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John Rawls e Jürgen Habermas: dois projetos deliberativos para uma democracia pluralista

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Agenda 22/09/2012 às 09:40

III. A Democracia Deliberativa Procedimental de Jürgen Habermas

Visando superar a falta de legitimidade democrática constatada na Teoria Crítica[20], Habermas trabalha um modelo de democracia deliberativa procedimental. O projeto tem sua essência na superação do modelo substantivo de sociedade justa, sugerindo as condições comunicativas necessárias para que os membros envolvidos possam decidir em um procedimento constante e modificável acerca do melhor projeto político para a sociedade. O modelo democrático habermasiano é construído, em linhas gerais, a partir da conjugação dos seguintes elementos: (I) uma estrutura deliberativa de caráter democrático; (II) um sistema de direitos e liberdades fundamentais; (III) um princípio normativo do discurso, apto a guiar a formação da opinião e da vontade no Estado.

Em Between Facts and Norms, mais uma vez, o consenso é trazido ao debate na filosofia. As ideias de pluralismo razoável e de doutrinas abrangentes são também pressupostos para o projeto democrático habermasiano (HABERMAS, 1996). O pluralismo político e cultural são temas centrais que perpassam por inúmeros trabalhos de Habermas, tanto na filosofia política quanto na filosofia do direito. No entanto, de forma distinta daquela proposta por John Rawls, Habermas busca dar conta da problemática sobre o consenso a partir de uma proposta democrático-deliberativa que se funda na sua concepção sobre o agir comunicativo[21].

O grande desafio habermasiano é buscar conciliar as liberdades individuais, características de sujeitos morais autônomos, com o princípio democrático. Uma ordem jurídico-normativa (direito) somente poder ser legitimada na medida em que fornece condições necessárias para que sujeitos morais autônomos possam ter consideradas as suas posições políticas individuais para a formação da vontade e da opinião políticas do Estado.

Habermas desloca a legitimidade do direito para a dimensão da liberdade comunicativa tangenciada por um sistema de direitos alcançado através do procedimento deliberativo. A liberdade comunicativa envolve a possibilidade de o cidadão defender a sua posição política em meio à deliberação pública, através do uso público da razão. Essa liberdade é expressão da autonomia política de cada indivíduo para levar ao debate público as razões que entende como suficientes e legítimas para defender sua concepção sobre o bem comum. A função do direito, nesse ponto, consiste na regulamentação dos procedimentos deliberativos de formação da opinião e da vontade coletiva, coordenando as razões que podem ser legitimamente defendidas pelos seus participantes (HABERMAS, 1996, p. 119):

Communicative freedom exists only between actors who, adopting a performative attitude, want to reach an understanding with one another about something and expect one another to take positions on reciprocally raised validity claims. (…) Communicatively acting subjects commit themselves to coordinating their action plans on the basis of a consensus that depends in turn on their reciprocally taking positions on, and intersubjectively recognizing, validity claims. From this it follows that only those reasons count that all the participating parties together find acceptable.

Habermas traça os contornos da estrutura de uma democracia deliberativa com intuito de delimitar as dimensões entre a autonomia privada e a autonomia pública. A teoria do direito ao longo do século XIX promoveu uma separação essencial entre essas duas dimensões. Os direitos subjetivos dos quais são titulares os indivíduos no âmbito de sua autonomia privada foram associados ao reconhecimento do indivíduo enquanto sujeito moral. Com efeito, no pensamento jurídico-filosófico do século XIX, o direito privado estava legitimado na autonomia moral da pessoa enquanto sujeito de direitos inalienáveis ligados à propriedade, à vida e à liberdade. Os diplomas legais, para serem considerados legítimos, deveriam garantir a inviolabilidade dos direitos inerentes à pessoa humana. A autonomia da vontade conferia ao individuo um espaço de liberdade para tomar decisões que afetassem sua vida privada, sem que pudesse sofrer qualquer forma de interferência jurídico-estatal em sua escolha particular. Na estrutura em que estava inserido esse sistema de direitos, os direitos subjetivos compunham poderes concedidos aos indivíduos pelo ordenamento jurídico-positivo. O círculo da legitimidade-legalidade era fechado com o fundamento de validade do exercício dos direitos subjetivos respaldado no próprio direito positivo. Dessa forma, a legitimidade ficava adstrita aos limites da legalidade.

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O primeiro passo dado por Habermas na redefinição da estrutura conceitual e funcional dos direitos subjetivos consiste na realocação do indivíduo dentro de uma sociedade em que há a colaboração entre sujeitos que reconhecem uns aos outros na qualidade de indivíduos livres e iguais. Nesse ponto, os direitos não se referem a indivíduos isolados em posições atomistas, sem qualquer relação entre si. Pelo contrário, o sistema de direitos é concebido para indivíduos que convivem em uma mesma sociedade, e formam uma determinada estrutura social. O problema aqui é definir como um sistema de direitos pode ser construído a partir do consenso entre indivíduos com interesses particulares e objetivos políticos distintos. As teorias contratualistas, para Habermas, não apresentaram respostas suficientes para essa questão na medida em que não ofereceram uma explicação razoável para a transição ao Estado de Direito através do contrato social[22].

A resposta para o desafio da produção do consenso é dada por Habermas através da construção racional de um sistema de direitos. O direito é concebido de forma racional, de maneira a ser aceito e reconhecido pela sociedade. Essa construção racional do direito se dá, em um primeiro momento, por meio da comunicação e participação do cidadão, de forma a garantir-lhe a autodeterminação[23]. Nesse sentido, a sociedade como um todo deve ser estruturada de forma a reconhecer todos os seus atores. O reconhecimento é justamente o aceite recíproco dos participantes, e só é possível por meio de sistemas inclusivos de constituição da vontade[24]. Assim, o cerne da legitimidade de um Estado Democrático de Direito, para o filósofo, está no procedimento de criação das decisões em todos os âmbitos[25]. A tensão entre faticidade e validade, inerente ao fenômeno jurídico somente pode ser superada, para Habermas, por meio da construção racional do direito, em que a relação dialógica entre cidadãos livres e iguais possa se ver refletida, institucionalmente, na formação da vontade jurídico-política do Estado.

Em sua construção teórica, o filósofo alemão concilia a autonomia privada ou o direito subjetivo, garantido pelos direitos humanos com a autonomia pública resultante da soberania popular. Sob outro prisma, seria uma conciliação da tradição liberal e da tradição comunitarista. Como se sabe, os liberais entendem os direitos na sociedade democrática moderna com a função de resguardar as liberdades negativas do indivíduo. Os limites da soberania popular seriam os direitos fundamentais da pessoa. Para os comunitaristas o Estado deve proporcionar a auto-organização social para que defina os seus próprios padrões éticos. A auto-organização se dá por meio de um processo democrático e os interesses individuais devem estar de acordo com os valores da comunidade. Pela definição percebe-se a incompatibilidade entre os liberais e os comunitaristas. Retornando ao primeiro ponto, Habermas sustenta que, para ser legítimo, o direito deve resguardar as liberdades individuais garantidas pela autonomia privada, com a participação ativa do cidadão nas decisões políticas, garantidora da autonomia pública. Essa conciliação proposta pelo autor se daria por meio do discurso público racional de forma que os cidadãos sejam autores das leis, mas destinatários das liberdades individuais fundamentais por eles mesmos escolhidas (LEITE, 2008, p. 98):

A função do Estado, na teoria discursiva do direito, é assegurar as liberdades públicas concernentes à participação dos cidadãos nas decisões públicas e, ao mesmo tempo, a inviolabilidade do núcleo fundamental de liberdades privadas estipulado no sistema de direito.

No capítulo IV de Between Facts and Norms, o autor diferencia a legitimidade do processo de normatização e a legitimidade do exercício do poder político, apesar de ambos serem cooriginários e interligados. O poder político seria constituído pelo direito e o direito, para ser duradouro, precisaria da instrumentalização do poder político. A partir daí surge a necessidade de se organizar o Estado. Conforme mencionado acerca da conexão entre liberais e comunitaristas, o filósofo, ao tratar da relação interna entre direito e política, afirma que os direitos subjetivos somente podem ser determinados por meio de organismos que tomem decisões obrigatórias para a coletividade. Por outro lado, essas decisões somente são obrigatórias pela forma jurídica que as revestem. As decisões do Estado de direito devem ser legitimadas pelo direito corretamente estatuído. Em outras palavras, o caratér legitimatório estatal depende de um direito que tem aceitação racional por parte de todos os membros da sociedade, numa formação discursiva da opinião e da vontade.

Habermas entende que uma comunidade jurídica formada por pessoas livres e iguais constitui direitos fundamentais por eles deliberados, o que entende ser o nascedouro da socialização horizontal dos cidadãos. A criação do Estado como estabilizador desse sistema faz com que a socialização horizontal com a atribuição de direitos recíprocos, passe a ser uma relação vertical institucionalizada entre indivíduo e Estado. A soberania do povo passa a ser exercida por meio de corporações e comunidades de foros que compõem uma esfera pública de deliberação. Em resumo, a teoria do filósofo alemão busca conciliar os direitos fundamentais com a soberania popular por meio da ação comunicativa, pilar da democracia deliberativa.


IV. A Ética do Discurso e a Reconciliação entre Autonomia Moral e Sistema de Direitos

Na teoria da justiça rawlsiana, o pluralsimo moral, decorrente da diversidade cultural de uma sociedade democrática, é superado, ao menos em tese, em dois momentos distintos por meio de artificios diferentes. Ainda durante a posição original, o pluralismo é contornado pela ideia de consenso sobreposto e pela confiança de Rawls em um equilíbrio reflexivo entre as doutrinas morais abrangentes. Já durante a dinâmica política em sociedade, a pluralismo torna-se um desafio na medida em que cada cidadão possui, agora, conhecimento sobre seus projetos de vida pessoais, bem como sobre suas  concepções religiosas e filosóficas abrangentes. Como proposta de solução para esse impasse, o modelo delibeartivo rawlsiano se funda sobre a ideia de razão pública para defender o chamado fato do pluralismo razoável. O trunfo da teoria rawlsiana está em delimitar a deliberação pública tão-somente ao seu objeto particular, que é o essencialmente político em uma sociedade, a sua estrutura básica. Os argumentos considerados legítimos para a deliberação pública são aqueles que podem ser justificados com base na razão pública e que, por isso, são imunes a doutrinas morais abrangentes. 

Uma das dificuldades encontrada na leitura da teoria da justiça de Rawls consiste em identificar um modelo para a diferenciação daquilo que é considerado objeto propriamente da moral e que, portanto, é relegado ao espaço de autonomia privada de cada indivíduo. Em outras palavras, o problema se encontra na distinção entre o político e o moral, ou seja, entre aquilo que pode ser regulamentado na vida em sociedade – a legalidade pública – e o que está sujeito apenas ao espaço de julgamento moral individual. No centro dessa importante distinção está a própria ideia de legitimidade do direito. Uma vez que o direito se pretende legítimo, é preciso que ele possa ser estruturado de forma a garantir tanto um conjunto de normas públicas para o convívio social, quanto a preservação do espaço de autonomia privada de cada cidadão. Para tanto, Habermas concebe uma ética do discurso como aparato teórico a fim de coompreender o problema da legitimidade do direito.

A estrutura da ética do discurso habermasiana está dividida em duas dimensões complementares. A primeira delas especifica as condições para tornar possível um acordo racional legítimo. Nesse sentido, o procedimento dialógico para conferir validade a normas sociais deve envolver todos aqueles possivelmente afetados pela norma. Todos devem ter iguais oportunidades para desempenharem seus papeis no processo discursivo, livres de qualquer pressão externa, isto é, desconstrangidos de qualquer força política ou econômica. Assim como já dissemos anteriormente, essa é a condição de liberdade comunicativa que Habermas vê como necessária para o procedimento discursivo. Em linhas gerais, o procedimento discursivo deve reunir as condições de reciprocidade, reflexividade e assimetria entre os argumentos utilizados pelos participantes[26].

A segunda dimensão especifica, em um nível formal, o possível conteúdo desse acordo. Habermas associa a validade de uma norma com a genralização de seu conteúdo, isto é, somente pode ser considerada válida a norma que satisfaz a seguinte condição: todos os indivíduos afetados pela norma devem poder aceitar as suas consequências tal como possam ser antecipadas de forma genérica. Está justificado, assim, o princípio da universalização, como pilar da segunda dimensão da ética do discurso[27].

A conjugação entre essas duas dimensões da ética do discurso permite que Habermas estabeleça a sua linha distintiva entre o público e o privado. Somente com essa distinção fica delinaeado o objeto da deliberação pública, ou seja, aquilo que pode ser regulamentado por meio da construção de um sistema de direitos. Umponto é importante para esclarecer a delimitação da moralidade no ambito da teoria habermasiana: as decisões que devem ser deixadas para o julgamento moral de cada indivíduo somente podem ser definidas por meio de um processo de deliberação pública. Ou seja, delimitar até que ponto é legítima a regulação do Estado por meio do direito, sem que esbarre sobre o espaço de autonomia moral dos indivíduos, é uma tarefa que somente pode ser realizada através da deliberação pública. A deliberação, nesse sentido, é a chave para se compreender a legitimidade do sistema de direitos e, consequentemente, da própria democracia enquanto sistema político.      

Sobre os autores
Fabricio Faroni Ganem

Procurador Federal lotado no INSS. Mestrando em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD-UFRJ), na linha de pesquisa em Teorias Jurídicas Contemporâneas.

Bernardo Zettel

Graduando em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador de Iniciação Científica – IC/FAPERJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GANEM, Fabricio Faroni; ZETTEL, Bernardo. John Rawls e Jürgen Habermas: dois projetos deliberativos para uma democracia pluralista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3370, 22 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22657. Acesso em: 25 nov. 2024.

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