3 O PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO
A doutrina e a jurisprudência brasileiras, em sua maioria, sustentam a existência de um princípio de supremacia do interesse público sobre o privado implícito no texto constitucional.
Muitas vezes é chamado simplesmente de princípio do interesse público ou princípio da finalidade pública[3], presente tanto na elaboração da lei como na execução em concreto pela administração pública.
Di Pietro (2009, p. 65) preleciona que o princípio surgiu exatamente na época em que o período do primado do individualismo terminava. Em fins do século XIX, a reação ao egocentrismo cedeu lugar à busca da justiça social, numa transformação que modificou os parâmetros da função do Estado, exigindo-lhe um novo perfil no que tange à propriedade e à liberdade dos indivíduos e dele resultava naturalmente a postura de maior interferência. A transformação viera para realçar os interesses públicos que ao Estado cabia resguardar.
Como afirma Carvalho Filho (2010, p. 73), o princípio em debate impõe que se o interesse é público tem que preponderar sobre o interesse privado quando estiverem em conflito. Com efeito, a disciplina social estabelece que seria o caos na organização social se as demandas gerais não suplantassem as individuais.
É claro que a posição de supremacia do Estado não pode alvejar fins despóticos, mas, ao contrário, tem o intuito de proteger e garantir os indivíduos no que concerne aos interesses públicos. Diante disso, é impossível conceber o Estado, nos moldes atuais, que não congregue a necessária autoridade para sobrepor o interesse público aos interesses privados. (CARVALHO FILHO, 2010, p. 74).
3.1 O significado do princípio
No escólio de Mello (2005, p. 60), o princípio denota que o poder público se encontra em situação de autoridade, de comando, relativamente aos particulares, como indispensável condição para gerir interesses públicos postos em confronto. Para o autor, é um princípio geral de direito inerente a qualquer sociedade, constituindo a adequada condição de existência desta última.
O jurista assevera, ademais, que o princípio da supremacia do interesse público é um pressuposto lógico do convívio social, mas não se radica em nenhum dispositivo específico da Constituição da República de 1988, ainda que inúmeros aludam ou impliquem manifestações concretas dele, como os princípios da função social da propriedade, da defesa do consumidor ou do meio ambiente (art. 170, incisos III, V e VI), entre outros.
Para Di Pietro (2010, p. 38) o princípio da supremacia do interesse público é o alicerce funcional do Estado, pois, além de mostrar-se inserido no próprio conceito de serviço público, também constitui fundamento ou base tanto para a atividade de fomento, como para o poder de polícia do Estado e para a atividade intervencionista estatal no domínio econômico, ou seja, está presente em todas as funções administrativas.
A jurista sustenta que a negativa da existência do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado equivale à negativa da própria finalidade do Estado, na defesa dos interesses e do bem-estar da sociedade.
Já Borges, citada por França (2010, p. 162), aponta a supremacia do interesse público sobre o interesse privado como um dos pilares básicos do direito administrativo, ao lado da indisponibilidade do interesse público, considerando-os como pilares das prerrogativas e das sujeições da administração pública. Entende não haver contraposição entre interesse público e interesses individuais, já que o interesse é público quando representa um verdadeiro somatório de interesses dos indivíduos que nele encontram a projeção de suas próprias aspirações. Defende, ainda, a aplicação do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado como necessidade de se manter o mínimo de estabilidade e ordem necessárias para a vida em sociedade, assinalando que para que haja o sacrifício de direitos de um particular ante o interesse da coletividade, imprescindível é a previsão legal e a motivação fundamentada, resolvendo-se tal sacrifício em justa indenização.
Nohara (2010, p. 130-131) ensina que a supremacia do interesse público é pressuposto que alicerça todas as disciplinas do direito público que partem de uma relação vertical do Estado com os cidadãos, ao contrário do direito privado, no qual, em regra, as relações jurídicas são analisadas da perspectiva da horizontalidade, isto é, da igualdade entre sujeitos e interesses particulares.
A jurista prossegue aduzindo que a administração pública deve ter prerrogativas que lhe garantam a autoridade necessária para a consecução do interesse público. Ao mesmo tempo, o cidadão necessita ter garantias de observância de seus direitos fundamentais contra os abusos de Poder Público. Ou seja, o Estado, que tem como finalidade precípua a defesa do interesse público, deve ordenar toda a sua ação para o atendimento dos interesses da coletividade em busca do bem-estar social e, por isso, deve deter poderes que lhe assegurem a obediência de seus atos.
Relembre-se que por força dos princípios da legalidade e da finalidade, tem o administrador público o dever de praticar somente atos com finalidade pública, sob pena de incorrer em desvio de finalidade, uma das mais insidiosas modalidades de abuso de poder. (FRANÇA, 2010, p. 156).
Feitas essas considerações, cumpre destacar que o princípio da supremacia do interesse público tem sofrido duras críticas de alguns doutrinadores modernos, em que pese ser um dos pilares do direito administrativo, demandando a sua observância não apenas pela coletividade – titular do interesse público -, mas principalmente pelo administrador.
3.2 A crítica e a tentativa (frustrada) de desconstrução do princípio
O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado manteve-se incólume até o advento da Constituição da República de 1988, quando estudiosos do tema começaram a rediscuti-lo.
Renomados juristas sustentam que as bases de um Estado Democrático de Direito tornam imprescindível a desconstituição do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado.
Critica-se o princípio, em seu clássico entendimento, sob o fundamento de ofensa ao sistema jurídico brasileiro, que se daria por meio do desrespeito aos direitos fundamentais que seriam desconsiderados a priori, quando confrontados com o interesse público.
Nesse sentido, Canotilho, citado por Daniel Sarmento, leciona:
Na verdade, parece-nos que a questão das restrições aos direitos fundamentais justificadas com base no interesse público não pode ser enfrentada com soluções simplistas, como a baseada na suposta supremacia do interesse público sobre o particular. Elas demandam um exame mais complexo, que leve em consideração toda a constelação de limites às restrições de direitos fundamentais, que vem sendo desenvolvida pela doutrina. Assim, é preciso primeiramente recordar que os limites aos direitos fundamentais podem apresentar-se, basicamente, sob três formas diferentes: a) podem estar estabelecidos diretamente na própria Constituição; b) podem estar autorizados pela Constituição, quando esta prevê a edição de lei restritiva; e c) podem, finalmente, decorrer de restrições não expressamente referidas no texto constitucional. (CANOTILHO apud SARMENTO, 2007, p. 91).
Ávila, citado por França (2010, p. 160), destaca que a supremacia do interesse público não pode justificar a análise pela administração pública do comportamento de um particular, já que, no direito pátrio, sequer existe como norma-princípio[4]. Ou seja, a administração pública não pode impor qualquer restrição ou obrigação aos particulares com base em algo que não existe. A única ideia apta a explicar a relação entre interesses públicos e particulares, ou entre Estado e cidadão, é a ponderação entre interesses reciprocamente relacionados, fundamentada na sistematização das normas constitucionais. Salienta, assim, a necessidade de se realizar uma ponderação dos bens jurídicos envolvidos, com menção a alguns interesses privados que não podem ser superados pelo interesse público, a exemplo da preservação do sigilo.
Na mesma linha, Binenbojm (2005) entende que o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse particular é um dos paradigmas em crise no direito administrativo brasileiro. O autor entende haver uma inconsistência teórica do mencionado princípio diante de uma sistemática constitucional cidadã, comprometida com a proteção e a promoção dos direitos individuais de maneira ponderada e compatível com a realização das necessidades e aspirações da coletividade como um todo.
Sustenta, dessa forma, o que o direito administrativo não tem mais que ser explicado a partir de um postulado de supremacia, mas de proporcionalidade. Critica diversos posicionamentos doutrinários, como o de Celso Antônio Bandeira de Mello, Hely Lopes Meirelles, Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Fábio Medina Osório, e, após negar a existência do princípio da supremacia do interesse público, propõe que sejam percorridas as etapas de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito para se encontrar o ponto ideal de justa ponderação entre direitos individuais e metas coletivas.
Ainda, Sarmento, citado por França (2010, p. 160-161), destaca que a prevalência deve ser aferida mediante a ponderação equilibrada dos interesses públicos e dos direitos fundamentais, pautada pelo princípio da proporcionalidade, mas modulada por alguns parâmetros substantivos relevantes, baseando-se numa concepção personalista.
Para o doutrinador, a Constituição da República de 1988 adota a teoria personalista segundo a qual a pessoa humana é o centro de convergência de todas as necessidades, em situação de primazia sobre o Estado, afastando qualquer possibilidade de se falar em supremacia do interesse público sobre o particular, em que pese não ser absoluta tal primazia atribuída aos direitos individuais em face dos interesses da coletividade. Assinala que, em casos de conflitos entre os princípios constitucionais, é possível haver restrições a direitos fundamentais, observadas em cada caso concreto, por meio de ponderação de interesses realizada pelo poder judiciário ou pela administração pública.
Garante, além disso, que a colisão de interesses constitucionalmente reconhecidos vem sendo solucionada através da regra da proporcionalidade, considerado importantíssimo parâmetro para aferição da constitucionalidade das restrições aos direitos fundamentais. Concorda, ademais, que a administração pública deve perseguir interesses públicos afetos à coletividade que devem prevalecer sobre os direitos fundamentais dos indivíduos. Por fim, conclui que a postura cívica que interessa ao Estado Democrático de Direito é a do “patriotismo constitucional[5]” que tem como pressuposto a consolidação de uma cultura de direitos humanos.
Acrescente-se que a mitigação do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é defendida também por Justen Filho, citado por França (2010, p. 163), ao entender que o núcleo do direito administrativo não reside no interesse público, mas sim nos direitos fundamentais. O autor leciona que a atividade administrativa tem de se nortear para o alcance da democracia e do respeito aos direitos fundamentais, reconhecendo que o interesse da maioria merece maior proteção do que o interesse de uma quantidade menor de particulares. Afirma que o núcleo da distinção entre o público e o privado apresenta natureza ética, relacionando-se diretamente com a realização de princípios e valores fundamentais, especialmente com a dignidade da pessoa humana. Defende, ainda, a tese da constitucionalização do direito administrativo, na medida em que consiste na impregnação de toda a atividade administrativa com os valores e princípios constitucionalmente consagrados.
Derradeiramente, Moreira Neto, citado por França (2010, p. 166), assevera que o princípio da supremacia do interesse público não mais se sustenta porque, no Estado Democrático de Direito, estabeleceu-se o primado da pessoa humana, que se expressa nas liberdades, direitos e garantias fundamentais, podendo ser apenas excepcionalmente temperado pela previsão de um específico interesse público que justifique limitar ou condicionar essas expressões indissociáveis das pessoas.
Destaque-se, contudo, a advertência de Sarmento (2007) de que a desvalorização total dos interesses públicos diante dos particulares pode conduzir à anarquia e ao caos geral, inviabilizando qualquer possibilidade de regulação coativa da vida humana em comum.
Menciona-se, por outro lado, Borges que propõe a reconstrução do princípio em debate, afirmando que:
Não se trata de desconstruir a supremacia do interesse público. Bem ao contrário, na atual conjuntura nacional, o que é preciso, mais do que nunca, é fazer respeitá-la, é integrá-la na defesa dos luminosos objetivos fundamentais de nossa Constituição, expressos em seu monumental artigo 3º. É preciso não confundir a supremacia do interesse público – alicerce das estruturas democráticas, pilar do regime jurídico-administrativo – com as suas manipulações e desvirtuamentos em prol do autoritarismo retrógrado e reacionário de certas autoridades administrativas. O problema, pois, não é do princípio: é, antes, de sua aplicação prática. Trata-se, isto sim, de reconstruir a noção, situá-la devidamente dentro do contexto constitucional, para que possa ser adequadamente defendida e aplicada pelo Poder Judiciário, no exercício de seu inafastável controle. Grifos no original. (BORGES, 2007, p. 3).
Em que pesem as relevantes críticas doutrinárias, o princípio da supremacia do interesse público, ao contrário do que se defende, não coloca em risco os direitos fundamentais do homem. Pelo contrário, ele os protege.
3.3 A regra da proporcionalidade como forma de satisfação do princípio da supremacia do interesse público quando em conflito com o interesse privado
Os ataques ao princípio da supremacia do interesse público baseiam-se na errônea interpretação de seu significado, entendendo-o com indevida incidência geral e absoluta. Ou seja, se houvesse prevalência do interesse público em qualquer situação de conflito com interesses particulares, não mais subsistiriam os direitos individuais. Por isso, a necessidade de imposição de limitações aos direitos individuais pelo ordenamento jurídico, a fim de assegurar que seu exercício não acarrete prejuízo a outros particulares e à coletividade. (DI PIETRO, 2010, p. 166).
Di Pietro (2010, p. 166) relembra que o princípio desenvolveu-se com o Estado Social de Direito e não como um interesse público único. Veio para proteger interesses das diversas camadas sociais e, paralelamente a esse princípio, nasceram os direitos sociais e econômicos. Por essa razão, o direito administrativo se caracteriza pelo binômio autoridade-liberdade. A administração pública tem que ter prerrogativas que lhe garantam a autoridade necessária para a consecução do interesse público e, ao mesmo tempo, o cidadão tem que ter garantias de observância de seus direitos fundamentais contra os abusos de poder.
O referido binômio – autoridade e liberdade – informa o direito administrativo e deve ser considerado em equilíbrio, para que nenhuma das esferas, pública ou privada, receba tratamento desigual e/ou sofra prejuízo indevido.
A doutrinadora ressalta, além disso, não haver dúvidas de que qualquer conceito jurídico indeterminado, ao ser aplicado em casos concretos, exige a ponderação de interesses, a avaliação de custo-benefício e a utilização de critérios de interpretação, na tentativa de diminuir ou mesmo de acabar com a indeterminação e encontrar a solução mais adequada. Na mesma esteira, Carvalho Filho (2010, p. 81) assegura que a ponderação de valores é imprescindível no caso dos conceitos jurídicos indeterminados.
Igualmente, Medauar, citada por França (2010, p. 128), adverte que o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse particular serve como fundamento de vários institutos e normas de direito administrativo, inclusive das prerrogativas e decisões da administração pública. Assevera, no entanto, que tal princípio vem tendo sua aplicação atenuada pela ideia de ponderação dos interesses presentes numa determinada circunstância, como método a ser utilizado pela administração pública para evitar sacrifícios desnecessários de interesses. De acordo com a autora, a regra da proporcionalidade também matiza o sentido absoluto do preceito, pois implica, entre outras decorrências, a busca da providência menos gravosa, na obtenção de um resultado.
Com efeito, a administração pública deve proceder com cautela na aplicação do princípio da supremacia do interesse público, pois ao mesmo tempo em que a Constituição da República de 1988 lhe outorgou prerrogativas para atingir o interesse público, também assegurou aos cidadãos a garantia da observância de seus direitos fundamentais contra o abuso de poder.
Assim sendo, em caso de conflito entre interesse público e interesse individual, cumpre ao aplicador realizar um percurso de ponderação dos bens jurídicos envolvidos, fazendo uso da regra da proporcionalidade, conforme será explicitado a seguir.
Note-se que tal percurso apenas é possível porque os direitos fundamentais não possuem caráter absoluto. São dotados de relatividade, razão pela qual não está afastada a possibilidade de entrarem em confronto. Devido a isso, é que esses direitos são limitados reciprocamente para que possam conviver em harmonia, como também possam ser limitados por bens constitucionalmente protegidos.
Contudo, ressalte-se que não se pretende fazer uma análise detida e aprofundada sobre o assunto, no entanto, a compreensão da doutrina de Robert Alexy sobre a lei da colisão e a regra da proporcionalidade é essencial para a conclusão deste trabalho.
3.3.1 Breve explicação sobre a lei da colisão e a regra da proporcionalidade
A doutrina de Robert Alexy, trazida por Virgílio Afonso da Silva (2002, p. 25), divide as normas jurídicas em regras e princípios, segundo a sua estrutura e forma de aplicação. As regras expressam deveres definitivos e são aplicadas por meio de subsunção. Já os princípios expressam deveres prima facie, cujo conteúdo definitivo somente é fixado após o sopesamento com princípios colidentes.
Os princípios são, portanto, normas que obrigam a realização de algo na maior medida possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas, constituindo mandamentos de otimização. (ALEXY, 2008, p. 99).
O fato de um princípio ser aplicado em um caso concreto não significa um resultado definitivo para o caso. Por isso, os princípios não possuem conteúdo de determinação, ou seja, suas razões são determinadas pelas circunstâncias do caso concreto, podendo ser substituídas por outras razões opostas.
Portanto, quando dois princípios entram em conflito, um deles terá que ceder ao outro, não significando que o princípio desprezado tenha que ser declarado inválido ou que tenha que ser introduzida uma cláusula de exceção. A solução reside no fato de que, de acordo com determinadas circunstâncias, analisadas no caso concreto, um princípio deve preceder ao outro, ou seja, deve haver uma ponderação entre ambos.
Diante disso, Alexy preleciona:
Quem efetua ponderações no direito pressupõe que as normas, entre as quais é ponderado, têm a estrutura de princípios e quem classifica normas como princípios deve chegar a ponderações. O litígio sobre a teoria dos princípios é, com isso, essencialmente, um litígio sobre a ponderação. (ALEXY, 2007, p.64)
A estrutura das soluções de colisões é apresentada por Alexy através da lei da colisão, e o objeto de fundamentação é o resultado da ponderação.
Para ilustrar, Alexy cita como exemplo o caso da incapacidade processual no qual a realização de audiência oral em desfavor de um acusado que corre risco de sofrer um infarto, gera um conflito entre o dever do Estado de garantir a efetiva aplicação do direito penal e a proteção à vida e à integridade do acusado. Nesse caso, a solução não deve ser dada na dimensão da validade, como ocorre com as regras, mas sim na dimensão de peso, ou seja, através da ponderação dos interesses opostos no caso concreto. (ALEXY, 2008, p. 89).
Destarte, quando um princípio limita a possibilidade jurídica de cumprimento do outro, deve-se, analisadas as circunstâncias do caso concreto, estabelecer uma relação de precedência condicionada[6] entre ambos, ou seja, devem ser indicadas as condições necessárias para que um princípio seja aplicado em detrimento de outro.
O princípio que tem precedência restringe as possibilidades jurídicas de satisfação do princípio desprezado, mas essa relação de precedência não é definitiva, podendo ser invertida se as condições forem modificadas. (ALEXY, 2009, p. 164).
Assim sendo, a lei da colisão evidencia que a observância das circunstâncias do caso concreto é conditio sine qua non para a ponderação, não existindo, pois, relações de precedência absolutas entre os princípios. Com efeito, Alexy defende que a lei da colisão é válida para solucionar todas as colisões, pois formula um enunciado de preferência condicionada entre os princípios.
A formulação desses enunciados é fundamentada por meio da ponderação e a caracterização dos princípios como mandamentos de otimização faz com que eles ordenem “que algo seja realizado em medida tão alta quanto possível relativamente às possibilidades fáticas e jurídicas.” (ALEXY, 2009, p. 185).
Destarte, eventual conflito entre princípios será resolvido com o sopesamento entre os interesses colidentes. Tal sopesamento tem por objetivo definir qual dos interesses que, embora abstratamente estejam no mesmo nível, tem maior peso no caso concreto. (ALEXY, 2008, p. 95).
Nesse contexto, Alexy afirma que a ideia de otimização é expressa pelas três sub-regras que compõem a proporcionalidade, quais sejam: da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, sendo que esta última corresponde à ponderação.
Somente será adequado o meio capaz de alcançar os resultados pretendidos, como também o meio pela qual a realização de um objetivo é promovida, ainda que o objetivo não seja completamente realizado. Já o critério da necessidade exige que não exista nenhum meio que possa alcançar resultado semelhante de modo menos gravoso a um direito fundamental. (CARVALHO, 2007, p. 11).
A adequação e a necessidade são critérios que levam em consideração as possibilidades fáticas, são questões de provas e dados técnicos. Não tratam de ponderação, mas buscam evitar restrições desnecessárias a direitos fundamentais. (ALEXY, 2007, p. 132).
No entanto, se a medida que busca realizar direito fundamental não pode ser substituída por outra não restritiva, ou menos restritiva, passando pelos testes da adequação e da necessidade, deve-se realizar a ponderação, buscando otimizar a restrição de direitos fundamentais, tendo em vista as possibilidades jurídicas. (ALEXY, 2007, p. 132).
Faz-se necessário, ainda, um terceiro exame, o exame da proporcionalidade em sentido estrito, que consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva. (SILVA, 2002, p. 24).
A ponderação deve se realizar por meio de três fases sucessivas. Num primeiro momento, trata-se de identificar os direitos fundamentais em conflito. Em seguida, deve-se atribuir a cada um deles o devido peso ou importância, tendo em vista as circunstâncias do caso, formulando argumentos jurídicos em favor de cada um dos interesses envolvidos. Por último, deve-se decidir sobre a prevalência de um sobre o outro. (SANTIAGO apud CARVALHO, 2007, p. 12).
Silva (2002, p. 3), elucidando os ensinamentos de Alexy, informa que a regra da proporcionalidade é uma regra de interpretação e aplicação do direito, empregada especialmente nos casos em que um ato estatal, destinado a promover a realização de um direito fundamental ou de um interesse coletivo, implica a restrição de outro ou de outros direitos fundamentais. Seu objetivo é fazer com que nenhuma restrição a direitos fundamentais tome dimensões desproporcionais. É uma restrição às restrições.
Ademais, Silva (2002, p. 24) ressalta, com propriedade, que tanto a doutrina quanto a jurisprudência confundem proporcionalidade com razoabilidade. E mais, o Supremo Tribunal Federal, ao aplicar a regra da proporcionalidade, não tem percorrido as sub-regras de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, não realizando nenhuma referência a algum processo racional estruturado de controle da proporcionalidade do ato questionado, e nem mesmo um real cotejo entre os fins almejados e os meios utilizados.
Feitas essas considerações, passa-se a análise da aplicação da regra da proporcionalidade à supremacia do interesse público quando em conflito com o interesse particular.
3.3.2 A aplicação da regra da proporcionalidade ao princípio da supremacia do interesse público quando em conflito com o interesse particular.
Como visto, o aplicador/intérprete, ao decidir os conflitos deve, antes de tudo, ponderar os interesses envolvidos e utilizar a regra da proporcionalidade em todas as suas fases, para atingir uma solução justa. Ao fazer esse percurso de ponderação, um interesse será preterido, entretanto sua importância não será desmerecida. A solução é do caso analisado, e somente a ele será aplicado devido às circunstâncias por ele apresentadas. Em outro caso, a predileção poderá ser inversa.
Note-se, ainda, que a exigência da regra da proporcionalidade se faz presente na aplicação de qualquer conceito jurídico indeterminado e atua como forma de satisfação dos princípios em conflito, na medida em que permite, na análise de cada caso, a ponderação entre os interesses evolvidos.
Releve-se, outrossim, que a doutrina é firme quanto à inexistência de hierarquia entre os princípios, ao menos no plano da abstração. Pode-se falar que alguns princípios galgam de maior importância que outros, mas tal premissa somente poderá ser afirmada diante de um caso concreto, onde haja conflito entre eles e que apenas um possa ser aplicado. A escolha não poderá ficar ao livre arbítrio do intérprete/aplicador, que deverá partir de uma análise complexa e apurada, atentando para todas as circunstâncias que particularizam as situações.
Como exemplo de aplicação da regra da proporcionalidade, cumpre trazer à baila o julgado do Supremo Tribunal Federal sobre exame de DNA em investigações de paternidade sem autorização do réu. Discutiu-se sobre o direito do menor à identidade e o direito à incolumidade física do réu. Confira-se o voto do Ministro Francisco Resek no julgamento do habeas corpus nº. 71373 RS.
Nesta trilha, vale destacar que o direito ao próprio corpo não é absoluto ou ilimitado. Por vezes a incolumidade corporal deve ceder espaço a um interesse preponderante, como no caso da vacinação, em nome da saúde pública. Na disciplina civil da família o corpo é, por vezes, objeto de direitos. Estou em que o princípio da intangibilidade do corpo humano, que protege um interesse privado, deve dar lugar ao direito à identidade, que salvaguarda, em última análise, um interesse também público.
Lembro o impetrante que não existe lei que obrigue a realizar o exame. Haveria, assim, afronta ao artigo 5º - II da CF. Chega a afirmar que sua recusa pode ser interpretada, conforme dispõe o art. 343 - §2º do CPC, como uma confissão (fls. 6). Mas não me parece, ante a ordem jurídica da república neste final de século, que isso frustre a legitimidade vontade do juízo de apurar a vontade real. A lei nº 8.069/90 veda qualquer restrição ao reconhecimento do estado de filiação e é certo que a recusa significará uma restrição a tal reconhecimento. O sacrifício imposto à integridade física do paciente é risível quando confrontado com o interesse do investigante, bem assim a certeza que a prova pericial pode proporcionar ao magistrado. (BRASIL, 1996).
Todavia, ao interesse público, consubstanciado em valores fundamentais como justiça e segurança, deve ser atribuído um peso abstrato inicial superior no processo ponderativo. A justificativa é trazida por Barroso (2007) ao aduzir que deverá o interesse público pautar todas as relações jurídicas e sociais – dos particulares entre si, deles com as pessoas de direito público e destas entre si. O interesse público primário consiste na melhor realização possível, à vista da situação concreta a ser apreciada, da vontade constitucional, dos valores fundamentais que ao intérprete cabe preservar ou promover.
Ademais, se o direito administrativo faz da supremacia do interesse público o fundamento e justificativa para o exercício das chamadas prerrogativas da potestade pública, é para manter o mínimo de estabilidade e ordem necessárias a vida em sociedade. (BORGES, 2007, p. 20).
Não se quer com isso instituir uma hierarquia entre o interesse público e os interesses particulares, restando inviabilizada a aplicação da regra da proporcionalidade e o percurso da ponderação em caso de conflito de interesses. Da mesma forma, a atribuição de um peso abstrato inicial superior aos interesses públicos no processo ponderativo não significa que os mesmos tenham precedência absoluta sobre os interesses particulares.
Trata-se apenas de reconhecer a necessidade, fundamentada nas peculiares características do interesse público, de um ônus argumentativo maior para que os interesses particulares possam, eventualmente, sobrepujá-los.
Nesse sentido, Osório, citado por França (2010, p. 163), defende a existência de várias dimensões em que o interesse público prevalece sobre o interesse privado, e não somente em decisões judiciais proferidas em casos concretos. Para o jurista, essa superioridade decorre dos princípios constitucionais que regem a administração pública e que, reciprocamente implicados, servem como direção teleológica da atuação administrativa.
No entanto, os interesses particulares[7] podem até prevalecer em face do interesse público após o emprego da regra da proporcionalidade, mas para isso serão indispensáveis razões mais fortes do que aquelas que permitiriam a prevalência do interesse público.
Além disso, lembre-se que a utilização da regra da proporcionalidade no princípio da supremacia do interesse público quando em conflito com interesses particulares impede a sua concretização com finalidade diversa, evitando manifestações arbitrárias por parte da administração pública.