que dá ao trabalho um enfoque teórico-problemático. Por isso, propomo-nos a fazer uso do método de investigação dedutivo, ou seja, aquele que “parte do geral para o particular”[6]. Com isso, o que temos em mente é que algumas normas e regras tem direta relação com leis gerais e princípios e, logo, são reflexos dessas.
Faz-se proveitoso observar que o estudo será divido em 3 partes. Em um primeiro momento, trataremos sobre os princípios do liberalismo político em nossa abordagem, focalizando e dando maior atenção, ao pensamento da John Rawls na construção de sua Teoria da Justiça. Isto feito e em um segundo momento, a atenção será ao aposto do pensamento liberal, ou seja, discutiremos sobre os ideais da Teoria Comunitária, tendo como pilar de sustentação um dos principais nomes do comunitarismo, o ilustre professor Alasdair MacIntyre.
Acreditamos que por lado a lado teorias tão divergentes desde a base até seu alicerce seja didaticamente a melhor maneira de transmitir aos leitores a real influência dessas correntes de pensamento no cenário do direito atual.
No fim da explanação, será tratado da propriedade como direito e dever daquele que a possui para que este ande de forma coplanar com a sua função social. Merece menção a definição apresenta pela estudiosa Maria Helena Diniz quanto ao termo “Função Social”. Salienta, então, a autora que o termo faz menção a série de “atividade e papéis exercidos por indivíduos ou grupos sociais, com o escopo de obter o atendimento de necessidades específicas”[7].
Do exposto e como será delineado a seguir, temos que a função social da propriedade preocupar-se-á assegurar para todos os mesmos direitos que terão reflexo direto na condição de vida humana digna.
1 A TEORIA DA JUSTIÇA A PARTIR DE JOHN RAWLS
Rawls é considerado um liberal, no que toca a filosofia política. Podemos resumir o pensamento liberal como sendo a defesa da liberdade de consciência, assim como dos direitos inerentes a esse indivíduo. Por fim, é traço dos liberais a total desconfiança existente no Estado, quando esse se mostra paternalista demais.
1.1 DO CONTRATUALISMO À JUSTIÇA COMO EQUIDADE
John Rawls é categórico ao afirmar que todas as instituições da sociedade devem ser, primordialmente, justas. Não se trata apenas de serem eficientes, ou de terem uma organização perfeita, porém de jamais serem injusta sob a pena de imediatamente serem abolidas. Nessa linha de raciocínio, nos instrui o autor que só se deve tolerar uma injustiça quando é em prol de uma coletividade.
Em seu ensaio, John Rawls partirá da famosa teoria do Contrato Social, que tem como principal expoente John Locke, que tem sua importância acentuada por ocupar “um lugar muito importante na tradição filosófica e política liberal”.[8] Conquanto, o contrato dito por Rawls é bastante peculiar ao ponto de ser tratado pelo próprio autor como um contrato hipotético. A função desse contrato é estabelecer que quando o homem se encontra em uma condição dita ideal, ele é capaz de firmar um acordo entre seus pares onde todos os indivíduos são tratados com igualdade e liberdade.
Tratando sobre o contrato hipotético de Rawls, Roberto Gargarella[9] vai dizer que sua importância situa no fato de ele ter “sentido fundamentalmente porque reflete o nosso status moral igual, a ideia de que, de um ponto de vista moral, o destino de cada um tem a mesma importância”.
A construção de contrato pressupõe, para Rawls, um estado inicial em que os sujeitos se encontrariam. Esse estado de condições foi o que o autor chamou de posição original. Nas palavras de Francisco da Cunha e Silva Neto, ela
Diz respeito a uma situação hipotética na qual pessoas livres e iguais (racionais e interessadas), sem conhecerem de antemão sua posição futura, acordam (escolhem), sob o denominado “Véu da ignorância”, os princípios de justiça que governarão a “estrutura básica da sociedade”.[10]
Desse modo, o contexto da vida comunitária irá surgir pautada em um ideal igualitário. Em linhas gerais o autor vai tratar a sociedade como uma pluralidade de pessoas que acordam sobre as regras. Em suas palavras, então, a sociedade é uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas.[11]
Para Garfarella[12] há dois motivos igualmente importantes de Rawls ter como base o seu contrato hipotético, a saber: seu objetivo último de estabelecer princípios básicos de justiça e que esses princípios são aplicáveis em sociedades organizadas.
Quando se trata dos princípios básicos da justiça o próprio Rawls nos expõe que eles são frutos do consenso entre as pessoas livres e racionais. Eles irão ser o guia, o fundamento regulador dos demais acordos que surgirão. É dessa relação de cooperação entre as pessoas para se chegar à escolha dos princípios, estando em condições de total imparcialidade, que o autor atribuiu o nome de “justiça como equidade”.[13] Nesse diapasão, aquilo que se deve considerar como certo ou errado, moral ou imoral, justo ou injusto será posto por um grupo de pessoas, não sendo algo, então, inerente do homem.
Importante notar a preocupação do autor em dizer que a relação entre os seres é de total imparcialidade em virtude de ninguém tem conhecimento “do seu lugar na sociedade” [14]. Esta posição em que as pessoas se encontram em melhor entendida nas palavras de Gisela Gonçalves quando reverbera que ela
consiste na simulação da imparcialidade ar ser representada por uma comunidade de seres livre e iguais e com igualdade de oportunidades.[15] (grifo nosso)
É imperioso assinalar que essa situação de isenção de conceitos parciais não é fruto do âmago das pessoas apenas, e sim porque eles se encontram em uma situação bem particular. Rawls diz que os sujeitos se encontram revestidos pelo “véu da ignorância”, que os impede de saber suas condições pessoais como as desventuras e venturas que detiveram das capacidades naturais, como inteligência e força ou ainda, de saberem os seus status sociais. Em contraste com essa situação, o “véu” não os impede de ter conhecimentos gerais como os pertinentes às ciências sociais.
O “véu na ignorância” tem uma importância sem igual haja vista que sem ele não seria possível elaborar uma teoria da justiça já que o “véu” é que possibilita as escolhas unânimes[16]. Como diz Will Kymlicka[17] o “véu” não é uma expressão de uma teoria da identidade pessoal. É um teste intuitivo de equidade. Enfim, sem esse revestimento de imparcialidade os sujeitos poderiam chegar em situações onde, claramente, um estaria em posição mais vantajosa enquanto outros estariam em situação plenamente desvantajosas, como ter que sofrer com alguma incapacidade.
Seguindo o desenrolar da argumentação, as leis e, principalmente a Constituição, surgirá desse acordo firmado da concepção e entendimento do que vem a ser justiça. Sabendo disso, é que se afirma que a justiça como equidade tem a função de estabelecer os princípios da justiça na posição inicial, ou seja, os princípios da justiça são úteis por se tratarem de um conjunto de primícias necessárias para “determinar a divisão de vantagens e para selar um acordo sobre as partes distributivas adequadas”[18]
Dito tudo isto chegamos à essência da justiça de John Rawls, a saber: os princípios que foram escolhidos nas condições excepcionais, frutos dos debates entre aqueles que formaram a posição original. Em sua obra, são dispostos, exatamente, da seguinte maneira:
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para as outras.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas de tal modo para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posição e cargos acessíveis a todos.[19]
Do mesmo modo que o autor, explicitaremos cada um de acordo com a divisão por ele formulada.
Do primeiro princípio, e de acordo com os ensinamentos de Ademir João e do próprio John Rawls, o foco da justiça se concentra nas bases da sociedade, ou seja, a justiça está inerente nas instituições que distribuíram os direitos e deveres de cada um e irão regular os ônus e, principalmente os bônus da economia social. Dito de outra forma, o princípio aqui disposto se voltam para as instituições básicas da sociedade fazendo que o, em qualquer situação, essas estruturas “não os prejudiquem ou os discriminem”[20].
Do segundo princípio por sua vez, chamado por Gargarella de “princípio da diferença[21]”, podemos arguir que ele se volta à distribuição de renda e recursos entre as pessoas. Todavia, aqui surge um ponto interessante: para o Rawls, a distribuição de riqueza não necessariamente deve ser igual, no entanto, deve ser vantajosa a todos. Ou seja, se, de alguma forma, a distribuição desigual trouxer um benefício maior, a justiça estará sendo feita.
Buscando uma mais fácil compreensão dos princípios podemos dispô-los assim, em resumo: o primeiro exige igualdade na repartição dos direitos e deveres básicos; o segundo pressupõe que as desigualdades sociais e econômicas somente são justas a quando produzem benefícios compensadores a todos[22].
Esses dois princípios devem agir simultaneamente, tendo o primeiro sendo o antecedente do segundo. Deles surgirá o bem-estar da sociedade onde todos, em um esquema de cooperação, serão sempre mutuamente beneficiados, tendo os ricos em auxílio aos pobres. No conceito de Rawls, então, a injusta existe quando a desigualdade não trouxer um benefício a todos.
Como último ponto, cabe apenas dispormos sobre os bens primários uma vez que a teoria da justiça de Rawls se volta para esses. Os bens sociais primários seriam aqueles que “um homem racional deseja, não importa mais o que ele deseja”. São os bens responsáveis por dar as pessoas a fé de que conseguirão sucesso em suas vidas, como “direitos, liberdades e oportunidades, assim como renda e riqueza”[23].
Diante do exposto, ficou claro que a Teoria da Justiça de John Rawls estabelece que a igualdade entre as pessoas, mesmo que essa igualdade provenha da desigualdade, no caso único de trazer consigo um benefício maior. A teoria de Rawls, então, pressupunha um Estado extremamente ativista para que a sociedade fosse igualada. Esse seu pensamento ia contra o viés liberal, o que fez com que os próprios liberais o critica-se.
2 O COMUNITARISMO PARA ALISDAIR MACINTYRE
Em uma visão de mundo totalmente oposta aos liberais surgem os comunitaristas, como nomes como Alasdair MacInteyre (a que daremos ênfase neste estudo), Michael Walzer e Michael Sander. Essa corrente de pensamento tem como caraterísticas o fato de comungarem da desconfiança pela moral abstrata, terem simpatia pela ética das virtudes e por terem uma concepção de política com muito espaço para a história das tradições[24].
2.1 DO COMUNITARISMO AO PENSAMENTO DE ALASDAIR MACINTYRE
Em veemente contraste com o pensamento liberal posiciona-se aquela que ficou conhecida como vertente comunitarista. O comunitarismo tem como berço de sua origem os Estados Unidos por volta do século XX, momento em que havia a hegemonia da dominação desse país na América. Surgem para contestar o estado liberal e sua insuficiência teórico-prática. Seu objeto é a valorização da comunidade, por ser um espaço “no qual os indivíduos possam se exprimir e partilhar valores”[25].
Esse enfrentamento entre liberais e comunitarista vai se demonstrar um pouco mais longo, haja vista que os principais autores das duas escolas buscam nos clássicos as origens de suas teorias. A título de exemplificação, Taylor vai buscar os ataques de Hegel ao pensamento de Kant (este defendido por Rawls) como base na suas construções doutrinárias. Serão das diversas críticas dos comunitaristas aos liberais que buscaremos fazer um perfeito discrime entre essas correntes.
De início, temos o posicionamento contrário dos adeptos à Teoria Comunitária quanto à concepção da pessoa feita pelos liberais. Para estes não basta que o indivíduo pertença a uma instituição ou entidade, mas sim que ele seja capaz de questioná-la e até mesmo de desunir-se dela para buscar, por si próprio, metas diferentes das quais conseguiria naquele grupo. Em contrapartida, os comunitaristas defendem que o que somos, ou seja, nossa “identidade como pessoa”[26] é fruto do meio em que estamos inseridos.
A distinção aqui está que na tradição liberal o indivíduo se comporta como um ser autônomo, indiferente a sua comunidade, enquanto que na tradição comunitário, este ser não vive sem sua comunidade, pois boa parte de sua identidade é definida dentro desse círculo em que ele viveu. Há uma dependência entre o ser e a comunidade. Assim é que Sandel irá se opor as palavras de Rawls quando diz que as pessoas são quem escolhem seus fins e seus objetivos vitais, por desconsiderar aí a carga de valores embutidos pela sociedade em que viveu[27].
Didaticamente nesse primeiro ponto, devemos entender apenas que os liberais valorizam o individual ante ao coletivo; já os comunitários fazem o inverso: por acatarem uma visão coletivista, valorizam o social ante ao individual.
Frise-se advertir, em consequência ao que foi exposto, que a principal divergência dos comunitaristas aos liberais está na base em que as correntes firmam os problemas sociais, como a desigualdade. Os comunitaristas criticam que os liberais, ao terem por preocupação a visão de justiça, olham para o exterior e não para a comunidade em busca de respostas. Sobre esse assunto, Cecília Carbarello ao tratar sobre o enfoque comunitarista, diz que “a justiça das instituições estaria no fato de se viver de acordo com essas práticas que deverão estar centradas no bem comum”[28].
Dentro desse contexto, fica evidente que a comunidade é de extrema importância para o viés comunitário, uma vez que podemos afirmar que há uma visão organicista ou até mesmo holística da sociedade. Assim, com muita propriedade Cabarello trata que
Embora Rawls pareça querer apresentar sua teoria da justiça como uma verdade universal, os comunitaristas argumentam que os padrões da justiça devem estar fundados na forma de vida e tradições das sociedades em particular, o que, portanto, pode variar de contexto para contexto.[29]
Os comunitários têm a percepção de relações horizontais dentro de sociedades e isso contribui para formação de uma coesão social havendo sempre mútua cooperação entre os membros. Diferente, então, dos liberais em que o individualismo e a auto dependência impediriam que as pessoas buscassem outras. Disso temos que comunitaristas, consideram que o “eu sem vínculo dos liberais é, antes de tudo, um indivíduo destituído de dimensão moral e comunitária e não um sujeito livre e autônomo como defendem”[30].
Outro ponto que merece nossa atenção é quanto a possibilidade de intervenção do Estado na vida das pessoas. Os liberais rejeitam categoricamente tal possibilidade por defenderem que tal instituição deve ser neutra quando estiver diante dos fatos acordados entre particulares, entre o que é bom ou não para esses, uma vez que somente estes últimos saberão o que é melhor para suas vidas. No viés liberal, o Estado deve se limitar a assegurar apenas a convivência pacífica e harmônica dentro do de uma sociedade. Por outro ângulo, os comunitaristas acreditam que o indivíduo, por ser ideal que viva em uma comunidade política igualitária, o Estado, obrigatoriamente, deve tomar uma postura intervencionista, sendo “comprometido com certos planos de vida e com certa organização da vida pública”[31].
Nessa perspectiva comunitarista, portanto, temos que o Estado Comunitário pode e deve encorajar as pessoas a adotar concepções de bem que se ajustem ao modo de vida da comunidade, ao mesmo tempo em que em que desencoraja concepções do bem que entrem em conflito com aquelas. Um Estado comunitário, portanto, é um Estado perfeccionista, já que envolve uma hierarquização pública do valor de diferentes modos de vida.[32]
Finalmente e como se depreende dessas colocações, no liberalismo existe a defesa de uma posição atomista do indivíduo, em que este tem liberdade dentro de sua esfera privada, podendo dar preferência a sua posição individual que ao bem comum. Este pensamento está no cerne do liberalismo como deixa claro Benjamin Constant[33] ao discursar que “a independência individual é a primeira das necessidades modernas”[34].
Podemos entender o “atomismo”, então, como o termo usado pelos comunitaristas na descrição das doutrinas contratuais, surgidos no século XVIII, em que irão ver a sociedade como um emaranhado de indivíduos que se orientam por seus objetivos individuais[35].
Os comunitaristas têm total aversão ao atomismo porque essa postura ignora a função da sociedade na formação do ser, uma vez que este está inserido naquela. Conforme já disposto, o ser humano não é autossuficiente no entendimento comunitarista, razão essa que o faz necessitar de viver em comunidade. O Atomismo simplesmente desconsidera todo o contexto em que o indivíduo cresce porquanto parte do princípio de que o sujeito e suas esferas de direitos são mais relevantes que as questões que envolvam a sociedade e, desse modo, não são definidos pela interdependência entre seus pares. Assim, segundo o entendimento dos que defendem a corrente atomista, o indivíduo “não têm necessidade de nenhum contexto comunal para desenvolver e exercitar sua capacidade de autodeterminação”[36].
Pontuando sobre o tema em evidente defesa ao pensamento comunitarista, narra com clareza solar Gisela Gonçalves quando trata das consequências da atomização. Segundo a autora, há duas consequências para o atomismo, a saber: o empobrecimento e enfraquecimento do tecido cultural ao destruir as identidades culturais incompatíveis com o individualismo liberal, e ainda o fato de a atomização demonstra-se destruturante para a ordem social porque suscita déficit de legitimidade[37].
Contra essa individualização dos liberais alguns comunitários irão buscar a ideia de socialização presente nas sociedades gregas. Será o caso de Alasdair MacIntyre, um neo-aristotélico que retornará aos discursos de Aristóteles sobre a teoria social e política, onde buscará recuperar tais ideias e priorizará o que o autor clássico nos advertia sobra ética.
De forma sumária, podemos dizer que a ética para Aristóteles consistia no seguinte: o homem, como gênero humano, vive em comunidade por um motivo, a saber: a necessidade de buscar nela o seu centro referencial de valores. Desse centro de valores o homem aprenderia o que é ter um comportamento ético e, mais que isso, teria como praticar a ética e as virtudes ali aprendidas. Ora, a própria ideia de aprendizado e prática já nos pressupõe mais de uma pessoa. Não é possível ser generoso, por exemplo, apenas na teoria. É necessária a prática de tal virtude[38].
MacIntyre concorda com o pensamento de Aristóteles e apóia-se na tradição aristotélica para construir sua teoria. Dessa maneira, o autor inicia sua explanação deixando claro que o homem é um ser social e como tal, não há maneira de vê-lo individualmente, pela simples razão de que é na comunidade que o ser poderá conhecer, praticar e prosperar em suas virtudes.
O autor, então, trará o conceito de narrativa para explicitar a vida em comunidade. Do gênero textual “narrativa”, é sabido que, em sua construção, é necessário que se tenha um tempo delimitado e personagens. Mutatis Mutandis, em sua teoria, essas primícias serão a sua base tendo justificado essa escolha no seguinte modo:
É porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque entendemos nossa própria vida nos termos das narrativas que vivenciamos, que a forma de narrativa é adequada para entender os atos de outras pessoas. As histórias são vividas antes de serem contadas – a não ser em caso de ficção.[39]
Acresça-se que por meio da noção de narrativa da vida das pessoas, o autor vai nos advertir que um indivíduo já nasce em um cenário formado. Esse cenário é composto por variadas histórias que nada mais são do que influências de outras histórias, ou seja, a vida de uma pessoa dessa comunidade irá influir diretamente na vida de todos de alguma forma. A essa capacidade de influência o autor divide a narrativa de uma pessoa em “autor”, como sendo aquele que tem a capacidade de tomar as decisões de sua vida, e “coautor”, como sendo aquele que participa da vida, do drama, dos outros. Com essa fato em foco MacIntyre nos admoestará que “cada um dos nossos dramas aplica restrições aos outros, tornando o todo diferente da parte”[40].
A grande importância nessa temática é que colocamos todos em completa relação impossibilitando frases como “eu não tenho nada a ver com a pobreza alheia” ou “o que tenho por posse foi fruto apenas de meu trabalho”. Nesse sentido, são suntuosas as palavras de Isabel Ribeiro de Oliveira: “A narrativa de uma história individual é, portanto, parte de um conjunto de narrativas interconectadas”[41].
Para MacIntyre, toda a condição social de uma pessoa é produto da comunidade em que ele nasceu e cresceu como também é fruto das “coautorias” que participarem de seu drama. Em que pese o tema, discursa o autor: “Nasci com um passado e tentar me isolar desse passado, à maneira individualista, é deformar meus relacionamentos presentes.”[42]
Cabem aqui perfeitamente as palavras de Isabel Ribeiro quando trata sobre essa mesma temática dizendo que
A narrativa de uma historia individual é, portanto, parte de um conjunto de narrativas interconectadas. Assim, qualquer tentativa de elucidar a noção de identidade pessoal independente e isoladamente das noções de narrativa, inteligibilidade e responsabilidade (accountability), está destinada ao fracasso.[43]
Chama atenção que o autor considera que todas as histórias, fictícias e verdadeiras, de uma comunidade é que irão formar o entendimento das virtudes de um indivíduo. Logo, se alguém é privado contos com “madrastas malvadas”, “reis bons” ou “lobos que amamentam irmãos gêmeos”, não terá disponível um script e, consequentemente, faltar-lhe-á a identidade necessária para a vida em comunidade[44].
É de bom alvitre trazer a discursão que não falamos em determinismo pleno pelo simples fato de o indivíduo não será mero fruto do meio em que vive. MacIntyre trata a explicação de “tradições vivas”. Essas são entendidas, nas próprias palavras do autor, como “argumentações que se estendem na história e é socialmente incorporada”[45] ao indivíduo, todavia que não o obriga o concordar com tudo o que lhe é trazido. Essa, então, é a noção de “vivacidade” dada a tradição em que o indivíduo é capaz de transmiti-la de acordo com seu entendimento.
No que tange a noção de bem, Alasdair nos transporta para uma peculiaridade. Para o autor o bem comum é alcançado quando o indivíduo está bem (feliz) pois somente assim ele poderá fazer o próximo se sentir igualmente bem. Isto posto, fica evidente que apenas em uma comunidade o indivíduo alcançará a plenitude dessa felicidade em razão de ter a quem praticar a bondade. A relação, assim, entre o bem-estar e a comunidade é indissociável.
Por último, e ante ao exposto, conclui-se que para Alasdair MacIntyre o bem não é algo privado de apenas um indivíduo. Não como, em uma comunidade, alguém priorizar o que é bem apenas para si, desconsiderando os demais, pela simples fato de nenhum ser mais importante que os outros. Da tradição aristotélica que o autor advoga, o bem para um deve ser o mesmo para os demais ao qual este primeiro está ligado como autor ou coautor de suas narrativas.