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O Juiz e o superego.

Um olhar analítico sobre a função judicante

Agenda 01/10/2001 às 00:00

É possível traçar um paralelo entre a função desempenhada pelo superego na dinâmica mental e a função judicante desempenhada pelo juiz na sociedade, com interesantes implicações sobre o papel da magistratura e do direito na dinâmica social.

O processo civilizatório caracteriza-se por um impulso do homem na criação de um grupo social cada vez mais amplo, uma comunidade, cujo poder se impõe ao de um indivíduo isolado. Para a criação dessa comunidade é necessário que o homem iniba alguns de seus instintos e frustre a satisfação de todos os seus desejos de maneira egoísta e ilimitada. O direito e a lei atuam basicamente com a função de um limite, que impõe regras à convivência em grupo, permitindo com isto a construção de um espaço social de segurança. O juiz é, em última instância, a autoridade social externa que encarna o limite da lei.

Na dinâmica mental, a instância psicológica que atua com a função limite é o superego, que age como censor das ações do ego, inibindo a satisfação dos desejos e instintos, permitindo, com isso, a inserção do indivíduo no espaço sócio-cultural. O superego é fruto da introjeção da imagem de uma autoridade externa, primariamente desempenhada pela figura dos pais que atuam como limitadores dos desejos e impulsos infantis, além da própria carga de agressividade que cada pessoa carrega contra essa figura de autoridade primária.

Dessa forma, poderíamos pensar que o juiz é a autoridade que desempenha, em um nível social, a função superegóica de censor (valorando condutas) e de limitador, ao dizer na sentença não apenas o direito, mas qual a conduta social esperada e valorizada, impondo sanções ao descumprimento das regras sociais. Ele atua como um grande agente de manutenção da coesão do tecido social, tentando restaurar o equilíbrio de forças rompido pelo conflito, expresso no processo.

O instinto humano básico capaz de desequilibrar a dinâmica social e para o qual o juiz aponta com o limite da lei é a agressividade. Toda lesão a direito ou interesse alheio é fruto da agressividade, que encontra expressão através da satisfação dos desejos individuais, expressão esta que, ao se sobrepor aos interesses e desejos de toda a coletividade ou de outra pessoa, fere os limites sociais. O conflito entre indivíduo e coletividade é contínuo e não consegue ser resolvido pelo direito, mas apenas aplacado por ele. Haverá sempre uma tensão entre esses dois pólos, característica do processo civilizatório e que pode ser traduzida como um impasse da civilização.

Para o desempenho de seu papel de limitador social, é impossível que o juiz balize suas decisões apenas pela lei: os princípios gerais de direito e os valores sociais expressos na Constituição Federal são importantíssimos e traduzem a mais alta aspiração do que poderíamos chamar de ideal ético social. Tanto princípios como valores, por serem fluidos, exigem uma tarefa criativa do juiz em seu manejo, visando a construção de uma decisão ajustada. Todo o temor quanto ao arbítrio possível no uso dessas ferramentas decorre da desconfiança oriunda do aumento do poder do juiz, implicado nesse uso. Despreza-se, com isso, a potencialidade transformadora desses instrumentos, que certamente seriam bem usados por um juiz que, individualmente, possuísse uma boa formação da estrutura superegóica, a qual se traduz por um grande senso ético em suas ações. O que se vê é, pelo contrário, a valorização do juiz formalista e mecânico aplicador das leis. Valoriza-se, com isso, a imagem do juiz que atua como um superego rígido e impiedoso, ao invés do juiz que atua como um superego flexível e criativo dentro de limites éticos sociais, encontrados basicamente no texto constitucional e expressos através dos princípios gerais do direito.

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Dessa forma, poderíamos pensar que os valores constitucionais e os princípios gerais de direito constituem o suporte normativo de um superego social, sendo o juiz a figura de autoridade externa desse superego. Ele mesmo, como indivíduo, é fruto das influências desse superego social, cuja formação tem por base uma origem filogenética e histórica, e cujo contorno muda através dos tempos.

Percebe-se que a rigidez dos textos legais não consegue ser um continente do ideal ético social, sendo de suma importância as ferramentas fluidas contidas em princípios e valores. Uma sociedade com um forte sentimento constitucional seria então aquela que possui um forte e claro superego social construído historicamente.

Mas todo juiz carregará consigo uma grande frustração: sua ação tem sempre um limite, já que o direito tem menos função educativa do que se espera. Isso acontece porque a ação do juiz como autoridade externa limitadora não é introjetada e internalizada através da adoção de um limite e de padrões éticos individuais mais rígidos. A demora na prestação jurisdicional só contribui para a diminuição do temor da autoridade externa encarnada pelo juiz, favorecendo a multiplicação dos conflitos, a falta de coesão social e a descrença na ação de uma instância superegóica social.

O paralelo traçado entre o juiz e o superego não é apenas uma tentativa de aproximação entre direito e psicologia: é em verdade um caminho que mostra a importância da magistratura e do direito na construção de uma sociedade mais harmoniosa e coesa, e na solidariedade social construída em padrões éticos mais elevados. É através desse paralelo que também é possível a criação de uma imagem de juiz que una flexibilidade, criatividade e firmeza na tradução do superego social para o limite das ações individuais, desempenhando a função de abrir janelas éticas para o mundo...


Bibliografia

Freud, S. (1997) O mal-estar na civilização. Tradução de José Octavio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago.

Sobre a autora
Scheilla Regina Brevidelli

acadêmica de Direito na USP, servidora da Justiça do Trabalho, psicóloga

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BREVIDELLI, Scheilla Regina. O Juiz e o superego.: Um olhar analítico sobre a função judicante. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2231. Acesso em: 23 dez. 2024.

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