3 TRATAMENTO JURÍDICO PENAL DAS FRAUDES EM MEDICAMENTOS
3.1 Antecedentes Legislativos da Punição da Fraude em Medicamentos
O direito à saúde de quem recorre aos medicamentos, embora não pareça, tem sido objeto de preocupação dos legisladores há muito tempo.
Exemplificativamente falando, em se tratando do passado histórico do Brasil, necessário se faz destacar que desde as Ordenações Filipinas, que vigiam em Portugal já em 1603, havia a tipificação da conduta respectiva, prevendo-se a pena de morte para falsificações com repercussão financeira acima de “hum marco de prata” e, nas de valor menor, degradação permanente no Brasil[53].
De sua vez, dispunha o art. 60[54] do decreto nº 828, vigente em 29 de setembro de 1851, que os donos de estabelecimentos farmacêuticos que comercializassem medicamentos ou substâncias irregulares seriam multados, com a possibilidade de fechamento dos estabelecimentos, em caso de reincidência.
No Direito Penal codificado, com o advento do Código Penal de 1890 (Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890), foi tratada a matéria, em seu art. 353, caput:[55]
Nota-se que o dispositivo legal em comento trata especificamente da hipótese da falsificação, não adentrando ao mérito das outras modalidades de fraude conhecidas.
No artigo de autoria de Ellen Nogueira e Gonzalo Vecina Neto[56], um quadro adaptado de autoria de Cruz[57], explana de forma bastante didática as principais leis federais de caráter extrapenal, que regulamentam a cadeia farmacêutica, conforme disposto a seguir:
Ano |
Norma |
Ementa |
Aplica-se a |
Situação |
---|---|---|---|---|
1969 |
Decreto-Lei 785, de 25.08.69 |
Dispõe sobre infrações às normas relativas à saúde e respectivas penalidades. |
Fabricantes Distribuidoras Importadoras Farmácias e Drogarias |
Revogada (pela Lei 6.437/77) |
1973/1974 |
Lei 5.991, de 17.12.73 e Decreto Regulamentador 74.190, de 10.06.74 |
Dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, e dá outras providências. |
Distribuidoras Importadoras Farmácias e Drogarias |
Vigente |
1976/1977 |
Lei 6.360, de 23.09.76 e Decreto Regulamentador 79.094, de 05.01.77 |
Dispõe sobre a Vigilância Sanitária a que ficam sujeitos os medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos, cosméticos, saneantes e outros produtos, e dá outras providências. |
Fabricantes Distribuidoras Importadoras |
Vigente |
1977 |
Lei 6.437 de 20.08.77 |
Configura infrações à legislação sanitária federal, estabelece as sanções respectivas, e dá outras providências. |
Fabricantes Distribuidoras Importadoras Transportadoras Farmácias e Drogarias |
Vigente |
1990 |
Lei 8.072, de 25.07.90 |
Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5o, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. |
Fabricantes Distribuidoras Importadoras Transportadoras Farmácias e Drogarias |
Vigente |
1990 |
Lei 8.078, de 11.09.90 |
Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. |
Fabricantes Distribuidoras Importadoras Transportadoras Farmácias e Drogarias |
Vigente |
1990 |
Lei 8.137, de 23.12.90 |
Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências. |
Fabricantes Distribuidoras Importadoras Transportadoras Farmácias e Drogarias |
Vigente |
1994 |
Instrução Normativa 1, de 30.09.94 |
Estabelece os documentos necessários para Processos de Petições, junto à Secretaria de Vigilância Sanitária. |
Fabricantes |
Alterada |
1995 |
Portaria SVS/MS 16, de 06.03.95 |
Determina a todos os estabelecimentos produtores de medicamentos, o cumprimento das diretrizes estabelecidas pelo “Guia de Boas Práticas de Fabricação para indústrias farmacêuticas” aprovado na 28ª Assembléia Mundial de Saúde em maio de 1975. |
Fabricantes |
Revogada (pela RDC 134/01) |
1997 |
Portaria 110, de 10.03.97 |
Institui roteiro para texto de bula de medicamentos |
Fabricantes Importadoras |
Revogada (pela RDC 47/09) |
1997 |
Portaria 450, de 19.09.97 |
Aprova o Regulamento Técnico sobre Regime de Inspeções aplicável à realização de inspeções no país ou entre países no âmbito do MERCOSUL, relacionadas com Produtos para a Saúde — Produtos Farmacêuticos e Farmoquímicos, Sangue e Hemoderivados, Cosméticos, Saneantes e Correlatos. |
Fabricantes |
Vigente |
1997 |
Portaria 500, de 09.10.97 |
Aprova o Regulamento técnico de Soluções Parenterais de Grande Volume - SPGV. |
Fabricantes Distribuidoras Importadoras Transportadoras |
Revogada (pelas RDC 210/03 e RDC 17/10) |
1998 |
Portaria 2.814 de 29.05.98 |
Estabelece procedimentos a serem observados pelas empresas produtoras, importadoras, distribuidoras e do comércio farmacêutico. |
Fabricantes Distribuidoras Importadoras Farmácias e Drogarias |
Vigente |
1998 |
Lei 9.677, de 02.07.98 |
Altera dispositivos do Capítulo III do Título VIII do Código Penal, incluindo na classificação dos deli- tos considerados hediondos crimes contra a saúde pública, e dá outras providências. |
Fabricantes Distribuidoras Importadoras Transportadoras Farmácias e Drogarias |
Vigente |
1998 |
Lei 9.695, de 20.08.98 |
Acrescenta incisos ao art. 1o da Lei no 8.072, de 25.07.90, que dispõe sobre os crimes hediondos, e altera os artigos 2o, 5o e 10 da Lei n. 6.437, de 20 de agosto de 1977, e dá outras providências. |
Fabricantes Distribuidoras Importadoras Transportadoras Farmácias e Drogarias |
Vigente |
1998 |
Portaria 802, de 08.10.98 |
Institui o Sistema de Controle e Fiscalização em toda a cadeia dos produtos farmacêuticos. |
Fabricantes Distribuidoras Importadoras Transportadoras Farmácias e Drogarias |
Vigente |
1998 |
Portaria 1.052, de 29.12.98 |
Aprova a relação de documentos necessários para habilitar a empresa a exercer a atividade de transporte de produtos farmacêuticos e farmoquímicos, sujeitos à Vigilância Sanitária. |
Transportadoras |
Vigente |
1999 |
Portaria 185, de 08.03.99 |
A importação de produtos farmacêuticos sujeitos ao Regime de Vigilância Sanitária somente poderá ser efetuada por empresa legalmente autorizada como importadora pela Secretaria de Vigilância Sanitária/Ministério da Saúde |
Importadoras |
Vigente |
1999 |
Resolução 327, de 22.07.99 |
Institui o Roteiro sucinto de Inspeção de indústrias farmacêuticas para fins de Autorização de Funcionamento de empresa. |
Fabricantes |
Vigente |
1999 |
Resolução 328, de 22.07.99 |
Institui Regulamento Técnico sobre as Boas Práticas de Dispensa- ção de medicamentos em farmácias e drogarias. |
Farmácias e Drogarias |
Revogada (pela RDC 44/09) |
1999 |
Resolução 329, de 22.07.99 |
Institui o Roteiro de Inspeção para transportadoras de medicamentos, drogas e insumos farmacêuticos. |
Transportadoras |
Vigente |
1999 |
Resolução 460, de 14.09.99 |
Institui e aprova o “Certificado de Boas Práticas de Fabricação”. |
Fabricantes |
Vigente |
1999 |
Resolução RDC 25, de 09.12.99 |
Aprova o Regulamento Técnico - Regime de Inspeções aplicável à realização de inspeções em estabelecimentos produtores de medicamentos, instalados em países fora do âmbito do MERCOSUL. |
Fabricantes |
Alterada |
2000 |
Resolução RDC 33, de 19.04.00 |
Aprova o Regulamento Técnico sobre Boas Práticas de Manipulação de Medicamentos em farmácias e seus Anexos. |
Farmácias e Drogarias |
Revogada (pela RDC 67/07) |
2001 |
Resolução RDC 134, de 13.07.01 |
Determina a todos os estabelecimentos fabricantes de medicamentos, o cumprimento das diretrizes estabelecidas no Regulamento Técnico das Boas Práticas para a Fabricação de Medicamentos. |
Fabricantes |
Revogada (pela RDC 210/03) |
2001 |
Resolução RDC 238, de 27.12.01 |
Fornece critérios relativos à Autorização, Renovação, Cancelamento e Alteração da Autorização de Funcionamento dos estabelecimentos de dispensação de medicamentos: farmácias e drogarias. |
Farmácias e Drogarias |
Revogada |
2002 |
Resolução 320, de 22.11.02 |
Dispõe sobre deveres das empresas distribuidoras de produtos farmacêuticos. |
Distribuidoras |
Vigente |
2002 |
Resolução RDC 01, de 06.12.02 |
Aprova o Regulamento Técnico para fins de Vigilância Sanitária de mercadorias importadas. |
Importadoras |
Revogada (pela RDC 350/05) |
2003 |
Resolução RDC 140, de 29.05.03 |
Define a forma e o conteúdo das bulas de todos os medicamentos registrados. |
Fabricantes Importadoras |
Revogada (pela RDC 47/09) |
2003 |
Resolução RDC 210, de 04.08.03 |
Determina a todos os estabelecimentos fabricantes de medicamentos, o cumprimento das diretrizes estabelecidas no Regulamento Técnico das Boas Práticas para a Fabricação de Medicamentos. |
Fabricantes |
Revogada (pela RDC 17/10) |
2003 |
Resolução RDC 333, de 19.11.03 |
Dispõe sobre rotulagem de medicamentos e dá outras providências. |
Fabricantes Importadoras |
Parcialmente revogada (pela RDC 71/09) |
2005 |
Resolução RDC 249, de 13.09.05 |
Determina a todos os estabelecimentos fabricantes de produtos intermediários e de insumos farmacêuticos ativos, o cumprimento das diretrizes estabelecidas no Regulamento técnico das boas práticas de fabricação de produtos intermediários e insumos farmacêuticos ativos. |
Fabricantes (insumos Farmacêuticos ativos) |
Vigente |
2005 |
Resolução RDC 350, de 28.12.05 |
Dispõe sobre o regulamento técnico de Vigilância Sanitária de mercadorias importadas. |
Importadoras |
Revogada (pela RDC 81/08) |
2007 |
Resolução RDC 27, de 30.03.07 |
Dispõe sobre o Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados — SNGPC e estabelece a implantação do módulo para drogarias e farmácias e dá outras providências. |
Farmácias e Drogarias |
Vigente |
2008 |
Resolução RDC 81, de 05.11.08 |
Dispõe sobre o Regulamento Técnico de Bens e Produtos Importados para fins de Vigilância Sanitária. |
Importadoras |
Vigente |
2009 |
Lei 11.903, de 14.01.09 |
Dispõe sobre o rastreamento da produção e do consumo de medicamentos por meio de tecnologia de captura, armazenamento e transmissão eletrônica de dados. |
Fabricantes Importadoras Distribuidoras Farmácias e Drogarias |
Vigente |
2009 |
Resolução RDC 44, de 17.08.09 |
Dispõe sobre Boas Práticas Farmacêuticas para o controle sanitário do funcionamento, da dispensação e da comercialização de produtos e da prestação de serviços farmacêuticos em farmácias e drogarias e dá outras providências. |
Farmácias e Drogarias |
Vigente |
2009 |
Resolução RDC 47, de 08.09.09 |
Determina o aprimoramento da forma e o conteúdo das bulas de todos os medicamentos registrados e notificados, comercializados no Brasil, visando à garantia de acesso à informação segura e adequada em prol do uso racional de medicamentos. |
Fabricantes Importadores |
Vigente |
2009 |
Resolução-RDC 57, de 17.11.09 |
Aprova o Regulamento Técnico para registro de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFA) no Brasil. |
Fabricantes (insumos) Importadores (insumos) |
Vigente |
2009 |
Instrução Normativa 15, de 17.11.09 |
Aprova cronograma e as priorizações para a primeira etapa da implantação do registro de insumos farmacêuticos ativos (IFA), nos termos da Resolução RDC 57, de 17.11.09. |
Fabricantes (insumos) Importadores (insumos) |
Vigente |
2009 |
Resolução RDC 59, de 24.11.09 |
Institui o Sistema de rastreamento de medicamentos em toda a cadeia dos produtos farmacêuticos, da produção e do consumo de medicamentos por meio de tecnologia de captura, armazenamento e transmissão eletrônica de dados, como parte integrante do Sistema Nacional de Controle de Medicamentos. |
Fabricantes Importadoras Distribuidoras Farmácias e Drogarias |
Vigente |
2009 |
Resolução RDC 71, de 22.12.09 |
Determina o aprimoramento da forma e o conteúdo dos rótulos de todos os medicamentos registrados e comercializados no Brasil, visando garantir o acesso à informação segura e adequada em prol do uso racional de medicamentos. |
Fabricantes Importadoras |
Vigente |
2010 |
Instrução Normativa 01, de 13.01.10 |
Regulamenta a Resolução RDC n. 59, de 24 de novembro de 2009, que dispõe sobre a implantação do Sistema Nacional de Controle de Medicamentos, com vistas ao regramento da produção e o controle da distribuição das etiquetas de segurança para o Sistema de Rastreamento de Medicamentos e dá outras providências. |
Fabricantes Importadoras Distribuidoras Farmácias e Drogarias |
Revogada (pela IN 11/10) |
2010 |
Resolução RDC 17, de 16.04.10 |
Requisitos mínimos a serem seguidos na fabricação de medicamentos para padronizar a verificação do cumprimento das Boas Práticas de Fabricação de Medicamentos (BPF) de uso humano durante as inspeções sanitárias. |
Fabricantes |
Vigente |
2010 |
Instrução Normativa 08, de 15.06.10 |
Dá nova redação ao caput e revoga os §§ 1o, 2o, 3o e 4o do art. 9o da Instrução Normativa n. 1, de 13 de janeiro de 2010 |
Fabricantes Importadoras Distribuidoras Farmácias e Drogarias |
Revogada (pela IN 11/10) |
2010 |
Resolução RDC 29, de 10.08.10 |
Dispõe sobre certificação de Boas Práticas de Fabricação para fabricantes internacionais de insumos farmacêuticos ativos. |
Fabricantes (insumos Farmacêuticos ativos) |
|
2010 |
Instrução Normativa 11, de 29.10.10 |
Dispõe sobre a tecnologia, a produção, o fornecimento e o controle da distribuição das etiquetas autoadesivas de segurança para o Sistema de Rastreamento de Medicamentos e dá outras providências. |
Fabricantes Importadoras Distribuidoras Farmácias e Drogarias |
Revogada (pela IN 01/11) |
2011 |
Instrução Normativa 01, de 02.03.11 |
Revoga a Instrução Normativa n. 11, de 29 de outubro de 2010. |
Fabricantes Importadoras Distribuidoras Farmácias e Drogarias |
Vigente |
2011 |
Portaria 225, de 02.03.11 |
Institui no âmbito da ANVISA Grupo de Trabalho para avaliação da eficiência e da efetividade das alternativas tecnológicas para o rastreamento da produção e do consumo de medicamentos com vistas á implantação de sistema de rastreamento que se coadune com os objetivos das políticas públicas de acesso a medicamentos. |
Vigente |
FONTE: CRUZ, 2001 apud NOGUEIRA; VECINA NETO, 2011, p. 122-125.
Tem-se aqui como objetivo, demonstrar que desde sempre os legisladores preocuparam-se com a fraude de medicamentos, visto que o delito em tela sempre existiu, como já citado no tópico 2.3, a primeira notícia que tem-se de medicamento falsificado no Brasil data de 1877.
Além do Código Penal em vigor, da Lei 8.072/1990, que tipifica os crimes de fraude em medicamentos em hediondos, como já explanado anteriormente, e outras leis já citadas no corpo do presente trabalho, têm-se outros diversos mecanismos que visam inibir a fraude de medicamentos, como as resoluções, instruções normativas e portarias transcritas no quadro acima, exemplificadamente pode-se falar na Portaria nº 802 de 08 de outubro de 1998.
A portaria supra citada, tem como escopo a garantia de um maior controle sanitário na produção, distribuição, transporte e armazenagem de medicamentos levando em consideração todo o segmento envolvido nesses processos. Referida portaria, em seu artigo 1º, instituiu o Sistema de Controle e Fiscalização em toda a cadeia dos produtos farmacêuticos.
Ainda vale salientar que em 2009, a Lei n0 11.903 de 14 de janeiro de 2009, que foi regulamentada pela resolução RDC nº 59/09 da ANVISA, criou o Sistema Nacional de Controle de Medicamentos, com o qual todo o medicamento produzido, dispensado ou vendido será controlado por um sistema de identificação única desses produtos por meio de emprego de tecnologia de captura, armazenamento e transmissão eletrônica de dados[58].
Sendo a implantação do sistema criado pela lei efetuada gradualmente nos prazos descritos no artigo 5º da lei em comento.
Vê-se dessa maneira que desde a época do Brasil colonial, até os dias atuais, o legislador procura coibir e dificultar a fraude em medicamentos, sendo uma tarefa árdua e interminável, mas que atualmente conta com o auxílio da tecnologia que tem-se disponível para inviabilizar o crime de fraude em medicamentos, fazendo o que é necessário, ou tentando fazê-lo, para garantir segurança no consumo de medicamentos pela população, garantindo dessa maneira um princípio constitucional fundamental.
3.2 Tutela Penal da Saúde Pública e Bem Jurídico Protegido
O reconhecimento da tutela penal da saúde pública remonta aos juristas italianos Filangieri (1752-1788) e a Carrara (1805-1888).
Referidos juristas advogavam, já naquela época, que a saúde pública é um direito social que se distingue dos direitos individualmente considerados de cada um.
Nas palavras de Hungria (1959, p. 98) que “o reconhecimento de uma classe de crimes contra a saúde pública remonta a Filangieri, que teve o prestigioso apoio de Carrara”. Este último autor percebeu que se:
se tem em conta o ar que circunda uma coletividade de pessoas, a água que a todos é destinada para desalteração da sede, os víveres expostos à venda em público, de modo que possam vir a ser alimento de indeterminado número de consociados, é manifesto que em tais condições o ar, a água e os víveres tornam-se objeto de um direito social, atinente a cada um dos consociados, bem como a toda a coletividade. A esse direito chamou de direito à preservação da saúde pública (CARRARA apud HUNGRIA, 1959, p. 98).
Seus trabalhos, pois, chocavam-se de frente com a concepção individualista que, desprezando o perigo coletivo, classificavam delitos hoje entendidos como sendo contra a saúde pública, como sendo delitos patrimoniais ou contra a pessoa, dependendo da forma como eram cometidos.
Em virtude da defesa desses ideais por tais jurisconsultos, especialmente por Carrara, é que os Códigos de leis modernos passaram a classificar esses tipos de crimes atentatórios à saúde pública como crimes contra a incolumidade pública, que põem em perigo a coletividade.
Tais crimes passaram a ser considerados como delitos que provocavam uma situação de perigo comum; portanto, uma subclasse dos crimes contra a incolumidade pública.
Nos crimes contra a incolumidade pública encontra-se como característica distintiva dos demais crimes, a indeterminação e a coletividade, no que diz respeito ao bem jurídico tutelado penalmente.
O bem jurídico protegido pelo direito penal deve ter, ao menos indiretamente, respaldo constitucional, sob pena de não possuir dignidade. É inconcebível que o direito penal outorgue proteção a bens que não são amparados constitucionalmente, ou colidam com valores albergados pela Carta, já que é nela que são inscritos os valores da sociedade que a reproduz (BIANCHINI, 2002, p. 43).
O rol dos bens jurídicos tutelados se encontra na Constituição Federal, mais precisamente no artigo 5º, quando se fala da inviolabilidade do direito à vida, assim como em outros dispositivos como o artigo 225, que trata sobre o meio ambiente, com ênfase no seu parágrafo 3º, que diz respeito à prática de lesão ao meio ambiente, e assim temos outros dispositivos distribuídos pelo texto constitucional que tratam de bens jurídicos merecedores de tutela.
De acordo com as palavras da Subprocuradora-Geral da República Ela Wiecko Wolkmer de Castilho:
A doutrina faz uma distinção entre bens jurídicos individuais e coletivos. Os primeiros estão diretamente ligados à pessoa (a vida, a saúde individual, o patrimônio etc), enquanto os segundos estão mais relacionados ao funcionamento do sistema (respeito nas relações de consumo, o meio ambiente equilibrado, a livre concorrência etc). A ofensa não se refere a uma pessoa em particular, mas a um número indeterminado de pessoas (2012, s/n).
Nos crimes contra a saúde pública, portanto, a nota característica é o perigo de dano à saúde, relacionado a um número indeterminado de pessoas.
Conforme leciona Júlio Fabrini Mirabete, “[...] a característica dos crimes a serem examinados é de que a lesão ou perigo ultrapassa a ofensa a uma determinada pessoa para atingir um número indeterminado de indivíduos, ou seja, a própria coletividade” (MIRABETE, 1994, p. 91).
No Brasil, a tutela penal da saúde pública, no Código Penal de 1940, se encontra em seus artigos 267 a 285, que sofreram alterações em seus textos durante todo esse período em que vige o Código Penal, sendo que a primeira mudança aconteceu em 1964, com a Lei 4.451 de 04 de novembro de 1964, que acrescentou ao artigo 281 que abordava sobre o comércio clandestino e a facilitação do uso de entorpecentes, a ação de plantar, esse mesmo artigo ainda sofreu mudanças em seu texto com o Decreto-Lei nº 385 datado de 26 de dezembro de 1968, também sofreu alteração pela Lei 5.726 de 29 de outubro de 1971, e por fim o artigo 281 foi revogado pela Lei 6.368 de 21 de outubro de 1976, quando seu conteúdo foi ampliado, acrescentando novas figuras penais, porém sempre que as mudanças no texto do artigo 281 ocorreram a saúde pública sempre foi o bem jurídico tutelado (CASTILHO, 2012).
O Código Penal, em seu art. 273[59], previa a conduta típica de quem frauda medicamentos, estabelecendo as penas de reclusão, de um a três anos, para a modalidade culposa, e detenção, de dois a seis meses, mais multa, na modalidade culposa.
Entretanto, essa previsão legal logo mostrou-se insuficiente, com as penas consideradas deveras brandas pela sociedade, bem como genérico o tratamento dado ao tema, que até então se inseria sob a rubrica “Alteração de substância alimentícia ou medicinal”.
O momento que o Brasil vivia, então, demonstrava que a sociedade buscava um endurecimento no tratamento em relação à criminalidade.
Apenas para se ter uma idéia da mentalidade vigente à época, importa citar as palavras de Damásio E. de Jesus, no anteprojeto 3.754/89, que viria a ser substituído pelo 5.450/90, o qual, por sua vez, deu origem à Lei dos Crimes Hediondos e vale, portanto, para as modificações desta, mesmo que ocorridas posteriormente:
A criminalidade, principalmente, a violenta, tinha o seu momento histórico de intenso crescimento, aproveitando-se de uma legislação penal excessivamente liberal. Surgiram duas novas damas do direito criminal brasileiro: Justiça morosa e legislação liberal, criando a certeza da impunidade (JESUS apud VEIGA, 2002, s/n)[60].
Para atender aos anseios da sociedade, foi promulgada a Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990), a qual alterou normas de Direito Penal e Processual Penal para enrigecer o tratamento a uma série de crimes que, a partir de então, seriam considerados, “hediondos”.
Com a edição da referida lei, as penas de alguns crimes foram agravadas e alguns crimes foram classificados como hediondos, houve ainda a revogação do artigo 279 pela Lei 8.137 de 27 de dezembro de 1990 e por fim houve modificação das condutas criminosas com o advento da Lei 9.677 de 02 de julho de 1998, que modificou e criou tipos penais e agravou penas, sendo de grande relevância, especialmente, quanto às garantias de legitimidade e eficácia dos medicamentos, que encontra-se nos artigos 272 a 277, que tiveram nascedouro com o advento da Lei nº 9.677, de 2 de julho de 1998.
Subseqüentemente, a Lei n. 9.695, de 20 de agosto de 1998, tornou crime hediondo a falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, enquanto que a Lei n. 9.677, de 2 de julho de 1998, alterou os arts. 272 e 273 do Código Penal, adequando o tratamento dado à matéria, inserindo-a propriamente sob o título “Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais”.
Vale salientar que alguns projetos de Lei que visam os crimes contra a saúde pública estão tramitando no Congresso Nacional[61].
Esses tipos penais são denominados, respectivamente, “Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de substância ou produtos alimentícios”, “Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais”, “Emprego de processo proibido ou de substância não permitida”, “Invólucro ou recipiente com falsa indicação”, “Produto ou substância nas condições dos dois artigos anteriores” e “Substância destinada à falsificação”[62].
Nesse sentido, a adesão do legislador pátrio às correntes de pensamento que tiveram nascedouro no longínquo século XVIII mostra-se patente, tendo em vista que os delitos concernentes aos produtos com fins terapêuticos ou medicinais encontram-se inseridos no Capítulo III do Titulo VIII da Parte Especial do Código Penal, denominado “Dos crimes contra a incolumidade pública”.
O bem jurídico tutelado é a saúde pública, sendo o objetivo da lei reprimir a artificial eliminação ou inferiorização da qualidade da substância tornando-a inadequada ou insuficiente à sua própria finalidade.
Oportuno ainda destacar que, de acordo com o art. 1º, inciso VII-B da Lei nº 8.072/90, a conduta típica descrita no art. 273, caput e § 1o, § 1o-A e § 1o-B, do Código Penal, em virtude do advento da Lei nº 9.695, de 20 de agosto de 1998, passou a ser considerado crime hediondo, portanto, não sendo suscetível de anistia, graça, indulto, fiança, além da estipulação da obrigatoriedade de início de cumprimento da pena em regime fechado, dentre outras restrições estabelecidas.
Neste sentindo Luis Régis Prado comenta:
O artigo 273, caput, §§ 1º-A e 1º-Bsão considerados crimes hediondos (art.1º, VII-B, Lei 8.072/1990). Nestes casos são insuscetíveis de anistia, graça, indulto e fiança (art. 2º, I e II, Lei 8.072/1990. e art. 5º, XLIII, CF). A pena, nessas hipóteses, deve ser cumprida inicialmente em regime fechado (art. 2º, § 1º, Lei 8.072/1990) (2008, p. 111).
Pretendeu o legislador, por meio das modificações introduzidas na legislação penal, combater a fabricação e comercialização de produtos de fins terapêuticos ou medicinais falsos ou adulterados, especialmente os medicamentos.
Embora louvável a iniciativa, a mesma não se encontra isenta de críticas, emanadas de operadores do Direito e da doutrina, como evidencia Luis Régis Prado:
O equívoco é patente e grave quando se observa que tal crime é hediondo. E, claro, todas as suas conseqüências podem alcançar o agente que falsificar, corromper, adulterar ou alterar cosméticos ou saneantes. Como se vê, há uma desproporção entre o desvalor do injusto e a gravidade da pena (1999, p. 754).
Assim como o ilustre doutrinador Prado analisa o assunto, é consenso geral que houve um erro grosseiro ao se incluir, no rol dos produtos inserido no art. 273 do Código Penal, os produtos cosméticos e saneantes, cuja falsificação ou fraude passou a ser punida com penas desproporcionais e, portanto, injustificadas.
O conceito de cosméticos e saneantes pode ser inferido da Lei nº 6.360, de 23 de setembro de 1976, e do Decreto n. 79.094/1977.
Assim, consideram-se cosméticos os produtos para uso externo, destinados à proteção ou ao embelezamento das diferentes partes do corpo. Já saneantes seriam “Substâncias ou preparações destinadas à higienização, desinfecção ou desinfestação domiciliar, em ambientes coletivos e/ou públicos, em lugares de uso comum e no tratamento de água” (BRASIL, 2012, s/n)[63].
Exemplos bastante comuns de saneantes seriam os inseticidas, raticidas, desinfetantes e detergentes.
Tais produtos nada têm de terapêuticos ou medicinais, mas, mesmo assim, receberam igual tratamento penal àquele dispensado aos medicamentos, incorrendo os agentes que procederem à sua falsificação ou alteração às mesmas penas aplicadas a quem pratica conduta da qual decorre risco muito maior.
Evidente assim que foge à eqüidade apenar-se com a mesma sanção a falsificação de cosméticos e saneantes e a de medicamentos, tendo em vista que não há como comparar, em termos de ofensibilidade à saúde pública, produtos destinados para fins terapêuticos ou medicinais a meros cosméticos ou simples saneantes.
Fica claro assim que, por um erro grosseiro foram incluídos, em meio aos produtos com finalidades terapêuticas ou medicinais, os cosméticos e saneantes, eis que todo o arcabouço jurídico retro analisado veio à lume justamente em razão dos problemas inerentes aos produtos com fins terapêuticos e medicinais.
Essa constatação nos mostra que o legislador, diante do fenômeno da fraude de medicamentos e suas diversas modalidades, tem optado por combatê-lo mediante o endurecimento da legislação penal existente, sem, no entanto, proceder à criação de modelos de combate e formas alternativas de lidar com o problema, num agir que, conforme resta evidenciado, tem se mostrado não raro desastrado.
3.3 Fraude em Medicamentos: Sujeitos do Delito, Tipicidade Objetiva e Subjetiva
Sabe-se que o sujeito ativo de um crime “é a pessoa que pratica a conduta descrita pelo tipo penal” (NUCCI, 2009, p, 172), neste sentido também ensina Regis Prado que o sujeito ativo é todo o agente que realiza a ação ou omissão típica tanto nos crimes culposos como nos dolosos, deve-se também lembrar que “em regra, só o ser humano, maior de 18 anos, pode ser sujeito ativo de uma infração” (2008, p. 109). Como evidencia Gonçalves, que também inclui uma importante observação sobre a possibilidade de pessoas jurídicas serem sujeitos ativos de um crime, visto que a Constituição Federal em seus artigos 173 § 5º (que ainda aguarda regulamentação) e 225, § 3º, sujeita essas pessoas a sanções penais e administrativas (GONÇALVES, 2008).
Nos crimes descritos no artigo 273 do Código Penal, o sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa, não necessitando ser necessariamente o fabricante ou o comerciante de medicamentos, pois os crimes do artigo são classificados como comuns, em que o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, não precisando ser “[...] sujeito ativo especial ou qualificado [...]”, como se faz necessário nos crimes classificados como próprios (NUCCI, 2009, p.176).
Na outra face do crime, existe o sujeito passivo, que é quem sofre os efeitos do delito, ou seja, é a vítima do crime, nas lições de Nucci, o sujeito passivo “é o titular do bem jurídico protegido pelo tipo penal incriminador, que foi violado” (NUCCI, 2009, p.174). Regis Prado ainda acrescenta que o “sujeito passivo do delito [...] é o titular do bem jurídico lesado ou ameaçado de lesão” (2008, p.109). Vale salientar que o sujeito passivo do crime e o objeto material são distintos, sendo o primeiro como já foi dito o titular do bem jurídico tutelado enquanto o segundo é quem sofre a ação ou a omissão típica e ilícita (PRADO, 2008).
No caso do artigo 273 do Código Penal o sujeito passivo do tipo penal é a coletividade, tendo como objeto jurídico “a incolumidade pública, especialmente a saúde pública” (DELMANTO et al., 2007, p. 692), pois a pratica do delito atinge toda uma coletividade, pode-se citar o caso do anticoncepcional Microvlar que no ano de 1998, centenas de mulheres que pensavam estar tomando o medicamento para não engravidarem , na verdade estavam ingerindo pílulas de farinha, pode-se ainda em meio de tantos outros delitos de falsificação citar a falsificação do medicamento Androcur usado para o tratamento de câncer de próstata que causou a morte de homens que pensavam estar tratando a doença.
O mais preocupante é que muitas empresas farmacêuticas que sabem ser alvo dos falsificadores, não agem por receio da classe médica e da população rejeitarem seus produtos, visando assim unicamente seu lucro, negligenciando a saúde da coletividade.
No caput do artigo 273 em comento, encontra-se 4 (quatro) núcleos, que formam o tipo objetivo, assim elencados: falsificar, corromper, adulterar, e alterar, já no parágrafo 1º encontra-se os seguintes núcleos: importar, vender, expor à venda, ter em depósito para vender e distribuir ou entregar, de qualquer forma, a consumo.
Nas palavras de Regis Prado encontra-se a explicação para estes núcleos:
Os núcleos alternativamente previstos no caput são os verbos falsificar (dar ou referir como verdadeiro o que não é), corromper (estragar, infectar), adulterar (contrafazer, deturpar) ou alterar (modificar, transformar), Nas mesmas penas incorre quem importar (fazer vir do exterior), vender (comercializar, negociar, alienar de forma onerosa), expor à venda (pôr à vista, mostrar, exibir para venda), tiver em depósito para vender (colocar em lugar seguro, conservar, armazenar), distribuir (repartir) ou entregar a consumo (repassar, ceder, onerosa ou gratuitamente) o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado (§1º) (PRADO, 2008, p. 109).
O tipo subjetivo do crime, do caput do artigo 273 do Código Penal é o dolo, que deriva da livre vontade de falsificar, corromper, adulterar ou alterar, sendo que o agente ativo tem ciência do perigo e da destinação do produto de finalidade terapêutica ou medicinal, já no parágrafo 2º temos a figura culposa, que abrange a corrupção, a adulteração e a alteração, excluindo-se por óbvio a falsificação, que não admite a modalidade culposa, elencadas no caput do artigo, é também admitida a modalidade culposa nos equiparados do parágrafo 1º, ao agente que importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender, ou, de qualquer forma distribui ou entrega a consumo produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado, por não observância do cuidado necessário (DELMANTO et al., 2007).
O objeto material do crime com base na explicação anterior, é o produto destinado a fins terapêuticos, ou medicinais, sendo que segundo Delmanto, o legislador não mencionou a obrigação de se destinar o produto ao consumo, assim como não mencionou a necessidade de ocorrer um perigo concreto, cabe ressaltar que o crime de perigo concreto é aquele que necessita da comprovação do dano, pois nele não se presume o perigo, já no parágrafo 1º do artigo o legislador mencionou a obrigação para se tipificar o delito, na necessidade da destinação ao consumo, e no parágrafo 1º-B, inciso IV descreveu a necessidade da ocorrência do perigo concreto, quando redigiu que é necessária a “redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade” (DELMANTO et al., 2007, p. 692).
Ainda de acordo com os ensinamentos de Delmanto et al. (2007), a doutrina atual questiona a constitucionalidade da punição nos crimes de perigo abstrato, onde não se admite a punição desde que não tenha ocorrido perigo real ao bem tutelado, o que na opinião do ilustre doutrinador é um acerto.
Assim, sob pena de incostitucionalidade por falta de ofensividade ao bem jurídico tutelado (saúde pública), este delito só se configurará quando houver efetiva comprovação da nocividade à saúde de indeterminado número de pessoas ou da real redução do valor terapêutico ou medicinal do produto (DELMANTO et al., 2007, p. 692).
A tentativa no crime do artigo 273 é admitida, quando da sua forma dolosa, sendo que o crime se consuma, quando qualquer das condutas elencadas no caput do artigo forem praticadas a produtos terapêuticos ou medicinais, mesmo que não ocorra dano à saúde de alguém, e quando as condutas elencadas no parágrafo 1º forem praticadas com relação a produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado, mesmo não ocorrendo dano à saúde de alguém.
Nesse sentindo Regis Prado leciona:
O delito em apreço se consuma com a falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais (caput); ou com a efetiva importação, venda, exposição à venda, depósito, distribuição ou entrega a consumo do produto falsificado, corrompido, adulterado, ou alterado ou nas condições descritas no §1º-B (PRADO, 2008, p. 110).
É necessário salientar que nos casos em que o produto não é destinado a fim terapêutico ou medicinal, ou que somente estejam impróprios para o consumo (medicamento vencido), o crime será do artigo 7º, inciso IX da Lei 8.137/1990, onde também se admite a forma culposa. (DELMANTO et al., 2007).
Em todos os casos elencados no artigo 273 a ação penal é pública incondicionada, o que se difere é a pena aplicada, nas condutas descritas no caput e nos §§1º e 1º-B do artigo a pena é de reclusão pelo período de dez a quinze anos e multa e para a forma culposa (§2º), a pena é de detenção de um a três anos e multa, na forma culposa é admitida a suspensão condicional do processo de acordo com o artigo 89 da Lei 9.099/1995 Lei dos Juizados Especiais.
3.4 As Fraudes em Medicamento e a Indústria Farmacêutica
Em sua obra de nome A Elite do Crime, James William Coleman, relata casos em que indústrias farmacêuticas praticam todo o tipo de fraude em detrimento de lucros astronômicos, sem o menor respeito e cuidado com a saúde e vida dos consumidores de seus produtos.
Os vendedores são treinados para minimmizar os perigos, e algumas vezes fatais, efeitos colaterais de seus medicamentos, e muitos fabricantes aparentemente não veem nada de errado em encorajar seus representantes a fazer afirmações enganosas que beiram a fraude (COLEMAN, 2005, p. 136).
Sabe-se que o comportamento descrito não é realmente ilegal do ponto de vista jurídico, porém não é moral, nem ético, mas para aqueles que defendem a indústria de medicamentos não há nada de errado em abrandar a verdade sobre os produtos, visto que, outros ramos o fazem, porém se esquecem que no caso da indústria farmacêutica são vidas de milhares de consumidores que entram em risco.
Coleman (2005) cita que em nome do lucro, as empresas farmacêuticas optam por uma atividade criminosa de fraude, principalmente no que diz respeito a propaganda enganosa e falsificação de testes exigidos por agências reguladoras, antes de emitir o cetificado para um novo medicamento, que nos casos descritos no livro, por se tratarem de empresas americanas é o US Food and Drug Administration (FDA), que é o órgão norte americano para controle da regulamentação e liberação de remédios e alimentos.
Coleman (2005), ainda relata outra prática antiética comum das empresas farmacêuticas, o chamado dumping, de produtos que são considerados perigosos, introduzidos em países pobres que não possuem uma legislação que visa a segurança de medicamentos. Existe também a prática do envio de medicamentos vencidos para países subdesenvolvidos, onde serão comercializados normalmente.
Dentre os casos relatados na obra, para exemplificar esse tipo de fraude praticada pelas empresas farmacêuticas cabe citar a do anticoncepcional Ovulen, um anticoncepcional oral fabricado pela empresa americana Searly Company.
A empresa fabricante do citado anticoncepcional relacionou os efeitos adversos do medicamento da maneira abaixo descrita.
Nos Estados Unidos a relação dos efeitos colaterais do Ovulen, eram “náusea, queda de cabelo, nervosismo, icterícia, pressão alta, alterações no peso e dores de cabeça”, conforme o país em que o medicamento seria comercializado, a relação dos efeitos colaterais diminuíam, no México, relata Coleman (2005), o medicamento possuía apenas dois dos efeitos colaterias relacionados na listagem americana, apenas náusea e alterações no peso, já no Brasil e na Argentina a empresa convencia os médicos de que o Ovulen não possuía nenhum efeito colateral.
Infelizmente isso é o retrato do panorama atual da indústria farmacêutica que em tese teria que trabalhar em prol da saúde da sociedade, seus consumidores, mas o que se constata é a avidez pelo lucro em detrimento e total desrespeito da vida humana, principalmente em países em desenvolvimento e subdesenvolvidos.
A conduta mais comum dos grandes laboratórios é a ocultação dos efeitos danosos que os seus medicamentos causam, ainda citando os casos ocorridos nos Estados Unidos, descritos no livro de forma bastante breve, pode-se falar sobre o medicamento MER/29 produzido pela Richardson-Merrel indicado para combater o colesterol em pacientes cardíacos, que já em seus testes preliminares revelaram dados catatróficos, todos os animais que receberam doses do medicamento ou morreram ou precisaram ser sacrificados antes da conclusão do estudo e o quadro não se alterou nem com a mudança dos testes feitos em ratos pelos testes feitos em macacos (COLEMAN, 2005).
Porém, a empresa optou, em vez de cancelar o projeto do medicamento, pela falsificação dos dados dos relatórios do estudo e a sua comercialização, que só foi interrompida após mais de 400 mil pessoas o utilizarem, dentre as quais estima-se que 5 mil tiveram sérios efeitos colaterais (queda de cabelo, catarata e problemas de pele).
A condenação judicial que pesou sobre a empresa e seus supervisores foi ínfima, os supervisores receberam seis meses de liberdade condicional e a empresa foi multada em 80 mil dólares, em contrapartida o MER/29 gerou no seu primeiro ano de produção o equivalente a 7 milhões de dólares de renda bruta.
Ainda, conforme Coleman (2005), houve também um caso bastante grave de um analgésico destinado para pacientes com artrite, fabricado pela Lilly and Company, o Oraflex, que foi motivo da morte de 62 pacientes nos Estados Unidos, porém soubesse que a empresa já era conhecedora da morte de 26 pessoas em outros países, devido ao uso do medicamento, antes mesmo de submeter o relatório do medicamento ao FDA, quando as mortes começaram a ocorrer, o medicamento foi retirado do mercado e a condenação da empresa foi uma multa de 25 mil dólares e a condenação de um executivo foi de 15 mil dólares.
Estes são relatos de casos, que embora sejam de outro país, se relacionam diretamente com o Brasil, sob o ponto de vista da economia globalizada, do número de empresas farmacêuticas multinacionais instaladas no país, sem olvidar a condição de país em desenvolvimento que ocupa o Brasil.