Resumo: O presente artigo faz uma revisão das teorias democráticas deliberativas de Jürgen Habermas e John Rawls por meio de uma análise comparativa. As duas concepções de democracia deliberativa buscam superar a questão do pluralismo político por meio de caminhos diferentes. Para o autor estadunidense, a justiça como equidade tem por base uma ideia substantiva de democracia deliberativa fundada em uma situação hipotética por ele criada, onde os representantes dos cidadãos, em condições de igualdade, deliberariam por princípios em busca de um consenso sobreposto. Já o filósofo alemão, buscando superar o modelo substantivo de sociedade justa, sugere como um sistema de direitos é capaz de legitimar o poder estatal a partir de sua formação deliberativa, orientada por condições comunicativas.
Palavras-chave: Pluralismo Político; Justiça como Equidade; Democracia Deliberativa.
Sumário: I. Introdução; II. A Teoria da Justiça como Equidade de Rawls; II.1. A Ideia de Posição Original; II.2. A Ideia de Consenso Sobreposto e os Limites da Razão Pública; II.3. Os Princípios de Justiça e a Concepção de Democracia Substantiva; III. A Democracia Deliberativa Procedimental de Habermas; IV. A Ética do Discurso e a Reconciliação entre Autonomia Moral e Sistema de Direitos; V. Conclusão; VI. Referências Bibliográficas.
Considerações Iniciais
Os estudos de Rawls e Habermas estão focados em uma das principais problemáticas relacionadas com as democracias modernas, a questão da produção de consensos entre cidadãos autônomos, necessários para a vida político-democrática. Alcançar esse consenso é, pode-se afirmar, um dos desafios teóricos mais relevantes para estes filósofos, para o qual traçam caminhos essencialmente distintos. O primeiro, por meio da da posição original, que será adiante explicada; e o segundo por meio comunicação linguística real de todos em um discurso ideal. Não obstante, enquanto o filósofo alemão desenvolveu uma teoria essencialmente procedimental, o americano desenvolveu uma teoria substantiva. Mas os pontos de diferença entre os autores são ainda mais amplos, e dizem respeito ao próprio objeto teórico de cada um: Habermas formula uma teoria abrangente que envolveria qualquer questão religiosa, moral ou política dentro da esfera deliberativa e Rawls uma teoria do político. Melhor dizendo, Rawls procura manter intocadas todas as doutrinas religiosas, metafísicas e morais para se basear exclusivamente na filosofia política autossustentável[1]. Já Habermas, por meio da teoria da ação comunicativa, abarca uma série de elementos que superam a filosofia política, se caracterizando como uma doutrina abrangente, buscando na filosofia da linguagem um parâmetro para a compreensão da racionalização social do mundo moderno[2].
Com efeito, os projetos rawlsiano e habermasiano para a modelação da democracia constitucional partem do pressuposto de que o pluralismo cultural é uma caractarística central das sociedade modernas. O projeto rawlsiano está estruturado a partir de fundamentos teóricos que fornecem a base para a construção de uma justiça como equidade: (I) a ideia de posição original; (II) a ideia de um consenso sobreposto e de razão pública; (III) os princípios de justiça que consolidam sua concepção substancial de democracia. Em Habermas, a estrutura da democracia está situada em bases deliberativas, e na formação de um sistema de direitos capaz de legitimar a ordem jurídico-política do Estado.
II. A Teoria da Justiça como Equidade de John Rawls
John Rawls, em “O Liberalismo Político”[3], traz nova ideia do contrato social e formula sua teoria da justiça como equidade, para abarcar a sociedade plural contemporânea em uma democracia constitucional[4][5]. Para o autor, a sociedade democrática moderna é composta por doutrinas diferentes e incompatíveis entre si, mas razoáveis, onde todos os cidadãos respaldam as diferentes concepções morais, filosóficas ou religiosas. Essa seria a consequência do exercício da razão humana sobre instituições livres em um regime democrático constitucional. Quando surgissem doutrinas abrangentes desarrazoadas, o sistema deveria contê-las de maneira que não criassem empecilhos à unidade e à justiça da sociedade. O problema trabalhado pelo autor é justamente estabelecer a estrutura necessária para que doutrinas abrangentes profundamente divergentes, ainda que razoáveis, possam conviver e que todas endossem a concepção política do regime constitucional[6]. Em outras palavras, o projeto político-deliberativo rawlsiano pretende alcançar o consenso entre sujeitos racionais dotados de autonomia moral acerca do conteúdo de princípios de justiça necessários para regular a estrutura básica de uma sociedade plural.
O Liberalismo tenta trazer para o plano político a estrutura teórica de Rawls sobre a justiça, mais precisamente sobre como podemos deliberar sobre princípios de justiça aplicados universalmente em uma sociedade política bem-ordenada. Isto acontece na medida em que Rawls enfrenta inúmeras críticas à sua obra “Uma Teoria da Justiça” (1971) durante os anos 70. A principal dessas críticas questiona a real possibilidade de a concepção política de justiça como equidade poder, na prática, garantir que cidadãos com diferentes doutrinas abrangentes (religiosas ou filosóficas) deliberem sobre aspectos da política, com argumentos razoáveis que possam ser aceitos por pessoas racionais e morais. Esse é um dos temas mais caros para Rawls. Tanto assim que busca esclarecer, já no Liberalismo, que sua teoria da justiça não tem a pretensão de se tornar uma doutrina moral compreensiva, mas um modelo voltado apenas para questões básicas da política, como a organização das instituições sociais e a forma como deve ocorrer a distribuição de renda e de recursos. Sobre essas questões básicas, Rawls acredita que mesmo doutrinas morais divergentes podem alcançar um consenso, em termos de justiça como equidade. Estão, assim, concebidos os fundamentos para a ideia de consenso sobreposto (overlapping consensus), como adiante será analisado[7].
II. 1. A Ideia de Posição Original: o contratualismo rawlsiano
A ideia de posição original constitui um dos elementos centrais que compõem a teoria da justiça de Rawls. Por meio dela, a filosofia política rawlsiana é elevada à categoria contratualista, ou seja, os termos de cooperação social, firmados no contrato original, devem ser elaborados a partir de um acordo inicial sobre o qual todos os indivíduos submetidos podem concordar. A posição original é utilizada, assim, como um artifício metodológico, capaz de criar um cenário hipotético em que indivíduos livres e iguais, com igual capacidade racional, podem deliberar sobre o conteúdo dos termos contratuais fundamentais para o convívio social. Nesse momento hipotético, os indivíduos estariam desvinculados de seus projetos de vida pessoal, isto é, não poderiam conhecer qual o estado econômico, cultural ou político em que estão inseridos na vida social. Suas posições morais, filosóficas ou religiosas não podem influenciar a deliberação na posição original, uma vez que comprometeriam o seu resultado final, desvirtuando o conteúdo essencialmente político dos princípios de justiça.
A tese do autor é focada no desenvolvimento das condições necessárias para celebrar o acordo social, consistente na escolha dos princípios de justiça para orientar as principais instituições sociais em uma sociedade plural. Rawls deixa claro que a escolha de princípios que abarquem a pluralidade social só é factível considerando-se uma concepção política de justiça e não uma doutrina moral abrangente. Para construir essas condições, parte-se da ideia hipotética da “posição original” (original position).
A posição original seria um arranjo inicial apropriado para que o acordo social fosse celebrado em uma situação de equidade entre os cidadãos. Trata-se de uma situação imaginada em que as pessoas estariam em condição de igualdade para deliberarem. O autor define as pessoas como sendo cidadãos cooperativos da sociedade, o que seria um pressuposto da posição original. Os cidadãos devem ser livres e iguais em virtude de suas capacidades morais e das faculdades da razão. O fato de terem essas faculdades no grau mínimo necessário para serem membros plenamente cooperativos da sociedade é o que as tornam iguais[8]. Rawls, em Liberalismo, delineia uma concepção política de pessoa como resposta às possíveis lacunas que foram deixadas em Teoria. Procura responder à questão de como as partes, na posição original, poderiam aceitar o conteúdo dos princípios de justiça e a relação de precedência do primeiro princípio sobre o segundo[9]. Para tanto, desenvolve uma concepção política de pessoa, fundamental para explicar o comportamento das partes no momento de deliberação do acordo hipotético.
Essa concepção política de pessoa está ancorada na ideia de que os cidadãos são representados como pessoas dotadas de duas faculdades morais – a capacidade de ter senso de justiça e a capacidade de ter uma concepção sobre o bem –, e que são livres em três aspectos: (I) os cidadãos concebem a si mesmos como indivíduos que têm a faculdade moral de ter uma concepção do bem; (II) consideram-se também no direito de fazer reivindicações válidas a suas instituições de modo a promover suas concepções do bem, desde que essas concepções estejam incluídas no leque permitido pela concepção pública de justiça; (III) os cidadãos devem ser capazes de assumir responsabilidades pelos seus objetivos (RAWLS, 1993, p. 29-35).
Nesse ponto, é importante a distinção tecida por Rawls entre duas categorias de concepção de bem – uma concepção restrita e uma concepção plena. Na concepção restrita de bem estão incluídos os interesses básicos dos indivíduos para o desenvolvimento de seus planos de vida. Cada indivíduo racional deseja certa quantidade mínima de liberdades e de recursos econômicos que constituem requisitos para realizarem seus planos de vida. A ideia de uma concepção restrita de bem desempenha um papel fundamental no momento da posição original. Isso porque, nesse momento hipotético, os indivíduos agem com capacidade racional na escolha dos princípios de justiça. Mas se não conhecem as suas posições na sociedade, os seus verdadeiros interesses econômicos ou aspirações políticas, como podem ser incentivados a deliberar e quais seriam os critérios para a escolha dos princípios. Rawls, então, assume que as partes possuem uma concepção de bem de acordo com a teoria restrita do bem, segundo a qual, cada indivíduo possui interesse em preservar recursos básicos e liberdades mínimas para a vida em sociedade. Dotadas de uma concepção restrita de bem, as partes podem deliberar sobre princípios básicos de justiça. No momento da posição original, portanto, somente é assegurada às partes uma concepção restrita de bem que condiciona a escolha racional dos princípios a uma estrutura primária de bens (direitos sobre distribuição de recursos e liberdades mínimas). A concepção restrita de bem procura dar conta do pluralismo resultante de vontades diferenciadas, isto é, de distintos planos de vida presentes na sociedade. Ao reduzir a concepção de bem a um mínimo necessário para a deliberação no momento inicial, Rawls pretende ressaltar justamente o valor das concepções plenas de bem. Os indivíduos sabem que possuem planos de vida particulares, mas na posição original o conteúdo específico desses planos não pode influenciar a sua decisão. Então, somente lhes resta escolher princípios de justiça que possam preservar o livre desenvolvimento dos seus respectivos planos de vida na sociedade formada após o contrato social original. Ou seja, a despeito de não conhecerem os seus desejos e interesses pessoais – isto é, a sua concepção plena de bem –, as partes na posição original sabem que possuem um projeto de vida particular, e querem preservar a possibilidade de realizarem esse projeto. Somente por meio de liberdades básicas e de bens primários fundamentais as partes podem ter a certeza de que seus projetos de vida, sejam quais forem eles, estarão garantidos frente aos projetos de vida dos demais indivíduos[10].
As pessoas sujeitas à deliberação para a confecção do acordo social estariam submetidas ao que o autor chamou de “véu da ignorância” (veil of ignorance). É por meio desse artifício que se alcança a igualdade entre as partes deliberantes. O véu tem por finalidade retirar qualquer conhecimento desnecessário das partes, tanto com relação a elas mesmas como com relação aos demais participantes, que tenda a dar origem a preconceitos ou que denotem desigualdades entre elas. As informações presentes são somente aquelas necessárias para que a deliberação transcorra em um nível racional[11]. Nesse passo, as partes ficam posicionadas simetricamente umas em relação às outras de maneira que nenhuma delas tenha qualquer tipo de vantagem em relação à outra. O autor destaca com relação à posição original que não parece haver forma melhor de elaborar uma concepção política de justiça para a estrutura básica a partir da ideia fundamental de sociedade como um sistema permanente e equitativo de cooperação entre cidadãos considerados livres e iguais[12]. Nessas condições de equidade é que se escolhem os princípios de justiça orientadores das principais instituições políticas e sociais e que se alcança o consenso sobreposto.
Como explica Rawls, o véu da ignorância desempenha um papel fundamental na manutenção da estabilidade de uma concepção política de justiça. Assim como a filosofia moral kantiana pretende retirar do sujeito moral autônomo quaisquer valores que possam influenciar na escolha de suas decisões individuais – em Kant esse objetivo é alcançado por meio da construção da ideia de Imperativo Categórico –, a teoria política rawlsiana concebe o véu da ignorância como forma de legitimar moralmente a formulação dos princípios de justiça. A ideia essencial é garantir as condições de justiça procedimental, sobretudo a igualdade e liberdade, como meio para que a deliberação possa alcançar um resultado substantivo justo. Nessas condições de equidade é que se escolhem os princípios de justiça orientadores das principais instituições políticas e sociais e que se alcança o consenso sobreposto.
II. 2. A Ideia de Consenso Sobreposto e os Limites da Razão Pública
O consenso sobreposto designa o modo como as diversas doutrinas razoáveis incompatíveis entre si podem alcançar um acordo razoável acerca da concepção política de justiça. É com base no consenso sobreposto que a sociedade democrática bem-ordenada de justiça como equidade pode estabelecer e preservar a unidade e a estabilidade, considerando o pluralismo razoável que é inerente a essa sociedade[13]. Em razão disso que o consenso sobreposto trata da concepção política de justiça sem se estender às questões morais abrangentes. A ideia de consenso sobreposto é inerente às condições estabelecidas pelo liberalismo político. Ora, se o liberalismo político pressupõe uma sociedade formada por diversas doutrinas abrangentes, cada qual expoente de uma concepção moral distinta e racional, tanto quanto se pode verificar em função de uma concepção política de justiça, é natural que esse pluralismo seja característica fundamental da sociedade bem-ordenada.
É certo, contudo, que o consenso deve ser justificado por aquilo que o autor chamou de “razão pública” (public reason). Ou seja, é a razão pública um limitador na escolha dos princípios de justiça e princípios constitucionais essenciais[14]. O autor concebe a ideia de razão pública como um dos fundamentos para a ordem constitucional democrática (RAWLS, 2001, p. 173):
(...) [a razão pública] explicita no nível mais profundo os valores morais e políticos que devem determinar a relação de um governo democrático constitucional com os seus cidadãos e a relação destes entre si. Aqueles que rejeitam a democracia constitucional com o seu critério de reciprocidade rejeitarão, naturalmente, a ideia de razão pública.
Rawls ainda elenca os seguintes aspectos para a razão pública (RAWLS, 2001, p. 173):
(1) As questões políticas fundamentais às quais se aplica; (2) as pessoas a quem se aplica (funcionários do governo e candidatos a cargo público); (3) seu conteúdo como dado por uma família de concepções políticas razoáveis de justiça; (4) a aplicação dessas concepções em discussão de normas coercitivas a serem decretadas na forma da lei legítima para um povo democrático; (5) a verificação pelos cidadãos de que os princípios derivados das suas concepções de justiça satisfazem o critério de reciprocidade.
O objeto da razão pública é bem delimitado por Rawls, compreendendo os elementos constitucionais essenciais – tais como os direitos e as liberdades básicas – e as questões de justiça básica – distribuição de recursos e divisão de deveres na sociedade. A partir dessa delimitação, o projeto rawlsiano pretende retirar do debate sobre estas questões fundamentais à ordem democrática qualquer argumento embasado unicamente em uma doutrina abrangente particular. É importante observar que Rawls desvenda com a ideia de razão pública os limites para a deliberação sobre os problemas mais relevantes da democracia, restringindo o campo dos possíveis argumentos a serem utilizados pelos cidadãos. Somente valores políticos devem resolver questões fundamentais, tais como liberdades e direitos constitucionais. O conteúdo da razão pública é formado, portanto, pela própria concepção política de justiça, na medida em que especifica certos direitos e liberdades fundamentais. É essencial que uma concepção política liberal inclua, além de seus princípios de justiça, princípios de argumentação e critérios para a exposição de informações pertinentes às questões políticas. São diretrizes para que a deliberação sobre questões políticas possa ser direcionada sempre aos princípios de justiça. Portanto, os valores políticos liberais podem, segundo Rawls , ser reunidos em duas categorias (RAWLS, 1993, p. 224):
a. The first kind—the values of political justice—fall under the principles of justice for the basic structure: the values of equal political and civil liberty; equality of opportunity; the values of social equality and economic reciprocity; and let us add also values of the common good as well as the various necessary conditions for all these values. b. The second kind of political values—the values of public reason—fall under the guidelines for public inquiry, which make that inquiry free and public. Also included here are such political virtues as reasonableness and a readiness to honor the (moral) duty of civility, which as virtues of citizens help to make possible reasoned public discussion of political questions.
O projeto deliberativo rawlsiano é, por assim dizer, um projeto delimitado pela ideia de razão pública, na medida em que os temas constitucionais e as questões básicas de justiça somente podem ser discutidos tendo como pano de fundo os valores políticos que podem ser diretamente resguardados pela razão pública[15][16].
O que define a escolha justa dos princípios é exatamente o procedimento marcado por uma situação de equidade entre as partes, sem nenhum critério prévio, conforme descrito na posição original. A autonomia das partes deliberantes, representantes dos cidadãos, é configurada na ausência de determinação externas ou estabelecimentos de princípios prévios à deliberação. O autor diferencia autonomia racional de autonomia plena. A autonomia racional é ocupada pelos representantes dos cidadãos em situação de igualdade na posição original. A autonomia plena aparece em um segundo momento e se refere aos cidadãos submetidos aos princípios escolhidos por eles mesmos. Essa submissão é natural e decorre do reconhecimento dos princípios de justiça escolhidos. Com base nessa diferenciação entre duas categorias de autonomia é possível identificar dois momentos distintos na estrutura da teoria da justiça rawlsiana. O primeiro momento é anterior aos princípios de justiça, o qual precede certos conhecimentos dos indivíduos sobre suas condições e interesses pessoais, e sobre o qual Rawls estabelece o consenso sobreposto para a escolha dos princípios de justiça. No segundo momento, com os princípios já estabelecidos, a vida política em sociedade é guiada pela ideia de razão pública. Ou seja, já em sociedade, os cidadãos somente podem defender seus projetos políticos por meio de argumentos legitimamente reconhecidos pelos demais, conforme os critérios estabelecidos pela razão pública.
II. 3. Os Princípios de Justiça e a Concepção de Democracia Substantiva
Em Liberalismo, Rawls pretende responder a duas questões fundamentais: (I) procura identificar qual a concepção de justiça mais adequada para especificar os termos equitativos de cooperação entre cidadãos livres e iguais, e membros cooperativos de uma sociedade durante a vida toda; (II) considerando o fato do pluralismo razoável, é preciso verificar quais seriam os fundamentos da tolerância entre doutrinas abrangentes razoáveis.
Para responder à primeira pergunta, é preciso que a justiça como equidade identifique os princípios de justiça que possam servir como diretrizes para a forma como as instituições básicas devem realizar os valores de liberdade e igualdade. É preciso, assim, mostrar como os princípios de justiça propostos são mais aptos a organizar a estrutura básica da sociedade em função dos valores da liberdade e igualdade. Os dois princípios que, segundo Rawls, podem expressar de forma mais adequada o conteúdo da justiça e garantir a cooperação social são (RAWLS, 1993, p. 5-6):
a. Each person has an equal claim to a fully adequate scheme of equal basic rights and liberties, which scheme is compatible with the same scheme for all; and in this scheme the equal political liberties, and only those liberties, are to be guaranteed their fair value. b. Social and economic inequalities are to satisfy two conditions: first, they are to be attached to positions and offices open to all under conditions of fair equality of opportunity; and second, they are to be to the greatest benefit of the least advantaged members of society[17].
O primeiro princípio é priorizado em relação ao segundo e estabelece liberdades essenciais ao indivíduo. Essas liberdades não são absolutas e podem ser cotejadas com outras liberdades essenciais. Até pela ordem dos princípios, percebe-se que, garantidas as liberdades básicas igualmente para todos, admite-se desigualdades desde que vinculadas à posição e cargos abertos a todos, e desde que traga maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade. Rawls elenca as liberdades fundamentais como sendo a liberdade de pensamento e consciência; liberdades políticas; liberdade de associação; integridade física e psicológica da pessoa; direitos e liberdades abarcados pelo Estado de Direito. É justamente nas liberdades fundamentais que se incluem as necessidades básicas materiais das pessoas que garantem a sua autonomia.
O segundo princípio trata da justiça distributiva por meio da igualdade de oportunidades para todos. Rawls o chama de princípio da diferença. Tendo como ponto de partida a igualdade, o princípio da diferença requer que qualquer forma de desigualdade estabelecida ou referendada por uma ação estatal deva promover a máxima vantagem dos menos favorecidos[18]. Por ser uma teoria voltada para a estrutura básica da sociedade e suas principais instituições, os princípios fundamentais devem estar previstos na Constituição, por ser a mais importante das instituições.
São esses, portanto, os princípios de justiça como equidade que formam o conteúdo de uma concepção política de justiça. Essa concepção tem três características centrais: (I) é aplicada à estrutura básica de uma sociedade, entendida como o conjunto de instituições políticas, sociais e econômicas que se relacionam entre si e compõem uma democracia constitucional; (II) a concepção política não se confunde com nenhuma doutrina abrangente, mas, pelo contrário, ela expressa um módulo – uma concepção autossustentável – que se encaixa em várias doutrinas abrangentes razoáveis, em convívio na sociedade e por ela reguladas; (III) o seu conteúdo é composto por certas ideias fundamentais, vistas como implícitas na cultura política pública de uma sociedade, que compreende as instituições políticas de um regime constitucional e as interpretações sobre essas instituições (RAWLS, 1993, p. 11-15).
A deliberação democrática, segundo o projeto rawlsiano, é ancorada, em última análise, nos princípios de justiça como equidade. São estes princípios que formam o conteúdo de uma concepção política de justiça a ser aplicada à estrutura básica da sociedade. E são também esses princípios que devem funcionar como um último grau de justificação para as ações individuais de cidadão autônomos. Nesse sentido, o que confere o caráter democrático à deliberação é a possibilidade de que os cidadãos fundamentem suas ações em termos que possam ser aceitos por outros cidadãos igualmente livres e racionais[19]. Em outras palavras, a deliberação é democrática quando baseada em uma concepção pública de justiça, em que os membros deliberantes são pessoas morais livres e iguais. A questão que se põe é saber como garantir essas condições deliberativas propostas pelo filósofo como um pressuposto do procedimento racional de justificação. O autor responde que, como em um círculo virtuoso, esses mesmos princípios devem servir como base da formação da sociedade e propõe algumas instituições necessárias à estabilidade de uma sociedade bem ordenada, quais sejam (RAWLS, 2011, p. LXV):
a) O financiamento de campanhas eleitorais e formas de assegurar que informações públicas sobre questões de política pública se encontrem acessíveis (VIII, §12-3). A prescrição desses arranjos (e dos que se seguem) é meramente uma indicação daquilo que é necessário para garantir que representantes eleitos e outras autoridades possam ser suficientemente independentes de interesses econômicos e sociais particulares e para proporcionar o conhecimento e as informações com base nos quais políticas públicas possam ser formuladas e avaliadas de forma inteligente por cidadãos que empregam a razão pública. b) Certa igualdade equitativa de oportunidades, em especial com relação à educação e ao treinamento profissional. Sem essas oportunidades, não é possível que as pessoas de todos os segmentos da sociedade participem dos debates da razão pública ou contribuam para as políticas econômicas e sociais. c) Uma distribuição decente de renda e riqueza que satisfaça a terceira condição do liberalismo: todos os cidadãos devem conter os meios polivalentes necessários para capacitá-los a tirar proveito de forma inteligente e efetiva de suas liberdades fundamentais. d) A sociedade entendida como empregador de última instância mediante a estrutura geral ou local de governo e mediante outras políticas sociais e econômicas. Encontrar-se destituído de um sentido de segurança de longo prazo e de oportunidades de trabalho e ocupação que deem satisfação corrói não apenas o sentido de autorrespeito dos cidadãos, como também o de que são membros da sociedade, em vez de se perceberem simplesmente como aprisionados por ela. Esta percepção gera desprezo por si próprio, amargura e ressentimento. e) Garantia de assistência básica à saúde para todos os cidadãos.
Em seguida Rawls afirma que essas instituições são pré-requisitos mínimos de uma sociedade para operacionalizar um procedimento deliberativo delimitado pela razão publica. Ou seja, a ideia de razão pública propõe um modo de caracterizar a estrutura e o conteúdo das bases fundamentais da sociedade que seja apropriado a deliberações políticas.
Com efeito, o modelo de democracia deliberativa trazido pelo autor se caracteriza por ser substantivo uma vez que além de tratar do processo de deliberação, estabelece também princípios substantivos que servem para verificar se o procedimento atingiu um resultado justo. Na verdade, a deliberação serve para indicar a melhor forma de aplicação desses princípios e, por consequência, é por eles restringida. Através de procedimentos deliberativos orientados pela razão pública, os princípios de justiça podem ser aplicados à estrutura básica da sociedade e guiar a interação entre as instituições que a compõe, e a dos cidadãos autônomos com essas instituições básicas.