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Dignidade da pessoa humana x banalização da tragédia (se questo è un uomo).

De Maquiavel a Hannah Arendt em "Os afogados e os sobreviventes"

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Agenda 29/04/2012 às 09:10

A partir da leitura sistemática da obra "Os afogados e os sobreviventes", busca-se encontrar as ideias e pensamentos defendidos por pensadores políticos como Nicolau Maquiavel, Thomas Hobbes, John Locke, Tocqueville, John Stuart Mill, Hannah Arendt, Alain Touraine e Antonio Gramsci.

RESUMO

A leitura de Os Afogados e os Sobreviventes nos convida a compreender a singularidade pela qual se manifesta o fenômeno da violência. A literatura de testemunho, produzida pelo sobrevivente Primo Levi, busca por meio de sua memória representar a realidade de quem passou pelo campo de concentração, desmistificar a imagem dos campos de extermínio, permitindo discernir entre distintas formas de violência. Dialoga perfeitamente com pensadores políticos desde Maquiavel, passando por Antonio Gramsci até chegar a Hannah Arendt, (re) desenhando perfeitamente seus discursos. Campos de prisioneiros, campos de concentração, presídios, masmorras, penas de trabalho escravo ou forçado são, muitas vezes, ainda confundidos. A compreensão da peculiaridade do fenômeno dos campos de concentração (Lager) possibilita o conhecimento de uma face da modernidade que, sustentada pela fé cega na razão, na neutralidade da técnica e no progresso de supostas leis históricas, produziu milhões de cadáveres. O testemunho de Primo Levi é uma contribuição para evitar uma típica separação operada pela modernidade: entre conhecimento e pensamento, entre ação e reflexão, entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativa. Mais de 60 anos nos separam dos campos de extermínio existentes durante a Segunda Guerra Mundial. Todavia, enquanto o tempo parece encarregado de banalizar o mal, a memória busca apagá-lo. Ninguém pode assegurar à humanidade que a inaudita brutalidade dos campos de concentração foi sepultada de uma vez por todas. Ocorrerão outros extermínios em massa? Auschwitz retornará? A eliminação física, mental e simbólica de grupos étnicos ou religiosos cessou?

PALAVRAS-CHAVE: VIOLÊNCIA, LAGER, EXTERMÍNIOS, BANALIZAR, RAZÃO


1.                  Preliminares da abordagem

O escopo do presente trabalho tem como objetivo – a partir da leitura sistemática da obra Os afogados e os sobreviventes – encontrar as ideias e pensamentos defendidos por pensadores políticos como Nicolau Maquiavel, Thomas Hobbes, John Locke, Tocqueville, John Stuart Mill, Hannah Arendt, Alain Touraine e Antonio Gramsci expressas em suas principais obras e discursos ao longo do tempo. Cabe aqui – a guisa de reiteração – ponderar que os pensadores supracitados viveram em épocas e contextos distintos (salvo raras exceções), afinal falamos de Itália (pré-unificação), Inglaterra, França, Estados Unidos (ainda 13 colônias), Itália (pós unificação).

Estudiosos que viveram o Estado (sua estrutura e formação); sofreram represália, pressões daquele sistema e fomentaram questões acerca da realidade, da conjuntura que os circundava. Homens a frente de seu tempo que conseguiam romper os antolhos do sedentarismo e do senso comum, passando a enxergar caleidoscopicamente e não por espelho, em enigma.

Em sua obra – Os afogados e os sobreviventes – Primo Levi apresenta (de maneira deveras peculiar) o cenário com o qual se defrontava: Alemanha no III Reich – período que antecedera a República de Weimar – governada pelo totalitário Adolf Hitler, deflagrando as atrocidades que por este foram realizadas ao longo do negro e sangrento período do nazismo, que fora, por sua vez, subsumido na execração de homens – diz-se homens e não raças, não só nos resguardando o direito de não empregar indevidamente o vocábulo, mas também pondo em evidência a realidade em voga, qual seja o extermínio de seres humanos –, no massacre de vidas inocentes que se viram esfaceladas pelos ditames de um poder cuja índole era desconhecida. Almas que se viram a si mesmas tendo sua dignidade depredada, estuprada, deflorada violentamente por um vento tempestuoso, obscuro e desconhecido.

Assim, num falar ora melancólico, condoído, revoltado ora orgulhoso, confiante, otimista, o autor vai desvelando toda uma sequência de fatos que se entrelaçam de modo a formar apenas a ponta do iceberg do que realmente consistia o nazismo (ou seria hitlerismo [1]?) aclamado como o nacional-socialismo alemão. Cada fala, comentário, recordações de momentos vividos no Lager [2] deflagra detalhes que nos forçam a refletir e/ ou inferir a respeito de que justificativa leva um ser humano (ou poder) a ultrapassar as barreiras do jusnaturalismo e, movido pela vontade própria e por autodeterminação enumerar, estereotipar quem serve e quem não serve; quem é superior e quem é inferior, sendo a morte o galardão daqueles que estão fora do padrão. Destarte merece destacar que, na concepção dos adeptos ao modelo totalitário, a morte era um favor para aquele grupo de seres subumanos, afinal, tratava-se de anomalias que deveriam ser execradas da sociedade.

Além disso, não estava morrendo gente, senão judeus. Perda da dignidade, dos direitos humanos, abatimento de vidas, animalização, coisificação, fanatismo, nacionalismo exacerbado são realidades vigentes em Auschwitz e nos outros campos de concentração onde a ideia de valores humanos era desconsiderada em virtude das idiossincrasias do modelo hitleriano. Questões levantadas pelo autor ex-prisioneiro e sobrevivente do Lager de Auschwitz que penetram no seio do leitor, fazendo o olhar para si mesmo e ao seu redor a fim de que melhor possa avaliar o que de fato tem importância nessa vida – fato que só se legitima quando se é privado de ser humano e, muito pior, quando se chega a esquecer do que (e de quem) realmente é em virtude de opressões e imposições que são outorgadas e executadas por um poder e/ ou domínio que perpassa os limites da compreensão, levando os passivos à opressão a desconhecerem as razões de estarem sofrendo os efeitos desse mesmo poder e, no final, apenas lutarem instintivamente pela sobrevivência – direito à vida – com todos os direitos que o verbo requer – sem ser dela privado.

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A presente análise propõe – além do diálogo com os pensadores políticos que é o objetivo principal, o cerne que a norteia – uma reflexão da Política enquanto instrumento de poder e como veículo fomentador de paz ou guerra (ou paz e guerra), objetivando chegar a uma conclusão que perpetre um pensamento pró-ativo e crítico da realidade ao seu redor e derredor e não embasado pelo senso comum, rompendo, por conseguinte, as barreiras da mediocridade a que está alicerçado esse tipo de pensamento e aqueles a que dele são adeptos.

Nosso discurso se coaduna à obra de Primo Levi que apresentamos anteriormente e que será utilizada como matiz teórico, bem como às ideias desenvolvidas pelos pensadores políticos apresentados em Clássicos da Política, buscando-se dialogar entre ambos no desenrolar e desvelar de nossa argumentação, visando à efetivação dos objetivos propostos. Para fins de esclarecimento e melhor compreensão da leitura a ser apresentada utilizar-se-á nas citações as abreviações: PL In: OAOS (Primo Levi, Os afogados e os sobreviventes) e In: CP (Clássicos da Política), facilitando-nos o entendimento ao nos referirmos às obras em questão.

Cabe reiterar que, no desenrolar da análise, estará presente em nosso discurso um cabedal de conhecimento e ideias oriundos das aulas de Política que não poderia estar de fora em virtude da grande contribuição que nos proporciona, haja vista que só se torna possível a temática que nos propomos analisar pelo conhecimento prévio sobre o assunto amparado pelas questões desenvolvidas e/ ou levantadas em sala de aula do componente curricular que norteia nossa presente argumentação.


2. Considerações prévias (análise do prefácio)

Tomando como ponto de partida a leitura do prefácio da obra objeto de análise (Os afogados e os sobreviventes) já é possível dialogar com Maquiavel no contexto de anarquia x principado e república, bem como com Hobbes a respeito da condição do homem:

[...] Seja qual for o fim da guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos; ninguém restará para dar testemunho, mas mesmo que alguém escape, o mundo não lhe dará crédito. Talvez haja suspeitas, discussões, investigações de historiadores, mas não haverá certezas, porque destruiremos as provas junto com vocês. E ainda que fiquem algumas provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos narrados são tão monstruosos que não merecem confiança: dirão que são exageros da propaganda aliada e acreditarão em nós, que negaremos tudo, e não em vocês. Nós é que ditaremos a história dos Lager – campos de concentração.

(PL In: OAOS, p. 09).

Maquiavel fala a respeito da desordem proveniente da imutável natureza humana – má, perversa, cobiça, invejosa, etc. –, acrescendo um importante fator social de instabilidade, qual seja a presença inevitável, em todas as sociedades, de duas forças opostas, “uma das quais provém de não desejar o povo ser dominado nem oprimido pelos grandes, e a outra de quererem os grandes dominar e oprimir o povo.” (O Príncipe, cap. IX). Temos deflagrado no extrato acima exatamente o dualismo destacado e/ ou observado por Maquiavel – dominar e ser dominado –, uma vez que esse fato se faz presente em qualquer sociedade política. Afinal, os critérios para a escolha do dominante – este deve ser dotado de fortuna e virtú – que segundo Maquiavel significa honra, riqueza, glória, poder e braveza, coragem, dignidade, respectivamente – o eleva em relação aos dominados, ficando estes em posição inferiorizada pelos detentores do poder.

Em Hobbes, o que chama atenção ao que fora comentado, é a condição de guerra de todos contra todos, sendo cada um governado por sua própria razão como podemos observar no extrato retirado de Clássicos da Política que analisa um fragmento da obra Leviatã:

[...] e não havendo nada, de que possa lançar mão, que não possa servir-lhe de ajuda para a preservação de sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui numa tal condição todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros. Portanto, enquanto perdurar este direito de cada homem a todas as coisas, não poderá haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a segurança de viver todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver. (Op. Cit. cap. XIV, p. 78)

Em outras palavras, é declarado que jus et lex (direito e lei) devem andar juntos numa relação de interdependência e só o farão a partir da não existência do direito de todos os homens a todas as coisas. Outra contribuição que é facilmente desvelada na obra – ainda no prefácio – é a de Hannah Arendt em sua análise sobre totalitarismo e banalização do mal:

[...] Todos os arquivos dos Lager foram queimados nos últimos dias da guerra, e esta foi verdadeiramente uma perda irremediável, tanto que ainda hoje se discute se as vítimas foram quatro, seis ou oito milhões: mas sempre em milhões se fala. Antes que os nazistas recorressem aos gigantescos fornos crematórios múltiplos, os inúmeros cadáveres das próprias vítimas, assassinadas deliberadamente ou destruídas pelos padecimentos e pelas doenças, podiam constituir uma prova e deviam ser eliminados de algum modo. A primeira solução, tão macabra que é difícil falar dela, foi a de empilhar simplesmente os corpos, centenas de milhares de corpos, em grandes fossas comuns, o que foi feito particularmente em Treblinka, em outros Lager menores e nas retaguardas russas. Era uma solução provisória, tomada com uma negligência bestial quando os exércitos alemães triunfavam em todas as frentes e a vitória final parecia certa: depois se veria o que fazer, de todo modo o vencedor é dono também da verdade, pode manipulá-la como lhe convier, de alguma maneira as fossas comuns seriam justificadas, ou eliminadas, ou anda atribuídas aos soviéticos (que, de resto, demonstraram em Katyn não ficarem muito atrás). (PL In: OAOS, p. 11).

Neste fragmento está ilustrada a concepção de Hannah Arendt a respeito do totalitarismo que se difere do despotismo, uma vez que este tem inimigos e aquele vítimas que é fato observável e depreendido da leitura do extrato supracitado. Um poder exacerbado em sua aplicação que torna a morte anônima e se constitui em massacrar inocentes, fato que corrobora a banalização do mal, i.e. o massacre passa a ser uma ação trivial, rotineira, uma das atribuições do cargo que se ocupa e, para que não haja mácula no ponto, o funcionário executa sua tarefa dando o melhor de si – perdoe-me a ironia. (grifo meu). Outra característica do totalitarismo apontada por Arendt e presente na obra é a manipulação da verdade por parte dos detentores do poder que se endeusam, tornando-se onipotentes, podendo escrever sua história como melhor lhe aprouver. Podemos tomar a própria caracterização dos Lager feita pelo autor como mais um elemento que corrobora o pensamento de Arendt: “[...] depois de terem funcionado como centros de terror político, em seguida como fábricas da morte e, sucessivamente (ou simultaneamente), como ilimitado reservatório de mão de obra escrava sempre renovada [...]” (PL In: OAOS, p. 11).

O fragmento a seguir ilustra muito bem o ideário de Thomas Hobbes e Hannah Arendt a respeito da aceitação da dominação (contrato) – que será melhor explicado a posteriori – e totalitarismo, respectivamente:

[...] Ninguém jamais conseguirá estabelecer com precisão quantos, no aparelho nazista, não podiam deixar de saber das atrocidades espantosas que eram cometidas; quantos sabiam alguma coisa, mas podiam fingir ignorância; quantos podiam ainda saber tudo, mas escolheram o caminho mais prudente de tapar os olhos e ouvidos (e sobretudo a boca). [...] é certo que a não difusão da verdade sobre os Lager constitui uma das maiores culpas coletivas do povo alemão e a mais aberta demonstração da vileza a que o terror hitleriano o tinha reduzido: uma vileza tronada hábito, e tão profunda que impedia os maridos de contar às mulheres, os pais aos filhos; sem a qual não se teria chegado aos maiores excessos, e a Europa e o mundo, hoje, seriam diferentes. (PL In: OAOS, p. 12-13).

Iniciemos por Hobbes. O fato de saberem a verdade, conhecê-la e forjarem ignorância, desconhecimento revela aceitabilidade da dominação. Dessa forma o contrato social – segundo Hobbes o indivíduo abre mão de sua liberdade para que sua vida seja garantida, originando um contrato social não expresso, mas tácito – se efetiva, ocasionando a subordinação política que cada indivíduo aceita tacitamente. Por outro lado, o mesmo fragmento nos reporta a Hannah Arendt no que tange ao totalitarismo em que o indivíduo não mais se subordina politicamente por vontade própria, mas por obrigação, por idiossincrasia do poder dominante que obtém êxito por meio do terror e que, mesmo compactuante, passivo a dominação, esta já não mais garante a vida: [...] aqueles que conheciam a horrível verdade por serem (ou terem sido) responsáveis tinham fortes razões para calar; mas, como depositários do segredo, mesmo calando não tinham sempre a vida segura. [...] (PL In: OAOS, p. 12).

Uma consideração que merece destaque é a respeito dos Lager. Já é sabido que se trata de campos de concentração nazistas. Entretanto, não se pode compreendê-lo se o tomarmos como um todo – a guisa de conceituação –, fato que nos remete a Antonio Gramsci em seu estudo de classe, uma vez que os Lager não eram câmaras fechadas, veículos, instrumentos de uso hitleriano para massacre e execração:

[...] os Lager constituíam um sistema extenso, complexo e profundamente entrelaçado com a vida cotidiana do país; falo-se com razão de univers concentrationnaire, mas não era um universo fechado. Sociedades industriais grandes e pequenas, empresas agrícolas, fábricas de armamentos obtinham lucro da mão de obra quase gratuita fornecida pelos campos. Algumas exploravam os prisioneiros [...] Outras indústrias, ou talvez as mesmas, lucravam com fornecimentos aos próprios Lager: madeira, materiais de construção, tecido para o uniforme listrado dos prisioneiros, vegetais desidratados para a sopa, etc. (PL In: OAOS).

Em síntese, não se pode entender os Lager apenas como câmaras de tortura, uma vez que havia sociedades que dependiam e/ ou lucravam com o funcionamento dos campos de concentração. Essa análise só se torna possível a partir de estudo detalhado de todo o funcionamento de cada Lager para que se possa depreender qual é o ramo de cada um e como estes se relacionam e se interdependem que é o que propõe Gramsci quando diz que não se pode olhar classe como algo fechado, uma vez que há todo um sistema (ou sistemas) interno (intra-classe) que a configura.

Cabe reiterar, ao que já fora argumentado a respeito de totalitarismo – excluindo a ideia de massacre intrínseca ao conceito –, um diálogo com John Locke concernente a ideia de tirania que segundo o pensador é o exercício do poder além do direito, i.e. faz-se uso do poder não para o bem daqueles que lhe estão sujeitos, mas a favor da vantagem própria, satisfazendo sua ambição, vingança ou qualquer outra paixão irregular.

Na sequência, nos deparamos com outro conceito que nos fora presenteado por Hannah Arendt que consiste na desconsideração do indivíduo como cidadão, como pessoa, além da privação da liberdade:

[...] Não sabiam para quem trabalhavam. Não compreendiam o significado de certas imprevistas mudanças de condição e das transferências em massa. Cercado ela morte, muitas vezes o deportado não era capaz de avaliar a extensão do massacre que se desenrolava sob seus olhos. O companheiro que hoje tinha trabalhado a seu lado amanhã sumia: podia estar na barraca próxima ou ter sido varrido do mundo; não havia jeito de saber. Em suma, sentia-se dominado por um enorme edifício de violência e de ameaça, mas não podia daí construir uma representação porque seus olhos estavam presos ao solo pela carência de todos os minutos. [...] (PL In: OAOS, p. 14)

Pode-se observar no que fora ilustrado acima o indivíduo privado de sua liberdade, alienado a respeito do mundo, do contexto, da conjuntura da atualidade, sendo, portanto, desconsiderado como cidadão por estar (ou ser) tolhido de sua compreensão e capacidade de abstração da realidade.

Para John Locke, esse fato – violação deliberada e sistemática da propriedade (vida, liberdade e bens) somado ao uso contínuo da força sem amparo legal – seria suficiente para colocar o governo em estado de guerra contra a sociedade e os governantes em rebelião contra os governados, conferindo ao povo o legítimo direito de resistência à opressão e à tirania, ocorrendo a dissolução do estado civil e o retorno ao estado de natureza, em que, esgotadas todas as alternativas, o impasse só poderia ser decidido pela força.

Primo Levi fala a respeito dos prisioneiros políticos que se diferenciavam dos judeus e dos criminosos, uma vez que dispunham de um “substrato cultural que lhes permitia interpretar os fatos a que assistiam [...] e, enfim, porque muitas vezes, além de desempenharem funções importantes nos Lager, eram membros das organizações secretas de defesa.” (Ibidem, p.15) Esse fragmento nos remete a Alain Touraine, visto que ilustra o comportamento coletivo defensivo, neste caso, por parte dos prisioneiros políticos que são integrantes de organizações secretas de defesa.

Mais uma vez voltamos a Thomas Hobbes em sua descrição sobre o estado de natureza humano:

[...] Não há prisioneiro que não o recorde, e que não recorde seu espanto de então: as primeiras ameaças, os primeiros insultos, os primeiros golpes não vinham dos SS, mas de outros prisioneiros, de “colegas”, daqueles misteriosos personagens que também vestiam o mesmo uniforme de listras recém-vestido pelos novatos. [...] (Ibidem, p. 17).

Aqui se vê claramente o homem em estado de guerra, todos contra todos descrito por Hobbes. Nos Lager a guerra, a revolta partia dos próprios prisioneiros contra eles mesmos, como se fosse uma atitude de protesto contra aquele que se permitiu capturar e vê-se desgraçado, humilhado, morto em vida, indigente.

Sobre o autor
Horácio dos Santos Ribeiro Pires

Bacharel em Direito pela UNIFLU - Campus I - FDC - Faculdade de Filosofia de Campos. Mestrando em Cognição e Linguagem pela UENF - Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Graduado em Letras pela FAFIC - Faculdade de Filosofia de Campos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIRES, Horácio Santos Ribeiro. Dignidade da pessoa humana x banalização da tragédia (se questo è un uomo).: De Maquiavel a Hannah Arendt em "Os afogados e os sobreviventes". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3224, 29 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21626. Acesso em: 22 dez. 2024.

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