2 O MAGISTRADO ENTRE OS AGENTES PÚBLICOS
2.1 Estado e agente
Através da análise do texto constitucional e do grande número de leis enquadráveis dentro da disciplina Direito Administrativo é possível perceber a grande quantidade de atribuições de que é dotado o Estado na atualidade.
No Brasil, em que pese o liberalismo marcante nas décadas anteriores, prevalece o entendimento de que a Constituição da República adotou o modelo de Estado Social, atribuindo ao Estado a prestação de relevantes tarefas.
O Estado, em si, ser fictício, é pessoa jurídica. O Estado é, em verdade, aquilo que seus agentes fazem.
Ao longo dos anos surgiram diversas teoria que tentaram explicar a relação existente entre o Estado e seus agentes
Para a Teoria do Mandato, o agente público era mandatário do Estado. O ente estatal seria desprovido de vontade, sendo a vontade do agente considerada a do próprio Estado. Falhou a teoria, entretanto, por não se tentar encaixar a relação eminentemente de Direito Público num contrato, sabidamente com restrições quanto à capacidade para outorgar o mandato e a responsabilidade do mandante por atos que ultrapassem os poderes repassados[9].
Surgiu, em seguida, a Teoria da Representação, segundo a qual o Estado, assim como um incapaz, é representado pelos seus agentes. Sendo o ente estatal, porém, incapaz, seria inviável imputar-lhe responsabilidade civil. Nesse sentido, somente os agentes responderiam pelos atos do Estado, o que ocasionariam grave insegurança jurídica.[10]
Atualmente prevalece a Teoria do Órgão. O Estado age por meio de órgãos, por intermédio do princípio da imputação: o ato do agente é ato do próprio Estado, sem que haja qualquer outro instrumento de direito privado para regular tal relação. [11]
Assim, de acordo com a Teoria do Órgão e do princípio da imputação, os atos dos agentes públicos são considerados para todos os fins como atos do próprio Estado, com todas as imputações daí decorrentes.
2.2 O juiz como agente do Estado
Conforme já exposto alhures, acolheu a Constituição da República a regra da tripartição das funções estatais. O Estado age por intermédio dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Sendo o Judiciário um dos Poderes do Estado e ainda de acordo com a Teoria do Órgão, os atos dos agentes públicos que exercem a jurisdição são atos que se devem considerar realizados pelo próprio Estado.
Nas palavras de Cretella Júnior, “o ato judicial é, antes de tudo, um ato público, ato de pessoa que exerce o serviço público judiciário”[12].
Em sede doutrinária a nomenclatura usualmente utilizada para designar os indivíduos que prestam serviços para o Estado é genericamente agentes públicos.
Conforme definição de Marçal Justen Filho, agente público “é toda pessoa física que atua como órgão estatal, produzindo ou manifestando a vontade do Estado”[13].
Dentro da classificação dos agentes públicos, os de maior nível são os chamados Agentes Políticos, responsáveis, em linhas gerais, pela execução das diretrizes traçadas pelo Poder Público.[14] Trata-se, em suma, dos agentes públicos de grau mais elevado, com atribuições geralmente fixadas pela própria Constituição da República.
Além destes, são também agentes públicos os particulares em colaboração – como os jurados e os mesários -, os servidores públicos ligados à administração por vínculo de caráter estatutário, os empregados públicos celetistas, e os agentes de fato – assim entendidos os agentes necessários, que atuam em nome da administração, mesmo sem prévio vínculo, em situações de emergência, e os agentes putativos, que agem irregularmente, mas com a aparência de vínculo regular[15].
Discute-se, em nível doutrinário, acerca da caracterização ou não dos Magistrados e Membros do Ministério Público como Agentes Políticos.
José dos Santos Carvalho Filho expõe que:
Alguns autores dão sentido mais amplo a essa categoria, incluindo Magistrados, membros do Ministério Público e membros dos Tribunais de Contas. Com a devida vênia a tais estudiosos, parece-nos que o que caracteriza o agente político não é só o fato de serem mencionados na Constituição, mas sim o de exercerem efetivamente (e não eventualmente) função política, de governo e administração, de comando e, sobretudo, de fixação das estratégias de ação, ou seja, aos agentes políticos é que cabe realmente traças os destinos do país[16].
Na mesma linha de raciocínio, Celso Antônio Bandeira de Mello pontua que:
O vínculo que tais agentes (políticos) entretêm com o Estado não é de natureza profissional, mas de natureza política. Exercem um múnus público. Vale dizer, o que os qualifica para o exercício das correspondentes funções não é a habilitação profissional, a aptidão técnica, mas a qualidade de cidadãos, membros da civitas e, por isto, candidatos passíveis à condução dos destinos da Sociedade[17].
Em sentido contrário, ressaltando as grandes diferenças existentes entre os juízes e os servidores públicos em geral, Alexandra Nery de Oliveira ressalta que:
Não são os juízes servidores públicos, ainda que devam bem servir ao público na função de julgar. São os magistrados agentes políticos do Estado, órgãos do Poder Judiciário, pilares da Democracia, garantias do indivíduo frente ao Poder Público e guardiães da própria legalidade e da harmonia entre os Poderes do Estado.[18]
O Supremo Tribunal Federal segue esta mesma linha, isto é, considera os magistrados como agentes políticos. A esse respeito, confira-se o seguinte julgado:
EMENTA: - Recurso extraordinário. Responsabilidade objetiva. Ação reparatória de dano por ato ilícito. Ilegitimidade de parte passiva. 2. Responsabilidade exclusiva do Estado. A autoridade judiciária não tem responsabilidade civil pelos atos jurisdicionais praticados. Os magistrados enquadram-se na espécie agente político, investidos para o exercício de atribuições constitucionais, sendo dotados de plena liberdade funcional no desempenho de suas funções, com prerrogativas próprias e legislação específica. 3. Ação que deveria ter sido ajuizada contra a Fazenda Estadual - responsável eventual pelos alegados danos causados pela autoridade judicial, ao exercer suas atribuições -, a qual, posteriormente, terá assegurado o direito de regresso contra o magistrado responsável, nas hipóteses de dolo ou culpa. 4. Legitimidade passiva reservada ao Estado. Ausência de responsabilidade concorrente em face dos eventuais prejuízos causados a terceiros pela autoridade julgadora no exercício de suas funções, a teor do art. 37, § 6º, da CF/88. 5. Recurso extraordinário conhecido e provido[19].
Realizando os magistrados atos em nome do Estado, não há como considerá-los em outra categoria jurídica que não a de Agente Públicos, na modalidade Agentes Políticos, razão pela qual é necessária a análise acerca da aplicabilidade ou não das regras de responsabilidade civil previstas no artigo 37, parágrafo 6º da Constituição da República, o que se fará logo adiante.
3 DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NO DIREITO BRASILEIRO
3.1 Noções de Responsabilidade Extracontratual do Estado
Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:
A obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos[20]
A idéia em si da responsabilidade extracontratual do Estado é decorrência lógica do Estado de Direito.
Uma vez editada pelo próprio Estado, a ordem jurídica, em que se estabelecem, através de leis constitucionais e infraconstitucionais, a impossibilidade de alguém lesar o patrimônio de outrem sem ser obrigado a repará-lo, somente se pode dizer efetivamente respeitada esta mesma ordem jurídica se o Estado, ele próprio, também se submeter às referidas leis.
Além de se apresentar como paradigma básico do Estado de Direito, é de se reconhecer a exigência de responsabilização patrimonial do Estado como decorrente também do princípio da isonomia.
Se o Estado age presumidamente em prol da coletividade, não se afigura legítimo que apenas alguns administrados sofram prejuízos em decorrência das atividades que beneficiarão a coletividade.
Nesse sentido, Maria Helena Diniz ressalta ser essencial “uma equânime repartição dos ônus resultantes do evento danoso, evitando que uns suportem prejuízos oriundos de atividades desempenhadas em prol da coletividade”[21].
Apresentada uma breve noção do que vem a ser Responsabilidade Extracontratual do Estado, passemos à análise da evolução histórica do instituto.
3.2 Evolução histórica
A responsabilidade civil do Estado sofreu inúmeras modificações que variavam, no mais das vezes, de acordo com os referenciais políticos dominantes no momento, conforme já salientado em outra passagem deste trabalho.
Em um primeiro momento histórico, identificado com um Estado mais forte e menos aberto ao atendimento dos anseios coletivos, surgem as Teorias da Irresponsabilidade do Estado.
O Estado, que era o criador das normas jurídicas, seria incapaz de violá-las. Presumia-se de forma absoluta o respeito ao ordenamento jurídico pelo Estado. Dessa época surgem na Inglaterra e na França, respectivamente, as expressões “The King can do no wrong” e “Le roi ne peut mal faire”, expressando a impossibilidade de violação de direitos por parte do Estado.
Sobre esse aspecto da Teoria da Irresponsabilidade, interessante passagem na obra de Duguit, que informa que:[22]
É, pois, em definitivo, o Estado soberano quem cria o direito e, assim sendo, não se pode admitir que possa ser responsável. A concepção tradicional de responsabilidade implica uma violação do direito: e quem cria o direito por um ato de sua vontade soberana, não o pode violar. Assim como nos países de monarquia absoluta ‘o rei não pode fazer o mal’ e, portanto, não pode ser responsável, o Estado democrático, que nada mais é que a nação soberana organizada, tampouco pode fazer o mal nem ser responsável.
Registre-se que a Teoria da Irresponsabilidade, entretanto, não era dogma irrefutável. Em Estados de Direito, embora não democráticos, era plenamente possível a existência de leis que previssem a responsabilização do Estado. Foi o caso na França, por exemplo, da Lei 28 Pluvioso do ano VIII, que previa a responsabilidade do Estado em casos de danos causados por obras públicas.
A situação de irresponsabilidade do Estado causava sérias conseqüências de ordem social e clara insegurança jurídica, razão pela qual passou a ser severamente combatida pelos setores sociais.
Na França houve evoluções já no século XIX, mas é válido ressaltar que em países como Inglaterra e Estados Unidos a situação perdurou até o fim da primeira metade do Século XX, através, respectivamente, do Crown Proceding Act (responsabilidade idêntica à atribuída aos particulares) e Federal Tort Act (responsabilidade apenas subjetiva)[23].
Abandonada a claramente injusta Teoria da Irresponsabilidade, passamos, conforme já adiantado na citação das leis estadunidenses e inglesas, às chamadas Teorias Civilistas.
Conforme o nome já anuncia, tratam-se de teorias que tentam repassar para o campo da responsabilidade do Estado teorias eminentemente de Direito Privado.
Em um primeiro momento surge a Teoria dos Atos de Gestão e de Império. Os primeiros seriam aqueles em que o Estado se despe de sua potestade, agindo no mesmo nível do particular, não se tratando propriamente da administração de interesses públicos, enquanto nos segundos o Estado age como Soberano, com supremacia sobre os demais membros da sociedade.[24]
Por essa teoria o Estado somente poderia ser responsabilizado por qualquer violação à ordem jurídica em casos de condutas indevidas na prática de atos de gestão.
A Teoria era, em verdade, bastante cruel com os administrados: além de provar que o ato seria qualificável como de gestão, era preciso provar o elemento subjetivo. Com o tempo a teoria foi perdendo o prestígio.
Themistocles Brandão Cavalcanti, ao tratar da impossibilidade da distinção entre os atos de império e os atos de gestão, cita Léon Duguit para dar fins à velha doutrina que sustenta tal teoria. Diz o autor:
A administração, diz ele, quando intervém, não o faz, nunca, como qualquer particular. A sua intervenção tem uma peculiaridade que é a de prover ao funcionamento do serviço público, e é esse o característico que define o ato administrativo, qualquer que ele seja.[25]
Em virtude da dificuldade de separação entre atos de gestão e de império, passa-se à chamada Teoria da Culpa Civil.
Maria Sylvia Zanella di Pietro explica que:
Embora abandonada a distinção entre atos de império e de gestão, muitos autores continuaram apegados à doutrina civilista, aceitando a responsabilidade do Estado desde que demonstrada a culpa. Procurava-se equiparar a responsabilidade do Estado à do patrão, ou comitente, pelos atos de empregados ou prepostos.[26]
Para a Teoria da Culpa Civil, portanto, estará caracterizada a responsabilidade civil do Estado sempre que a conduta estatal causadora do dano for praticada com culpa ou dolo, nos mesmos termos em que se apresentam nas condutas de particulares.
Registre-se que o artigo 15 do Código Civil Brasileiro de 1916 adotava esta Teoria. Assim, o Estado Brasileiro somente respondia perante os administrados quando sua atuação fosse dolosa ou culposa.
Em evolução às chamadas Teorias Civilistas, chega-se à época das Teorias Publicistas.
Diante da insatisfação e descabimento da aplicação do mesmo regime de responsabilização para os particulares e para o Estado, passe-se a defender a aplicação de regras especiais para a responsabilização do Estado.
Nessa esteira, surge a chamada Teoria da “Faute du service”, na França, que pode ser traduzido para “Falha ou Falta do Serviço”.
Para esta teoria, independentemente a identificação do agente responsável pela prática do ato, haveria responsabilidade do Estado sempre que o serviço público fosse mal prestado, prestado a destempo, ou não fosse prestado.
Nas palavras do administrativista Oswaldo Aranha Bandeira de Mello:
Não se trata de culpa individual do agente público, causador do dano. Ao contrário, diz respeito a culpa do serviço diluída na sua organização, assumindo feição anônima, em certas circunstâncias, quando não é possível individualizá-la, e, então, considera-se como causador do dano só a pessoa coletiva ou jurídica.[27]
Apesar da nítida evolução demonstrada, ainda se encontrava dificuldades para responsabilização da Administração em casos práticos, uma vez que ainda era necessário provar, ainda que de forma mitigada, um elemento subjetivo: a falha ou falta.
Não atendidos, portanto, plenamente os anseios sociais que exigem a responsabilização do Estado quando devida, evolui-se para as Teorias da Responsabilidade Objetiva do Estado.
Toda a dogmática que serve como substrato para a teoria da responsabilidade objetiva do Estado baseia-se, nos dizeres do magistério de Maria Sylvia Zenella Di Pietro "no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais". Desta sorte, assim como são – ao menos em tese – repartidos entre toda a coletividade os benefícios oriundos da prestação de serviços públicos por parte do Estado, o mesmo deve ocorrer quando a situação se inverte, ou seja, havendo por parte de um (ou alguns) o sofrimento de um ônus maior do que aquele que lhe era lícito suportar face aos demais, rompe-se o equilíbrio pretendido pela ordem social devendo o Estado, para que as coisas retroajam ao status quo, indenizar o prejudicado utilizando-se, para tal, recursos da Fazenda Pública.[28]
Para tais teorias, a análise da responsabilidade civil do Estado se assentará apenas na demonstração de três elementos: a conduta, o dano e o nexo causal. A conduta deverá, num primeiro momento, ser comissiva, guardando-se para um tópico seguinte a responsabilidade por conduta omissiva do Estado. Havendo uma conduta positiva estatal, analisa-se se há, associada minimamente à mesma, um dano a um particular. Existente o dano, a análise passa a ser na tentativa de se estabelecer um nexo de independência entre a conduta e o dano – o nexo causal. Verificando-se a ocorrência destes três elementos, haverá responsabilidade civil do Estado.
Foi sob o influxo dessas Teorias que foi editado o artigo 37, parágrafo 6º da Constituição da República, que em momento algum exige a demonstração de culpa ou dolo por parte da Administração.
Ainda no bojo das Teorias da Responsabilidade Objetiva do Estado, despontam duas subteorias principais. Para a Teoria do Risco Administrativo, a responsabilidade do Estado estará presente em decorrência de sua atuação ser potencialmente causadora de danos aos particulares. O Estado responderá de forma diversa em face dos particulares porque em seu modo de atuar possui prerrogativas especiais, que aumentam a possibilidade de causar danos a terceiros.[29]
Nessa variante da responsabilidade objetiva, entretanto, são aceitas as chamadas excludentes de responsabilidade.[30]
Os dizeres acima ficam corroborados pela seguinte decisão do Supremo Tribunal Federal ao julgar o Recurso Extraordinário de n.º 113.587-5 em que litigavam o Município de São Paulo e um particular:
CONSTITUCIONAL. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. C.F., 1967, art. 107. C.F./88, art. 37, par-6. I. A responsabilidade civil do Estado, responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, que admite pesquisa em torno da culpa do particular, para o fim de abrandar ou mesmo excluir a responsabilidade estatal, ocorre, em síntese, diante dos seguintes requisitos: a) do dano; b) da ação administrativa; c) e desde que haja nexo causal entre o dano e a ação administrativa. A consideração no sentido da licitude da ação administrativa e irrelevante, pois o que interessa, e isto: sofrendo o particular um prejuízo, em razão da atuação estatal, regular ou irregular, no interesse da coletividade, e devida a indenização, que se assenta no principio da igualdade dos ônus e encargos sociais. II. Ação de indenização movida por particular contra o Município, em virtude dos prejuízos decorrentes da construção de viaduto. Procedência da ação. III. R.E. conhecido e provido.
Há que se advertir, entretanto, que as causas normalmente apontadas como excludentes da responsabilidade estatal são muitas vezes consideradas por parte da doutrina como causas que excluem um dos elementos próprios da definição de responsabilidade civil.
Dessa forma, a culpa exclusiva da vítima não seria propriamente uma excludente particular da responsabilidade do Estado, já que em casos em que a conduta do particular é determinante para o dano, já não haveria que se falar em responsabilidade do Estado em razão da inexistência de nexo causal. Da mesma forma ocorre com as demais circunstâncias elencadas como excludentes de responsabilidade do Estado.
A última e mais avançada Teoria Objetiva seria a do Risco Integral, segundo a qual haverá responsabilidade do Estado e o conseqüente dever de indenizar em todo e qualquer caso, inclusive naqueles em que algum evento acabe por excluir o nexo causal. É adotada em nosso regime constitucional, por exemplo, para o caso de danos nucleares (artigo 21, XXI, alínea d).
3.3 Responsabilidade Civil e a Constituição de 1988
O tema Responsabilidade Civil do Estado é tratado no artigo 37, parágrafo 6º da Constituição, nos seguintes termos:
As pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviço público responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Da análise do texto do artigo em comento já se percebe com facilidade que a Constituição da República adotou a Teoria da Responsabilidade Objetiva. É que, em um primeiro momento, admite-se a responsabilização do Estado mesmo que não tenha havido culpa por parte de seus agentes, já que somente quando presente este elemento subjetivo será possível o manejo, pelo Estado, da ação de regresso.
É de se ressaltar da análise da norma constitucional, ainda, que não apenas as pessoas jurídicas de direito público, mas também algumas pessoas jurídicas de direito privado estão sujeitas à responsabilidade objetiva.
A norma constitucional em comento tratou de forma igual todas aquelas pessoas jurídicas que exercem prerrogativas públicas, atribuindo às mesmas, em contrapartida, modalidade de responsabilidade mais grave.
Nesse sentido, todas as pessoas jurídicas de direito público, isto é, a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, as Autarquias, inclusive Associações Públicas de Direito Público e Fundações Autárquicas estão sujeitas à modalidade de responsabilidade prevista no parágrafo 6º do artigo 37 da Carta Constitucional.
As empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas de direito privado, embora integrem formalmente a estrutura do Estado, não obrigatoriamente estarão sujeitos às regras do artigo ora em comento.
Conforme já dito, também pessoas jurídicas de direito privado podem responder de acordo com a norma constitucional ora analisada. Basta que a mesma seja prestadora de serviço público. Dessa forma, uma empresa pública e uma empresa privada que prestem serviços públicos necessariamente responderão objetivamente pelos atos comissivos danosos causados por seus agentes.
Por fim, é fundamental ressaltar que o artigo 37, parágrafo 6º só disciplina a responsabilidade do Estado na modalidade comissiva.
Quanto ao Estado omisso, isto é, os danos causados por má prestação de serviços públicos, continuam a haver discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da qual modalidade de responsabilidade existe: subjetiva ou objetiva.
Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que:
É corretíssima, portanto, a posição sempre e de há muitos lustros sustentada pelo Prof. Oswandlo Aranha Bandeira de Mello – que serviu de fundamento e de norte para os desenvolvimentos contidos neste trabalho – segundo quem a responsabilidade do Estado é objetiva no caso de comportamento danoso comissivo e subjetiva no caso de comportamento omissivo.
Com efeito, a lição perfeita do citado mestre está sintetizada com absoluta precisão nas seguintes palavras: “A responsabilidade do Estado por omissão só pode ocorrer na hipótese de culpa anônima, da organização e funcionamento do serviço, que não funciona ou funciona aml ou em atraso, e atinge os usuários do serviço ou os nele interessados.
Já a responsabilidade objetiva tem lugar em hipótese distina, como expõe o mencionado autor:
“A responsabilidade fundada na teoria do risco-proveito pressupõe sempre a ação positiva do Estado, que coloca o terceiro em risco, pertinente à sua pessoa ou ao seu patrimônio, de ordem material, econômica ou social, em benefício da instituição governamental ou da coletividade em geral, que o atinge individualmente, e atenta contra a igualdade de todos diante dos encargos públicos, em lhe atribuindo danos anormais, acima dos comuns inerentes à vida em sociedade”[31].
No mesmo sentido, José dos Santos Carvalho Filho assevera que:
A conseqüência, dessa maneira, reside em que a responsabilidade civil do Estado, no caso de conduta omissiva, só se desenhará quando presentes estiverem os elementos que caracterizam culpa. A culpa origina-se, na espécie, do descumprimento do dever legal, atribuído ao Poder Público, de impedir a consumação do dano. Resulta, por conseguinte, que, nas omissões estatais, a teoria da responsabilidade objetiva não tem perfeita aplicabilidade, como ocorre nas condutas comissivas[32]. (grifos no original)
Confira-se, a respeito, julgado do Supremo Tribunal Federal:
“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO. OMISSÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. CRIME PRATICADO POR FORAGIDO. ART. 37, § 6º, CF/88. AUSÊNCIA DE NEXO CAUSAL. 1. Inexistência de nexo causal entre a fuga de apenado e o crime praticado pelo fugitivo. Precedentes. 2. A alegação de falta do serviço - faute du service, dos franceses - não dispensa o requisito da aferição do nexo de causalidade da omissão atribuída ao poder público e o dano causado. 3. É pressuposto da responsabilidade subjetiva a existência de dolo ou culpa, em sentido estrito, em qualquer de suas modalidades - imprudência, negligência ou imperícia. 4. Agravo regimental improvido.”[33]
Apesar do entendimento acima sedimentado, é válido ressaltar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal também é farta de casos em que se decidiu que a responsabilidade do Estado, ainda que em casos de omissão, prescinde da demonstração de culpa.
Nesse sentido, em recente julgamento no STF afirmou-se que:
Essa concepção teórica – que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público tanto no que se refere à ação quanto no que se refere à omissão do agente público – faz emergir, da mera ocorrência da lesão causada à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano moral e/ou patrimonial sofrido, independentemente da caracterização de culpa dos agentes estatais, não importando que se trate de comportamento positivo (ação) ou que se cuide de conduta negativa (omissão) daqueles investidos na representação do Estado, consoante enfatiza o magistério da doutrina.[34]
O caso acima apontado se refere à responsabilidade do Estado em caso no qual o filho de uma servidora pública exposta a agentes nocivos à sua saúde como condição para o serviço teve contágio de doença relacionado à prática laborativa. Entendeu-se, no caso, que o Estado tinha o dever de impedir ou minorar as conseqüências do contato com tais substâncias, e que sua omissão, qualificada pelo dever de agir, gera responsabilidade objetiva.
Sem embargo da conclusão firmada pelo Pretório Excelso, parece conveniente destacar que o caso acima tratado – e outros mais em que se afirma possível a caracterização da responsabilidade objetiva mesmo em casos de omissão do Estado – se caracteriza, em verdade, pelos casos, no dizer de Celso Antônio Bandeira de Mello, de “Danos dependentes de situação apenas propiciada pelo Estado”. Conforme pontual o citado autor:
Há determinados casos em que a situação danosa, propriamente dita, não é efetuada por agente do Estado, contudo é o Estado quem produz a situação da qual o dano depende. Vale dizer: são hipóteses nas quais é o Poder Público quem constitui, por ato comissivo seu, os fatores que propiciarão decisivamente a emergência de dano. Tais casos, a nosso ver, assimilam-se aos de danos produzidos pela própria ação do Estado e por isso ensejam, tanto quanto estes, a aplicação do princípio da responsabilidade objetiva[35].
Nesse sentido, é válido ressaltar que nos casos em que a conduta omissiva do Estado se relaciona a situações em que a atuação do Estado é um dever geral – como o de investir em saúde, segurança pública e saneamento básico – a responsabilidade será em regra subjetiva. Quando, entretanto, a conduta omissiva se ligar a especial dever de agir – como nos casos de assassinato de um presidiário por outro, danos nas vizinhanças oriundos de explosão em depósito militar, lesões radioativas[36] – a responsabilidade será objetiva.