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Responsabilidade civil do Estado por erros judiciais

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Agenda 22/10/2012 às 09:50

O Poder Judiciário, no exercício de sua função, pode causar danos às partes que vão a juízo pleitear direitos, propondo ou contestando ações cíveis ou penais. Em caso de falha nesta prestação, o lesado poderá acionar o Estado para ter ressarcido o direito que foi lesionado.

INTRODUÇÃO

O tema Responsabilidade Civil do Estado sempre foi palco de acalorados debates ao longo dos anos, tendo variadas interpretações que muitas vezes são decorrência do momento histórico em que o tema é analisado e da força com que os direitos fundamentais são respeitados por determinada sociedade.

Evoluindo desde a tese da irresponsabilidade (“The king can do not wrong”, dos ingleses, e “Le roi ne peut mal faire”, dos franceses) até a do risco integral, a temática apresenta interessantes questões a serem discutidas.

Mesmos nos dias atuais, em que se aceita com poucas discussões a adoção, no sistema jurídico brasileiro, da teoria do risco administrativo, que será adiante analisada, ainda resta certa controvérsia acerca da possibilidade de responsabilização do Estado decorrente da conduta de certos agentes que realizam especiais funções.

Destarte, a responsabilidade patrimonial da Administração em decorrência do exercício da função jurisdicional tem sido objetivo de divergência doutrinária. Se o juiz é um representante do Estado, administrando a justiça, e o serviço judiciário é considerado público, o magistrado seria um preposto e o Estado, comitente. Em caso de dano, atrair-se-ia quase que obrigatoriamente a responsabilidade patrimonial do Estado.

José dos Santos Carvalho Filho, entretanto, ao noticiar a existência de entendimentos pela irresponsabilidade patrimonial pelos danos causados em virtude de sentença judicial anota que o exercício da jurisdição, sendo ato que traduz uma das funções estruturais do Estado, reflete o exercício da própria soberania, não havendo espaço para a responsabilização[1].

Argumenta[2], ademais, que a atuação do Judiciário ocorre no bojo de um processo em que é dado às partes o direito à ampla defesa e, no mais das vezes, duplo grau de jurisdição, razão pela qual o trânsito em julgado da decisão seria em grande parte decorrente da própria atuação das partes interessadas no processo. Tratar-se-ia, então, de presunção absoluta de que foi dado às partes a possibilidade de provar seu direito e em caso de decisão desvantajosa, a própria parte processual seria responsável.

Do ponto de vista do direito positivado, o Código de Processo Civil, em seu artigo 133, estabelece que o juiz responda por perdas e danos quando proceder com dolo ou fraude ou recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva tomar de ofício, ou a requerimento da parte, desde que tenha sido expressamente solicitada sua atuação.

Em um momento histórico no qual se observa uma crescente importância do Poder Judiciário, que acaba muitas vezes fazendo controle político de decisões dos poderes Legislativo e Executivo, não parece mais haver espaço para qualquer tipo de teoria que afaste a priori a responsabilidade do agente no exercício de uma função tão importante.

Nesse sentido, será abordado no presente trabalho o quadro constitucional e legal acerca da caracterização das condutas do juiz como agente público e da possibilidade de responsabilização do Estado e do próprio juiz.

Para tanto, o estudo estará estruturado em quatro capítulos. O primeiro aborda a organização institucional do Poder Judiciário no Brasil, com a respectiva distribuição constitucional de competências, e a forma e importância do exercício da Jurisdição.

No segundo capítulo a abordagem é voltada ao magistrado como agente público responsável pelo exercício da jurisdição, enfocando a necessidade de na análise dos atos dos juízes de acordo com a mesma teoria geral da responsabilidade por atos dos demais agentes públicos.

No terceiro capítulo é feita análise acerca da Responsabilidade Civil do Estado no Direito Brasileiro, apresentando-se a evolução histórica do tema no Brasil e outros países, até se chegar aos pontos consolidados ou polêmicos atualmente encontrados em doutrina e jurisprudência.

No quarto e último capítulo se adentra especificamente no tema Responsabilidade do Estado por Ato Judicial, analisando-se as diversas formas pelas quais esta pode ser analisada.


1 ORGANIZAÇÃO CONSTITUCIONAL DO PODER JUDICIÁRIO NO BRASIL

1.1 Organização da Justiça Brasileira

De acordo com o modelo de Estado Federal adotado pelo Brasil, a Constituição da República de 1988 caracteriza como entes dotados de autonomia a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, não havendo, ao menos no plano jurídico, qualquer ascendência ou subordinação entre os mesmos.

Na esteira da adoção em quase todos os países civilizados da tripartição das funções estatais, todas as constituições republicanas do Brasil adotaram a divisão de tarefas do estado entre três Poderes: legislativo, executivo e judiciário.

O Poder Executivo é exercido, em âmbito federal, pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado. Em âmbito estadual e municipal a liderança cabe aos Governadores e Prefeitos, respectivamente, não havendo que se falar em ingerência de uns sobre os outros. Todos os entes têm autonomia.

O Poder Legislativo Federal é bicameral, sendo exercido pelo Congresso Nacional, que possui duas casas: a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Em que pese a existência de diferentes condições para eleição dos respectivos membros, não há que se falar em prevalência da vontade de qualquer das Casas, em caso de conflito.

Nos Estados, o processo legislativo é exercido pelas Assembléias Legislativas, enquanto nos Municípios a tarefa fica a cargo da Câmara dos Deputados. Não há que se falar, também, em qualquer tipo de subordinação entre os diversos órgãos do Legislativo das três esferas de governo.

Quando o assunto, entretanto, é o Poder Judiciário, a situação de independência entre as diversas instâncias é de certa forma alterada.

Em um primeiro momento, a Constituição prevê dois tipos de jurisdição: a comum e a especial.

A Justiça Especial compreende o conjunto de órgãos do Judiciário responsável pelo exercício da jurisdição em matérias previamente determinadas, quais sejam: eleitoral, trabalhista e militar (artigo 92, incisos III, IV, V e VI, da Constituição da República de 1988). Registre-se que há previsão de criação, nos Estados, de justiça militar para o julgamento de militares estaduais (artigo 125, §3º da Constituição da República). Com exceção desta última ressalva, as Justiças Especializadas são federais.

Acerca da justiça militar, é interessante notar que o Superior Tribunal de Militar (STM), apesar de ser órgão de cúpula, não tem competências análogas às dos demais tribunais superiores, uma vez que não pode rever as decisões dos Tribunais Militares dos Estados. Nesse sentido, Dirley da Cunha Júnior adverte:

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Isso porque o Superior Tribunal Militar, não obstante qualificado, constitucionalmente, como Tribunal Superior, atua como órgão de segunda instância da Justiça Militar da União (CF, art. 122, I). Isso significa, portanto, que o Superior Tribunal Militar não dispõe de competência, para, em tema de crimes militares praticados por integrantes da Polícia Militar e dos Corpos de Bombeiros Militares, reexaminar, quer em sede recursal, quer em sede de “habeas corpus”, as decisões que, nessa mesma matéria, hajam sido proferidas por Tribunais de Justiça locais ou, onde houver, por Tribunais de Justiça Militar, como ocorre nos Estados de São Paulo, do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais (CF, art. 125, §3º). Cumpre acentuar nesse ponto, por necessário, que a competência penal da Justiça Militar dos Estados-membros restringe-se, unicamente, tratando-se de crimes militares definidos em lei, aos membros integrantes da respectiva Polícia Militar, “ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil” (CF, art. 125, §4º, na redação dada pela EC n° 45/2004).[3]

A Justiça Comum é dividida em Federal e Estadual. A Justiça Federal atua quando houver em litígio qualquer interesse que a Constituição haja classificado como de interesse direto ou indireto da União (artigo 109 da Constituição), enquanto à Justiça Estadual é reservada à chamada competência residual.

Ao contrário do que se analisou em relação aos demais poderes, nos quais não se admitem ingerências na vontade de órgãos de um ente federativo na de outro, no Poder Judiciário há verdadeiro entrelaçamento entre alguns órgãos.

Na Justiça Eleitoral, por exemplo, que é federal, o primeiro grau de jurisdição é exercido por juízes estaduais, com recursos para os Tribunais Regionais Eleitorais, compostos por magistrados federais.

Na organização da Justiça do Trabalho, há previsão de que em casos de na Comarca em que reside o obreiro não haver a justiça especializada, o Juiz de Direito, agente público Estadual, exerce a jurisdição trabalhista, com recurso para o Tribunal Regional do Trabalho respectivo (artigo 112 da Constituição). Situação idêntica ocorre, por expressa previsão constitucional, em causas previdenciárias, com recurso para os Tribunais Regionais Federais (artigo 109, parágrafos 3º e 4º da Constituição).

No âmbito da Justiça Estadual, as causas são decididas em segundo grau, por Desembargadores dos Tribunais de Justiça ou juízes de Turmas Recursais (no sistema dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais). Em caso de ser cabível, segundo as leis processuais e materiais, recurso dessa decisão, os mesmos serão analisados por Ministros do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, que, embora não se tratem a rigor de tribunais federais, são custeados pelos cofres da União e têm membros indicados pelo Presidente da República.

O Supremo Tribunal Federal, inclusive, tem competência para declarar, em sede de controle difuso, leis estaduais inconstitucionais por violação às Constituições Estaduais, quando também haja ofensa à Carta da República.

O que se observa, desse modo, é que o Poder Judiciário, apesar de situado no mesmo plano dos demais poderes constituídos, tem estrutura totalmente diversa dos demais, havendo até mesmo entrelaçamento entre as diversas esferas de governo.

1.2.A função jurisdicional

Conforme já salientado alhures, adotou o Brasil, desde a primeira constituição republicana, de 1891, o modelo da tripartição das funções estatais.

Ao Legislativo cabe criar normas, de conteúdo normalmente geral e abstrato, além da função de fiscalizar o Executivo e outras funções secundárias.

Ao Executivo cabe implementar, através de medidas diretas, concretas e imediatas, os comandos normativos editados pelo Legislativo.

Ao Judiciário, que propriamente mais interessa ao presente estudo, coube como função própria o exercício da jurisdição.

Por exercício da função jurisdicional se entende, em doutrina mais clássica, a atividade de dizer o Direito, isto é, diante de um conflito concreto posto em juízo, cabe ao Judiciário criar, diante do arcabouço normativo existente, a norma individual. A função do juiz, portanto, é a de dizer, na análise de um caso concreto, como se aplica o Direito, sendo este comando normativo individual potencialmente imutável pelo fenômeno da coisa julgada[4].

Em regra, a função jurisdicional é exercida por um órgão inerte: o Estado-juiz somente atua quando demandado. Nesse sentido, ao contrário dos demais Poderes, o juiz não atua quando sente necessidade de mudar uma situação social concretamente vivenciada. Atua apenas quando efetivamente solicitada pelas partes sua atuação.

A função jurisdicional ainda se destaca das demais por ser exercida por intermédio de agentes públicos que não tem ligação, ao menos direta, com qualquer processo democrático.

Os magistrados são escolhidos, em sua maioria, por meio de critério meritório, através de concurso público aberto a bacharéis em Direito com pelo menos três anos de atividade jurídica após a conclusão do curso superior.

É válido ressaltar, entretanto, que em alguns casos a Constituição determina que a escolha dos magistrados seja feita não pelo critério meritório, mas sim por indicação.

Especificamente no caso dos Tribunais Superiores, a escolha ganha contornos democráticos, uma vez que a Constituição determina que os Ministros do Supremo Tribunal Federal (artigo 101, Parágrafo único), do Superior Tribunal de Justiça (artigo 104, Parágrafo único), do Tribunal Superior do Trabalho (artigo 111-A), do Superior Tribunal Militar (artigo 123) e dois ministros do Tribunal Superior Eleitoral (artigo 119, II) sejam escolhidos pelo Presidente da República, após aprovação do Senado Federal.

Nos Tribunais de segundo grau, é possível o acesso de pessoas que não integram a magistratura de carreira, ou seja, é válida a escolha que não recaia diretamente em critério meritório. Assim, a Constituição da República determina que 1/5 dos lugares nos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais do Trabalho seja ocupado por membros do Ministério Público com mais de 10 anos no cargo ou advogados de notório saber jurídico e reputação ilibada com mais de 10 anos de exercício (artigo 94, caput para os dois primeiros Tribunais, e artigo 115, I, para o último).

Registre-se, ainda, que no caso do Conselho Nacional de Justiça, órgão de cúpula do Poder Judiciário, há participação de pessoas indicadas por órgãos do Ministério Público e do Legislativo, mas tais agentes públicos não exercem a jurisdição, uma vez que, embora integrante do Judiciário, a função do Conselho Nacional de Justiça é meramente administrativa.

1.3 A independência do Poder Judiciário e da Magistratura

O Judiciário é tido como um dos Poderes da República, não havendo mais que se falar de sujeição ao Legislativo ou ao Executivo

Apesar da situação hoje consolidada, é importante tecer breves considerações acerca do desenvolvimento histórico do Poder Judiciário no Brasil.

Em nossa primeira Constituição, a imperial de 1824, havia expressa disposição, no artigo 151, de que o Poder Judiciário era independente.

Entretanto, é sabido que àquela época a idéia prevalecente era a do controle dos Poderes nas mãos do Imperador, que o fazia por meio do chamado Poder Moderador. Dessa forma, ao Judiciário ficava relegada apenas a tarefa de dirimir conflitos individuais, sem grande repercussão, e de aplicar a lei penal.

Naqueles tempos o máximo que se escrevia em prol da independência do Judiciário era, em verdade, sobre a necessidade de independência do magistrado para o exercício de seu mister.

Nesse sentido, assevera Antônio Pimenta Bueno que:

A faculdade que ele tem, e que necessariamente deve ter de administrar a justiça, de aplicar a lei como ele exata e conscienciosamente entender, sem outras vistas que não sejam a própria imparcial justiça, a inspiração de seu sagrado dever. Sem o desejo de agradar ou desagradar, sem esperanças, sem temor algum. (...) A independência do magistrado deve ser uma verdade, não só de direito como de fato; é a mais firme garantia dos direitos e liberdades, tanto civis como políticas dos cidadãos; é o princípio tutelar que estabelece e anima a confiança dos povos na reta administração da justiça; é preciso que o povo veja e creia que ela realmente existe[5]

Com a mudança do Estado ditatorial para o Republicano, o Poder Judiciário sai da posição de mero solucionador de contendas privadas e aplicador do direito penal para a de titular de uma das funções do Estado. Com as Constituições seguintes o decisivo papel exercido pelo Poder Judiciário é reforçado, havendo sempre a previsão de rol que assegure aos magistrados garantias para o exercício de suas funções, como forma de desempenhá-las sem qualquer tipo de pressão por parte de grupos eventualmente interessados.

1.4 Controle Jurisdicional

Como conseqüência da atribuição de autonomia ao Poder Judiciário para a decisão potencialmente definitiva acerca do direito aplicável a casos de conflitos entre interesses inter-individuais, estabeleceu a Constituição da República, em seu artigo 5º, XXXV, a regra da inafastabilidade da Jurisdição.

Ressalte-se, em um primeiro passo, que a nomenclatura geralmente utilizada pela doutrina pátria para identificar a regra acima apresentada é de “princípio”. Entretanto, se aplicada corretamente à doutrina de Robert Alexy[6], grande responsável pela aceitação do caráter normativo dos princípios, estes são mandados de otimização, que devem ser aplicados na maior medida possível, sem que se excluam outros princípios eventualmente colidentes.

A inafastabilidade da jurisdição, entretanto, não é tratada como mandado de otimização, mas sim como norma cogente, que deve sempre ser aplicada em sua plenitude. Por expressa disposição constitucional, nenhuma lesão a direitos pode ser afastada de apreciação do judiciário. De acordo com o comando deôntico apresentado, a inafastabilidade da jurisdição é regra, e não princípio.

Afora esta questão terminológica prévia, é essencial ressaltar que o Brasil adotou a tese da unidade da jurisdição. Toda e qualquer lesão ou ameaça de lesão, seja proveniente de que qualquer órgão, pode ser analisada pelo Poder Judiciário.

Nas palavras de Celso Agrícola Barbi:

A redação do inciso legal em exame permite a conclusão de que o direito cuja ameaça ou lesão não pode ser subtraída da apreciação do Poder Judiciário não é mais apenas o direito subjetivo individual, mas também o direito coletivo, nome que é usado, com freqüência, como sinônimo de interesse difuso ou de interesse legítimo. Desse modo, a Constituição deu um grande passo para o aprimoramento dos costumes na atividade dos órgãos públicos, vedando à lei retirar da apreciação do Poder Judiciário a ameaça ou lesão de direito coletivo, interesse difuso, ou interesse legítimo. Em outras palavras, a Constituição deu ao Poder Judiciário a atribuição de controlar a legalidade dos atos da Administração, impedindo-a de praticar atos ilegais que firam direito coletivo, interesse difuso ou legítimo, ou tirando os efeitos a esses atos e suas conseqüências[7]

O exercício da jurisdição, conforme demonstrado, é privativo do Poder Judiciário e não pode haver qualquer norma jurídica válida em nosso ordenamento que afaste por completo a possibilidade de a parte que se acha prejudica procurar o Judiciário.

1.5 O processo como ação política estatal e a justiça social

Nos dias em curso, o processo deixa de ter aspecto meramente formal, de instrumento para provocação do Judiciário, para ter feições mais sociais, como sendo o instrumento a ser franqueado a todos aqueles que se achem em injusta condição de opressão.

A existência de instrumentos, que tornem reais - e não meramente simbólicos - os direitos do cidadão comum, é imperativo de um Estado Democrático de Direito, tal como o concebe a Constituição de 1988. Exsurge, desse modo, como decorrência natural, que não é possível pensar em uma ordem democrática, sob a égide da justiça social, sem assegurar a tutela jurisdicional a todos os cidadãos, afastada discriminação de qualquer natureza.

A garantia, em concreto, do acesso efetivo à jurisdição, por todos, na defesa de seus direitos e da liberdade, quando violados ou ameaçados, constitui, de tal sorte, postulado central dessa ordem, que aos Poderes do Estado cumpre diligenciar na plena consecução. Assume, no particular, especial relevo a norma do inciso LXXIV do art. 5º, da Constituição, ao estipular que "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos", o que se completa com o art. 134 e parágrafo único, da Lei Magna de 1988, quando prevêem a Defensoria Pública como "instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV", e sua organização "em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos”, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais" (artigo 134, Parágrafo 1º da Constituição).

Em verdade, superada está a época em que o direito ao acesso à proteção judicial significava, essencialmente, o direito formal de o indivíduo agravado propor ou contestar uma demanda, não constituindo preocupação do Estado, neste plano, afastar a "pobreza no sentido legal" - a incapacidade que muitas pessoas têm de utilizar plenamente a Justiça e suas instituições.

Nas valiosas palavras de Reginaldo de Castro Cerqueira Filho:

O Estado democrático encontra-se preso a seus jurisdicionados pelo dever de garantir-lhes o regular exercício de seus direitos conquistados, quanto de facilitar-lhes a reintegração ou a defesa de direitos violados, ou ameaçados, ou ainda a reparação de lesões oriundas de atos ilícitos, bem assim de proporcionar-lhes condições de realizar a dignidade da pessoa humana. É, no particular, pois, questão de primeiro plano a oferta de justiça pelo Estado, compatível com a procura e a necessidade decorrentes de uma convivência social, cada vez mais complexa, posto que se acentua, extraordinariamente, nos países de desequilíbrios sociais graves.

Entre nós, a melhoria do serviço público de administração da justiça, incumbência institucional do Poder Judiciário, enquanto Poder Político do Estado, afirma-se como anseio profundo da Nação. O serviço de justiça ao povo há de ser prestado de forma satisfatória, o que pressupõe boa qualidade, acessibilidade a todos e pronto desempenho. Nessa ordem, as preocupações com o acesso efetivo à justiça, por todos, inclusive pelos menos favorecidos da fortuna, tornaram-se, nas últimas décadas, de uma forma mais intensa, questão, ao mesmo tempo, do interesse da ciência do direito, quanto da sociologia jurídica. As relações entre o processo civil e a justiça social, entre a igualdade jurídico-formal e a desigualdade socio-econômica, ganham, neste plano, significativas dimensões.

A função do Poder Judiciário cresce, em conseqüência, de interesse, não só ao saber dos profissionais do direito, mas, também, relativamente ao domínio da sociologia jurídica. Estudos de natureza sociológica, no campo da administração da justiça, evidenciam, de outra parte, que dificuldades de todas as ordens cercam os pobres e necessitados, quer as econômicas, quer as condicionantes sociais e culturais, constituindo, todas elas, obstáculos reais ao acesso à Justiça. Em razão disso, lamentavelmente, são milhares os estados de insatisfação que se perpetuam e se convertem em decepções permanentes ou em casos de violência, ou procuram soluções aos conflitos, à margem das estruturas oficiais do Poder Judiciário, porque as pessoas não se animam ou não podem litigar em juízo, nem logram meios a fazê-lo. Disso resulta, em conseqüência, um distante acesso à tutela jurisdicional, que o Estado moderno lhes promete como um dos princípios fundamentais da ordem democrática.

Entre nós, no art. 5º, XXXV, da Constituição de 1988, como referido, assenta-se o princípio básico da inafastabilidade da tutela jurisdicional, ocorrendo lesão ou ameaça a direito. São, destarte, ilegítimas ou injustas as restrições ou omissões do Poder Público, e de quem quer que seja, a dificultarem o efetivo acesso de todos ao Poder Judiciário. Incompatível com a fisionomia e as metas do Estado de Direito, realmente democrático, sob a égide da justiça social, é não assegurar tutela jurisdicional a todos os cidadãos, notadamente, quando acusados, por mais revoltantes sejam os ilícitos, ou quando essa discriminação se dá por razões de fortuna[8].

Sobre o autor
Emanuel José Matias Guerra

Procurador Federal. Ex-Advogado da Petrobras. Ex-Técnico Ministerial do Ministério Público do Estado do Ceará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, Emanuel José Matias. Responsabilidade civil do Estado por erros judiciais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3400, 22 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22852. Acesso em: 23 dez. 2024.

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