INTRODUÇÃO
Algumas vezes já me perguntei porque sou advogado. Quase sempre me respondo que foi a forma que encontrei para continuar acreditando na possibilidade de ser útil à sociedade – embora muita gente não acredite nos bons propósitos dos advogados.
Freqüentemente pergunto-me porque aceito causas de hipossuficientes e questões de natureza política e de cunho infra-estrutural. Creio que o motivo para tanto está no fato de que alguém precisa fazer isso, e tem que fazê-lo por ideologia e não apenas para sobreviver.
Hoje, quando estou cada vez mais interessado em discutir os temas ligados ao gênero, a familiaridade, a sexualidade e o amor inquietata-me saber: por que continuo vinculado à questão agrária? E a resposta é seca: por que ainda é preciso.
O que quero lhes dizer, queridos amigos, é que não venho lhes falar na condição de ativista ou de jurista – porque não me cabe nenhuma dessas qualificações. Venho conversar como "insistente social" – que crê na necessidade de mudar o quadro sócio-político do Brasil rural, e como amante de um bom papo – tendo vocês, pacientes colegas operadores do Direito como interlocutores dessa discussão.
Vamos conversar um pouco sobre a função social da propriedade e seus efeitos jurídicos. Essa é uma matéria vasta, mas que padece de uma leitura nem sempre tão ampla por parte dos julgadores.
Tentarei discorrer sobre os fundamentos desse instituto, sua aplicação no direito brasileiro e as perspectivas jurídicas defensáveis, em favor da perseguição do ideal de justiça social via sistema jurídico-judicial.
ORIGENS DO INSTITUTO
É difícil definir claramente onde se encontram os fundamentos basilares da função social da propriedade. De certa forma o seu conceito e história confunde-se com os conceitos historicamente adotados pela propriedade.
Tendo por base a Antiguidade, ali já veremos os filósofos gregos, dentre os quais destaca-se Aristóteles, dedicando-se a leitura de que os bens possuem uma imanência social; ou seja, embora apropriados pessoalmente fazem parte de um processo interativo que mais tarde Max Weber veio a chamar de ação social – ou seja, a produção de fenômenos sociais que têm a sua significação baseada na existência do "outro" (termo que encontra amparo também na psicanálise).
Sem dúvida que o pensamento de Santo Tomaz de Aquino muito influenciou a construção dos regramentos jurídicos, dentro do se batizou de jus naturalismo – onde a defesa da posse dos bens materiais está colada ao exercício da garantia da mantença, sem, contudo desprezar o aspecto social imanente aos bens oriundos da ação da natureza. De certa forma advém do tomismo a idéia de bem comum, mais tarde revigorada pelas teorias do Estado moderno.
Muitos são os pensadores que se dedicam, sob as mais diversas concepções ideológicas, a analisar o fenômeno da apropriação pelo homem da terra, quer sob o formato de mera posse, quer sob a feição de propriedade. Por razões pragmáticas vou passar ao largo da extensa discussão que envolve as teorias sobre a posse e a propriedade, permitindo-me apenas chamar a atenção para o fato de que a Revolução Francesa fortaleceu a tese de que a propriedade privada da terra não pode assumir uma feição absoluta, posto que a ação do homem sobre ela importava inclusive aos que não a possuíam. A partir do Código de Napoleão passamos inclusive a vislumbrar um mecanismo de desapropriação que, por um lado protege a propriedade privada, mas por outro submete a mesma ao interesse público.
Segundo Benedito Ferreira Marques(1) o grande impulso à doutrina da função social da propriedade se deve a Duguit (Professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito de Bordéus, na França) ao proferir palestra, em 1911, na Faculdade de Direito de Buenos Aires, na Argentina, posto que para ele "a propriedade não era um direito subjetivo, mas a subordinação da utilidade de um bem a um determinado fim, conforme o direito objetivo".
Sem dúvida a presença eclesial na discussão sobre o uso da terra não parou com Tomaz de Aquino. Prosseguiu com as Encíclicas Rerum Novarum (Leão XIII – 1891), Quadragésimo Anno (Pio XII – 1931) e Mater et Magistra (João XXIII – 1962), todas asseverando, em algum momento, acerca da importância da inclusão social via trabalho e distribuição das riquezas. Sem dúvida que o Concílio Vaticano II e mais tarde a Teologia da Libertação deram forte impulso a discussão acerca do uso da terra e do tributo social que sobre ela repousa.
No Brasil o princípio da função social da propriedade é introduzido a partir da Emenda Constitucional no 10, de novembro de 1964 à Constituição de 1946(2).
Ao nível do Direito Comparado assevera Octavio Mello Alvarenga(3):
A Constituição irlandesa, de 25.03.1942, determina no art. 10 que todas as riquezas naturais, incluindo o ar e todas as formas potenciais de energia, dependem da jurisdição direta do Parlamento e do Governo. O art. 37 da Constituição turca, de 1960, ordena que a distribuição de terras não poderá ter por conseqüência diminuição alguma de riqueza florestal ou diminuição de qualquer outra riqueza da terra. No México, desde 05.02.1917, dispõe a Constituição que "a nação terá, a qualquer tempo, o direito de impor à propriedade privada as modalidades que dite o interesse público, tanto o de regular o aproveitamento dos elementos naturais susceptíveis de apropriação para fazer uma distribuição eqüitativa da riqueza pública e para cuidado de sua conservação".
Como se pode observar em determinadas situações a presença da função social da propriedade confunde-se com a defesa do meio ambiente e das riquezas naturais; o que chama a atenção para o aspecto público da terra.
Embora seja pródiga a origem do instituto, nem sempre sua interpretação tem sido extensiva. A seguir discutiremos o princípio da função social e suas relações hermenêuticas.
UM POUCO DE TEORIA
Paulo Torminn Borges cita Antonino C. Vivanco para definir a função social da propriedade ao dizer(4):
- La función social es ni más ni menos que el reconocimiento de todo titular del dominio, de que por ser un miembro de la comunidad tiene derechos y obligaciones con relación a los demás miembros de ella, de manera que si él ha podido llegar a ser titular del dominio, tiene la obligación de cumplir con el derecho de los demás sujetos, que consiste en no realizar acto alguno que pueda impedir u obstaculizar el bien de dichos sujetos, o sea, de la comunidad".
"El derecho a la cosase manifiesta concretamente en el poder de usarla y usufructuarla. El deber que importa o comporta la obligación que se tiene con los demás sujetos se traduce en la necesidad de cuidarla a fin de que no pierda su capacidad productiva y produzca frutos en beneficio del titular e indirectamente para satisfacción de las necesidades de los demás sujetos de la comunidad"(Teoría de derecho agrario, v. 2, p. 472-5)
Uma das grandes questões acerca da função social está na sua vinculação ou não ao termo propriedade. Afinal, quem detém a função social, a terra ou a propriedade? No dizer de Alcir Gursen de Miranda(5), com quem concordo, a função social é atributo da terra, senão vejamos:
"Função social da terra, pode-se afirmar que constitui o princípio central do D. A., do qual a função social da propriedade da terra é um subtema, bem como todo e qualquer princípio ou instituto que tenha como objeto a terra".
A Conferência das Américas sobre a Carta da Terra, realizada em Cuiabá, em 1998, albergou acalorada discussão acerca da inclusão da denominação "função sócio-ambiental da terra", querendo demonstrar a necessidade contemporânea de explicitar a relação existente entre a terra enquanto ecossistema e meio de produção. Pessoalmente considero que a pretensão é pleonástica, posto que o cumprimento da função social da terra (ou da propriedade, como muitos referem) só se consolida com o respeito a preservação do meio ambiente.
A história da propriedade no Brasil exigiria uma longa dissertação, para a qual não dispomos de tempo no momento, porém pode-se observar que, embora freqüentemente descumprido, todas as normas que vigiram no País – das Capitanias Hereditárias à Lei de Terras de 1850 – sempre houve referência à necessidade pragmática de utilização da terra pelo seu possuidor; como forma de efetivação do domínio.
O conceito de imóvel rural no Brasil congrega longuíssima discussão teórico-legislativo-jurisprudencial acerca de sua definição. Considero que, excetuando o ângulo tributário, a questão está parcialmente pacificada, nos termos do art. 4o, I, da Lei no 8.629/93, que define o imóvel rural pela sua destinação. Nesse sentido, a função social da propriedade – aplicada ao imóvel rural – tem o caráter de regularização econômica e ambiental do uso da terra, numa perspectiva de bem estar social.
Se analisarmos o art. 2o, § 1o do Estatuto da Terra (Lei no 4.504/64) e o art. 186 da Constituição Federal observaremos profunda identidade entre a redação de ambos; enfatizando-se a necessidade de simultaneidade no cumprimento das medidas ali elencadas para que se considere cumprida a função social da propriedade.
A analise da função social da propriedade, como é nomeada no País, não pode passar ao largo de duas questões:
a) quem se coloca como meio de produção é a terra, sendo a propriedade um atributo conferido a esta;
b) o desenvolvimento humano e o respeito ao meio ambiente deve sempre ser considerado privilegiadamente em relação ao direito de propriedade.
Por vezes confundiu-se a exigência de cumprimento da função social da propriedade com comunismo ou socialismo. Ledo engano. A função social da propriedade é um instrumento capitalista, que entre outras coisas preserva o direito de propriedade.
Por outro lado, a função social da propriedade não é um artifício para a realização da Reforma Agrária. Não, este instituto é resultado do processo civilizatório da humanidade, com o intuito de considerar a terra com um bem básico e coletivo; embora particularmente, apropriado segundo o sistema econômico de cada cultura.
Em sintonia com o artigo 5o, XXII da Constituição Federal é garantido o direito de propriedade, mas de forma a que se atenda sua função social. Neste sentido assevera Paulo Torminn Borges(6)
"Proprietário, sim: proprietário com titularidade garantida; proprietário com direitos assegurados; mas proprietário com deveres sociais, justamente pelo fato de ser proprietário".
Proprietário que precisa trabalhar a terra, ou fazê-la trabalhada.
Proprietário que tem responsabilidade pelo bem-estar dos que, com ele, labutam na terra.
Proprietário que faça a terra produzir como mãe dadivosa e fértil, mas sem a exaurir, sem a esgotar, porque as gerações futuras também querem tê-la produtiva.
É famoso o contra-senso entre os artigos 185, II e 186 da Constituição Federal. Enquanto o segundo artigo elenca as condições para cumprimento da função social, o primeiro coloca a propriedade produtiva no pedestal da insucetibilidade de desapropriação por interesse social para fins de Reforma Agrária. A interpretação desses artigos devem ser feitas em sintonia com a análise histórica do processo constituinte que produziu a Constituição em vigor. Os dos artigos refletem o embate entre as forças conservadoras (Oligarquia rural – Centão) e as forças progressistas (Igreja Católica – Universidades/ONGs – Partidos de "esquerda").
Ora, não é preciso ser um grande hermeneuta para saber que há situações em que o cumprimento da função social da propriedade já se faz de todo impossível – trabalho escravo, descumprimento contumaz das leis trabalhistas, agressão irremediável ao meio ambiente, exploração de parceiros outorgados e arrendatários nos contratos agrários. Os prejuízos sócio-ambientais não podem ser maquiados com reparações cosméticas, posto que as chagas psico-sociais e a agressão ambiental não podem ser simplesmente corrigidas, pois suas marcas são por vezes perenes ou, no mínimo duradouras.
A GUÍSA DE CONCLUSÃO
Freqüentemente os julgadores estaduais inobservam a legislação agrarísta em suas decisões. É comum que tais magistrados confiram ao direito de propriedade uma perspectiva absoluta, deixando de levar em consideração elementos como a posse e o cumprimento da função social da propriedade.
O parágrafo 6o do artigo 9o da Lei no 8.629/93 sobre o qual recaiu o veto presidencial, dizia:
"A constatação inequívoca, nos termos e condições previstas em lei, do trabalho escravo importará confisco do imóvel".
O entendimento de que a propriedade privada merece proteção se sobrepôs ao princípio do efetivo cumprimento da função social da propriedade. Entretanto, o mesmo não aconteceu com as glebas utilizadas para plantio de psicotrópicos, que serão expropriadas e destinas à colonização (art. 243, da Constituição Federal). De certa forma, talvez a falta de perspicácia do legislador ordinário o tenha conduzido a esse fim, que poderia ter sido outro, se o mesmo tivesse substituído "confisco" por expropriação e destinada à Reforma Agrária.
Considero que o descumprimento da função social da propriedade não deve ser encarado apenas como um instrumento de tributação, mas acima de tudo como um referencial para desapropriação por interesse social para fins de Reforma Agrária.
Urge que os movimentos sociais recolham a jurisprudência acerca do tema e estimulem a produção de decisões que configurem a atenção do Estado juiz ao cumprimento do espírito da Lei Maior.
A produtividade da terra não pode ser sobrepor ao cumprimento dos demais itens norteadores da função social da propriedade, que acima de tudo deve qualificar-se como em sintonia com a vida e não com a instituição propriedade, fonte de poder, controle e, por vezes meio de alienação.
NOTAS
1. MARQUES, Benedito Ferreira. Direito agrário brasileiro. 2a ed.. Goiânia : AB, 1998, p 50.
2. FALCÃO, Ismael Marinho. Direito agrário brasileiro. São Paulo : EDIPRO, 1995, p 208.
3. ALVARENGA, Octavio Melo. Política é direito agroambiental. 2a ed., Rio de Janeiro : Forense, 1997, p 117.
4. BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos de direito agrário. São Paulo : Saraiva, 1995, p. 7-8.
5. MIRANDA, Alcir Gursen. Teoria de direito agrário. Belém, 1989,p. 84.
6. Ibidem, p.9