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A unidade do ordenamento jurídico segundo Bobbio

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Agenda 04/08/2012 às 10:59

7. Limites materiais e formais

Um órgão superior, ao atribuir poderes normativos a um órgão inferior, não o faz ilimitadamente, mas, limita um círculo dentro do qual pode ser exercido. À medida que a pirâmide é vista de cima para baixo, o poder normativo é cada vez menor.

Assim, existem dois tipos de limitação. Os limites materiais (ou quanto ao conteúdo) referem-se ao conteúdo da norma que o poder inferior é autorizado a emanar. Trata-se da validade material[10]·. E há também os limites formais (ou quanto à forma) que se refere à forma ou o modo ou processo com que a norma do poder inferior deve ser emanada. Trata-se da validade formal, ou vigência segundo Reale[11]. Mas, respeitando a opinião do mestre, preferimos dizer que a vigência é uma decorrência/consequência da validade formal que seria a causa, visto que validade formal, para nós, seria uma norma posta por autoridade competente seguindo o devido processo(rito) legal. A partir daí ela poderia ser promulgada (sancionada) e publicada e ser considerada vigente.

Desse modo, o poder inferior recebe um poder limitado ou em relação àquilo que pode comandar ou proibir, ou em relação a como pode comandar ou proibir. Compreender esses limites é essencial, uma vez que eles circunscrevem o âmbito em que a norma inferior é legitimamente emanada. Vale apena ressaltar que quando uma norma padece de um vício material ou formal, ela pode ser revogada (expulsa do sistema).

Os limites de conteúdo ou materiais podem ser positivos, conforme a constituição imponha ao legislador ordinário emanar normas em uma dada matéria (comando de comandar); ou negativos quando proíbam de emanar normas em uma determinada matéria (proibição de comandar, ou comando de permitir).

Quanto aos limites formais, são constituídos por todas as normas da constituição que estabelecem os processos mediante os quais os órgãos constitucionais devem desempenhar sua atividade (devido processo legal). Os limites formais geralmente estão presentes, mas os materiais podem faltar na relação Constituição/Lei ordinária. É o caso supramencionado no qual as leis constitucionais e leis ordinárias estão no mesmo nível, são as chamadas constituições flexíveis (ex: inglesa), nas quais o legislador ordinário pode legiferar em qualquer matéria e em qualquer direção. Esta também é a opinião de Paulo Bonavides[12].

Na passagem da lei ordinária à decisão judicial (regra do caso concreto), na maior parte dos ordenamentos há ambos os limites. As leis relativas ao direito substancial ou material, de certo modo, são, mormente, limites de conteúdo ao poder normativo do juiz, ou seja, ao decidir controvérsias, o juiz deve procurar e encontrar a solução naquilo que as leis ordinárias estabelecem. Ou seja, deve escolher uma fonte do direito(pinçar) pertinente e vigente.

Assim, como primeiro constrangimento, coloca-se a obrigatoriedade de estabelecer textos normativos, fixar previamente os pontos de partida para as regras do jogo. Daí a expressão dogmática jurídica, pois são precisamente esses textos os dogmas que procuram fixar os limites (da decisão) que, apesar de elásticos, não devem ser explicitamente negados.[13]

Logo, o juiz deve aplicar a lei, isso significa que a atividade do magistrado (decisão) é limitada material pela lei. Já as leis relativas ao processo são limites formais ou instrumentais do juiz, este deve seguir o devido processo legal para decidir.

Cabe ressaltar que na passagem da lei ordinária para a decisão do juiz, é difícil haver ausência de limites materiais. Chama-se “juízo de equidade” aqueles em que o juiz é autorizado pelo ordenamento a resolver/decidir sem recorrer a uma norma preestabelecida, seria uma autorização do sistema para o juiz produzir direito fora do limite material imposto pelas normas superiores. Mas, geralmente, esse tipo de autorização é exceção e, em que pese não derivar da lei escrita, deriva do costume, da jurisprudência (precedente judicial) ou dos princípios gerais do direito.

Por último, deve-se ressaltar que na passagem da lei ordinária ao negócio jurídico (esfera da autonomia privada), os limites formais costumam prevalecer sobre os materiais. Mas, antes que se possa dizer que o direito, na regulação desse assunto, é restritivo formalmente e permissivo quanto ao conteúdo, é preciso lembrar o seguinte exemplo de uma das circunstâncias que acarretam a declaração de ilegitimidade do negócio jurídico: “desequilíbrio do negócio [...] que ponha uma parte à mercê da outra (negócio leonino)”.[14] Neste contexto fica visível a regulação do conteúdo, e não apenas da forma.

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8. A norma fundamental

A análise da hierarquia das normas faz aparecer a indagação de qual seria, realmente, o ponto máximo de superioridade hierárquica num ordenamento jurídico. A resposta encontrada reside, de forma secundária, no poder constituinte.

Já o poder constituinte, esse conceito-limite do Direito Constitucional, é aquele que, posto na conexão entre a política e o Direito, manifesta-se como o estado de plenificação decisória de um povo, causa final e eficiente da condução dos seus negócios, como uma decisão originária sobre as normas e os limites do próprio poder constituído, destinada a restringir o exercício desse poder e a garantir a autoridade de sua fonte.[15]

Ademais, segundo Bobbio, “o poder constituinte é autorizado a emanar normas obrigatórias para toda a coletividade” (perspectiva do sujeito ativo) ou “a coletividade é obrigada a obedecer às normas emanadas do poder constituinte” (perspectiva do sujeito passivo).

Passando pelo poder Constituinte, aquele do qual a constituição foi originada, em seguida, chega-se à norma fundamental, portanto, àquela que garante poderes e legitima à constituinte e a Constituição e, finalmente, por extensão a todo o sistema, haja vista que “[...] mesmo esse poder constituinte precisa de algo que lhe atribua poder, que lhe confira a faculdade de produzir a norma jurídica constitucional. E é esse “algo” que é a verdadeira norma fundamental de um ordenamento. ”[16]

Ao fundamentar a Constituição, que é a responsável pela regulação e emanação das competências normativas, em última instância, portanto, a norma fundamental delega/atribui e ao mesmo tempo impera/normatiza, pois ela origina a prerrogativa da obrigatoriedade, da qual depende a constituinte, apenas nesse contexto a constituição tem a capacidade de obrigar essa ou aquela conduta da intersubjetividade humana e as competências desse ou daquele órgão.

A polêmica em torno da noção kelseniana de norma fundamental gira em torno do fato de ela não ser uma norma expressamente positivada, sendo apenas pressuposto para fundar o sistema normativo. Porém, somente por meio de um pressuposto como esse é possível consolidar um princípio de unidade de determinado ordenamento, cuja pluralidade de fontes do direito a ele vinculadas, aparentemente não permitiria essa pretensão de unidade. Esse pressuposto deverá funcionar como máxima hierarquia, não dependente de mais nenhum elemento jurídico, pois é fundante, e o último poder jurídico “real” (a constituinte) se subordina a ele para satisfazer a prerrogativa de que um poder jurídico depende de outro para tornar-se válido, “a norma fundamental, portanto, [...], é uma convenção necessária, pois é indispensável a presença [...] de uma norma que sirva de apoio a todo o ordenamento jurídico, e que, por essa razão tem o condão de lhe conferir a [...] unidade”.[17]

Até agora, falamos de ordenamento como conjunto de normas. Como saber se uma norma pertence a um ordenamento? Através da validade. Uma norma existe como norma jurídica (juridicamente válida) quando está integrada ao ordenamento jurídico.

Após o cumprimento dos procedimentos de sua validação, a regra torna-se passível de vincular condutas e ser aplicada a fim de dirimir conflitos. Por esse motivo, ter consciência sobre a validade de uma norma é de suma importância, e essa consciência passa pelo conhecimento acerca da autoridade que tenha legitimidade e poder para emanar normas jurídicas.

Essa autoridade depende do reconhecimento de uma norma superior, e esta de outra mais acima, e assim por diante, sucessivamente, até que se chegue a uma norma necessariamente independente de outra, ou seja, autônoma e fundamental, apenas se diz que existe legitimação normativa (inclusão efetiva de uma norma no ordenamento) por meio da pressuposição de uma norma fundamental.

Assim, para nós, é evidente que a norma fundamental é um pressuposto lógico, a saber, uma espécie de axioma (para usar a linguagem matemática) ou dogma (para usar a linguagem da teologia) de validade do ordenamento/sistema jurídico em geral, e da Constituição e das leis que derivam desta. É a norma única da qual todas as outras direta ou indiretamente derivam, sendo a unidade constitutiva do ordenamento. Portanto, para nós, a norma fundamental, coaduna-se com o enfoque dogmático, ao contrário do zetético, haja vista que se compromete com a resolução e solução de conflitos, permanecendo os “dogmas” como premissas inatacáveis pelo questionamento[18].

Os maiores questionamentos a essa fundamentação normativa de cunho kelseniano são direcionados a não existência de uma base na qual se apoie a norma unificadora, ou seja, se questiona o fundamento da norma fundamental.

Entretanto, esse é o propósito de ser da norma fundamental, agindo como um axioma, desempenhando função semelhante aos postulados num sistema científico (proposições primitivas das quais se deduzem outras, mas que por sua vez não são dedutíveis), estando a definir o ponto último de confirmação da validade, consolidando uma “finitude” na escalada hierárquica, finitude necessária para tornar factível a validação do próprio ordenamento: “as relações de validade [...] implicam a formação de séries normativas de subordinação, portanto hierarquias normativas [...] essa séria culmina numa primeira norma, não sendo, pois, infinita” [19]. Os postulados são postos ou por convenção ou por suas supostas evidências aparentes.

Assim, a norma fundamental é uma convenção, ou uma proposição evidente que é posta no vértice do sistema, para que todas as outras normas possam reconduzir a ela. Aqui se encaixa bem o conceito de topoi (lugar comum) como mera convenção utilizada pelos usuários da língua[20]. E ela não tem fundamento, segundo Bobbio, pois se assim fosse, deixaria de ser fundamental, dependendo de outra norma superior.

A única maneira de responder acerca da fundamentação da norma fundamental é atravessar as fronteiras jurídicas e sistemáticas para encontrar num contexto “extra-dogmático” uma resolução. Sai-se da seara do direito positivo e entra-se no problema do fundamento ou justificação do poder.

Tais soluções levam em consideração várias teorias, lembrando que cada teoria pode ser concebida como a formulação de uma norma superior à norma fundamental (um poder superior ao poder constituinte), a saber, um uma verdadeira fonte última de todo poder.

Apenas a título de curiosidade vale a pena um breve esclarecimento. A primeira delas concebe que a emanação primária de toda espécie de poder advém de Deus, outra de que há uma lei natural nascida de uma idéia de racionalidade humana superior à concepção de um direito dogmaticamente organizado, que daria origem a uma necessidade “racional-coletiva” de submissão ao organismo governamental em vigor, e, por último, existe a possibilidade de se atribuir a um acordo de vontades/contrato (teoria contratualista)[21], entre os integrantes de uma sociedade, o sustentáculo do poder emanado pela norma fundamental.


9. Direito e força

Existe outra argumentação que é realizado acerca da norma-origem, e essa alegação diz respeito ao conteúdo que essa norma básica detém. Ao responder-se através da alusão a uma determinada conjuntura das forças política majoritário, num determinado momento histórico, tomaram à dianteira e instauraram um novo ordenamento jurídico.

Pode-se, portanto, dizer-se também que o direito está diretamente ligado à noção de força, nesse sentido, “[...] o Poder Constituinte, na verdade expressaria apenas a vontade de quem detém a força para, rompendo com a velha ordem, constituir uma nova e fazê-la respeitar, o que Ferdinand Lassalle chamou de “fatores reais de poder”“. [22]

Porém essa afirmação pode ter sido construída sobre um conceito falacioso, no qual poder originário está necessariamente reduzido à força. Assim, esquece-se da inevitável adesão social a ele, nem que seja numa proporção mínima (consenso), pois deter poder não significa a opressão forçosa daqueles que estão subordinados a ele, mas a capacidade de ameaçar e punir (coercibilidade), caso as normas emitidas por esse poder dominante não sejam cumpridas. Assim, o poder originário repousa um pouco na força e um pouco no consenso.

Outrossim, o poder reside na possibilidade de realizar uma emissão normativa e imputar àquele que desrespeitá-la uma sanção, a força é um requisito operacional e instrumental necessário ao sistema(poder), e não um pressuposto para a constituição de um poder.

Essa percepção nada mais é do que a ratificação quanto ao modo de ser do direito, o qual necessita de embasar-se no poder, pois em alguns momentos faz-se mister exercitar mais intensamente uma punição com a ajuda dessa força de fazer cumprir a norma elaborada, nos momentos em que as leis tornam-se alvo de comportamentos humanos contrários a elas. O Direito, destarte, é um conjunto de regras com eficácia reforçada.

 Se o direito pode ser entendido como “conjunto de normas estabelecidas pelo poder político que se impõem e regulam a vida social de um dado povo numa determinada época”[23], então, o ordenamento jurídico, no interior dessa sociedade, terá sempre de ser eficaz para ser válido, ou seja, a realização, nem que sob força coercitiva, daquilo que está prescrito na lei.Esta força imprescindível foi, irremediavelmente, concedida, em moldes jurídicos, pela norma fundamental.

Ademais, a norma kelseniana originária nada tem a ver com a validação de um ideal axiológico (de justiça), e sim com a garantia de uma validade jurídica do poder constituinte, não garantindo que este seja justo, mas juridicamente válido. Sendo necessário

[...] libertar o conceito de Direito da idéia de justiça [...] ambos são confundidos no pensamento político não científico, assim como na linguagem comum, e [...] essa confusão corresponde à tendência ideológica de dar aparência de justiça ao Direito positivo.[24]

A nosso ver, essa concepção do Direito se coaduna com o conceito de corte epistemológico proposto por Kelsen para o Direito. Este deveria abster-se de influências de outros campos normativos como o religioso, o da moral, o da política, o dos costumes sociais(convenções, normas de cortesia e decoro), para se transformar numa verdadeira teoria pura do Direito[25].

Pode-se dizer também que o Direito regula o modo como se exerce a força, porquanto ao estabelecer a pena, desrespeitando preceitos normativos e a forma através da qual deve ser prescrita a sanção, está-se aplicando o poder coercitivo de forma a administrar a utilização da força apenas em prol dela mesma.

Entretanto, ao obedecer somente a esse propósito, o Direito restringe seu âmbito de ação, haja vista que as normas se relacionam mais diretamente com uma forma de conduta querida (lícito) e não com uma maneira de aplicação da sanção ao ilícito. Assim, o direito é mais o meio que utiliza a força, do que somente a força propriamente dita.

Sobre o autor
Eduardo Almeida Pellerin da Silva

1. Formação acadêmica: graduação em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (FDR)/Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) (2016) e especialização em Processo Civil pela Faculdade Damásio (2018); 2. Atuação profissional: advogado proprietário do escritório Eduardo Pellerin Advocacia e Consultoria, o qual atuou com advocacia estratégica e consultiva, em Direito Civil, Consumidor e Administrativo (2020-2021), advocacia estratégica e consultiva, em Direito Civil, Administrativo e Processo Civil para Pequeno e Beltrão Advogados (2020-2021), assistente de Desembargador e servidor público federal do TRT6 (2021), assistente de Juíza e analista judiciário do TRT2 (2022-atual); 3. Concursos: aprovado em vários, com destaque para o TRF5, TRT6, TRT1, TRT2 e TRT15; 4. Pesquisa e produção: autor do livro "O ativismo judicial entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade: a racionalidade da melhor decisão judicial de controle de políticas públicas diante da ineficiência estatal na concretização de direitos fundamentais", pesquisador bolsista do PIBIC UFPE/CNPq - no Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), linha de pesquisa: "A metafísica da doutrina do Direito em Kant: moral, ética e Direito" (2015-2016), publicou capítulo de livro, doze artigos científicos, em revistas jurídicas especializadas, jornais, anais de eventos e apresentou artigos, em congressos científicos; 5. Ensino: foi monitor das cadeiras de Introdução ao Estudo do Direito I, Direito das Coisas e Processo de Execução; 6. Extensão: Serviço de Apoio Jurídico-Universitário (SAJU) e Pesquisa-Ação em Direito (PAD): As relações entre a ficção jurídica e a ficção literária; 7. Formação complementar: fez vários cursos em Direito, Ciência Política, Português e Oratória; 8. Congressos: participou de mais de uma dezena. Currículo: http://lattes.cnpq.br/9336960491802994

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Eduardo Almeida Pellerin. A unidade do ordenamento jurídico segundo Bobbio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3321, 4 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22291. Acesso em: 24 nov. 2024.

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