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Controle difuso de constitucionalidade: atribuição de eficácia erga omnes e vinculante às decisões do Supremo Tribunal Federal

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Agenda 28/10/2012 às 09:55

3.A CONSTITUIÇÃO

Ao longo dos tempos a Constituição foi diferentemente percebida, sendo inicialmente considerada “um dado fático forjado pela história, independente de uma intervenção direta da razão humana”[29], passando à fase de direito (mas ainda político e não jurídico), para finalmente tornar-se uma forma normativa conformante.

No sentido de ordenamento jurídico do Estado, sempre houve uma Constituição, contudo, nos moldes do conceito atual, como bem esclareceu Walber de Moura Agra[30], seu conteúdo remonta-se ao Estado Moderno, sendo ela um contributo ao ocaso do Estado Absolutista e ao opúsculo do Estado Liberal.

A partir de LASSALLE a Constituição foi percebida como um conjunto de fatores reais de poder que regem um país, podendo a descrição de quais eram essas forças estar ou não escrita em uma “folha de papel”[31], de modo que, o texto normativo, como simples manifesto que era, se estivesse em descompasso com a realidade, não teria nenhuma validade. A crítica feita a Ferdinand Lassalle é a de desconhecer a força normativa do texto constitucional.

Konrad Hesse, em clara oposição a Lassale, via na Constituição mais do que um pedaço de papel, enxergando nela a sua “força normativa”[32], a mesma percepção expressou CANOTILHO[33]. Para ambos a Constituição tinha o poder de conformar a sociedade.

Hodiernamente se reconhece a supremacia da Constituição, bem como, a necessidade de conformação a seus preceitos, passando esta a ter a natureza de um conjunto de normas que organiza o Estado em seus elementos essenciais, ou seja, “regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos e os limites de sua ação”[34].

Como ensina SILVA[35]:

A Constituição é algo que tem, como forma, um complexo de normas (escritas ou costumeiras); como conteúdo, a conduta humana motivada pelas relações sociais (econômicas, políticas, religiosas etc.); como fim, a realização dos valores que apontam para o existir da comunidade; e, finalmente, como causa criadora e recriadora, o poder que emana do povo.

Instrumento estruturador do Estado, definidor da formação, limites e atribuições dos poderes, direitos, garantias e deveres dos cidadãos, a Constituição é a “lei fundamental e suprema”[36].

No sentido material, referente à composição e ao funcionamento da ordem política, a Constituição exprime “o conjunto de normas pertinentes à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais”[37]. Esse aspecto diz respeito ao seu conteúdo, ou seja, às matérias ditas rigorosamente constitucionais.

Pode, porém, matérias diversas serem inseridas no texto constitucional, passando estas a ter um status de constitucional, pelo fato de estarem enxertadas naquele corpo normativo. Como bem esclarece BONAVIDES[38], estas disposições, aparentemente constitucionais, são inseridas na Constituição de modo impróprio, ‘formalmente’, uma vez que não se reportam aos pontos cardeais de sua existência política, quais sejam: à forma de estado, à natureza do regime, à moldura e competência do poder, à defesa, conservação e exercício da liberdade.

3.1 A rigidez ou flexibilidade do texto Constitucional

A rigidez ou flexibilidade de uma Constituição diz respeito ao estabelecimento ou não de processos e exigências formais especiais, consubstanciando na proeminência, em sua gênese, da estabilidade ou da dinâmica do texto constitucional.

O critério de rigidez constitucional está relacionado com os requisitos necessários para a reforma constitucional, estando essa característica presente, no sentir de grande parte da doutrina, apenas nas Constituições escritas, estando os meios formais de alteração prescritos no texto constitucional. Assim, apenas as constituições rígidas são modificáveis por intermédio de um procedimento especial, que visa, preponderantemente, garantir a supremacia e estabilidade da norma constitucional por meio da imposição de alguns obstáculos à produção de emendas à Constituição e à revisão de seu texto.

Para CANOTILHO, no entanto, o caráter mais ou menos rígido da Constituição, não deve ser averiguado pela análise perfunctória da existência ou não de um processo de revisão estabelecedor de exigências específicas para a sua alteração. Para o constitucionalista português “as normas de revisão não são o ‘fundamento’ da rigidez da Constituição, mas os meios de revelação da escolha feita pelo poder constituinte”[39].

Uadi Lammêgo Bulos[40], ao discorrer sobre a rigidez constitucional destaca as seguites características: a) dificultar o processo reformador da Constituição; b) assegurar a estabilidade constitucional; e c) resguardar os direitos e garantias fundamentais, mantendo estruturas e competências, com vistas à proteção das instituições. Sendo a sua característica primordial impedir a livre modificação da Constituição pelo legislador ordinário através de um o processo agravado de reforma.

Para CANOTILHO a rigidez constitucional é um “limite absoluto” ao Poder Reformador, assegurando, desse modo, a relativa estabilidade da Constituição.

Jorge Miranda ensina que rígida é a Constituição que exige a observância de uma forma particular distinta da foma seguida para a elaboração das leis ordinárias quando se pretende a alteração do texto constitucional.[41]

Diferente da rígida, a Constituição flexível[42], com bem define José Afonso da Silva[43], é aquela que pode ser livremente modificada pelo legislador segundo o mesmo processo de elaboração das leis ordinárias. Neste caso, a própria lei ordinária que contrasta com a norma constitucional é capaz de operar mudanças na Constituição.

Para Celso Bastos[44] a Constituição flexível é aquela que admite a sua modificação por um processo idêntico ao adotado para a produção legislativa, ou seja, por leis ordinárias.

Assim, temos que as Constituições rígidas exigem para sua alteração formalidades e procedimentos específico e mais complexos do que o exigido para a alteração das leis ordinárias. Já as constituições flexíveis não estabelecem maiores obstáculos para a reforma das leis constitucionais, sofrendo estas as modificação que se entender necessárias segundo os mesmos critério que se utiliza para a criação legislativa infraconstitucional.

3.2 A estabilidade constitucional

O princípio da estabilidade constitucional tem direta correlação com o princípio da supremacia da Constituição, que segundo uma visão generalizada do conceito, indica a condição daquilo que goza de total e incontestável superioridade, que tem primazia, preponderância sobre as demais coisas.

A superioridade da Constituição é analizada sob duas perspectivas bem distintas. A primeira refere-se aos fatores intrínsecos à norma, decorrendo sua força da exata correspondência entre suas diretrizes e a realidade do contexto social em que se insere. Aqui importa observar se o conteúdo do texto constitucional é reconhecidamente conformador da ordem estatal e da sociedade à qual se destina, harmonizando-se com um e outro, garantindo, assim, sua eficácia e exeqüibilidade. A segunda perspectiva refere-se aos fatores extrínsecos à Constituição, mais especificamente à defesa de sua superioridade perante as demais normas legais, através do estabelecimento de critérios de controle da constitucionalidade das leis.

Nessa segunda perspectiva, a supremacia constitucional é tratada sob a ótica dos instrumentos garantidores dessa superioridade. Assumindo especial relevância o atributo da imperatividade das normas constitucionais, tendo estas superioridade perante os demais preceitos contidos no mesmo ordenamento jurídico, devendo as demais normar conformar-se àquelas, tanto no que concerne ao processo de elaboração, quanto no que se refere à matéria de que tratam, sob pena de padecerem do vício da inconstitucionalidade.

Neste ponto cabe ressaltar que seja qual for o ângulo sob o qual se analisa o princípio da supremacia da Constituição, deve-se ter em conta que este princípio configura a base do ordenamento jurídico de qualquer sistema, gozando as normas constitucionais, efetivamente, posição superior às demais normas jurídicas em qualquer hipótese, seja a Constituição escrita ou costumeira, seja rígida ou flexível, seja sob o critério fomal ou material, uma vez que é dela que se extraem as normas fundamentais do Estado, e isto basta para evidenciar sua superioridade diante das demais normas legais, tanto em razão das regras garantidoras dessa supremacia, previstas na própria Constituição, quanto pelo fato de que a Norma Fundamental, por representar a vontade e os princípios soberanos da Nação, não pode suportar qualquer sujeição, independentemente da existência de normas de controle de constitucionalidade.

Assim, pode se concluir que a Constituição não representa apenas um limite, é antes o fundamento do poder público e da ordem jurídica, estabelecendo o poder do Estado e regulando a formação das normas jurídicas que, conseqüentemente, devem conformar-se para dotarem-se de validade e legitimidade. Esta posição de superioridade diante de outras manifestações é característica indissociável da norma de natureza constitucional.

A estabilidade das Constituições não deve, porém, ser absoluta, como ensina José Afonso da Silva[45], não pode a estabilidade resultar em imutabilidade da norma, uma vez que, diante da realidade social não existem Constituições imutáveis. A Constituição não é apenas um instrumento da ordem, mas também de progresso social, não podendo manter-se inerte diante da evolução da sociedade.

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A rigidez relativa constitui técnica capaz de atender a ambas as exigências, permitindo emendas, reformas e revisões, para adaptar as normas constitucionais às novas necessidades sociais, mas impondo processo especial e mais difícil para essas modificações formais, que o admitido para a alteração da legislação ordinária.

Para CANOTILHO[46]:

[...] se por um lado o texto constitucional não deve permanecer alheio à mudança, também, por outro lado, há elementos do direito constitucional (princípios estruturantes) que devem permanecer estáveis, sob pena de a Constituição deixar de ser uma ordem jurídica fundamental do Estado para se dissolver na dinâmica das forças políticas.

3.3 A dicotomia rigidez-flexibilidade e seus reflexos na estabilidade constitucional

A distinção aqui esborçada entre Cartas rígidas e flexíveis sofre divergências doutrinárias, residindo a controvérsia na existência de Constituições ditas imutáveis, graníticas ou intocáveis, por não estarem estas submetidas a reformas[47] e na existência das denominadas Constituções histórico-costumeiras[48], que apresentam uma estabilidade decorrente “da sua própria natureza, da sua lenta formação, da sua progressiva adaptação às necessidades políticas e sociais e da educação política do povo ao qual se aplicam”[49].

As Constituições ditas imutáveis hoje são apenas ícones pré-historicos de um tempo em que prevalecia o dogma das constituições eternas. As Constituições modernas, frente às constantes transformações da realidade social, são concebidas como verdadeiros organismos vivos, numa tentativa de constante adaptação à essa realidade.

Assim, ao contrário do que se poderia imaginar, não é certa a conclusão de que as Constituições flexíveis são fruto de uma constante modificação no seu texto, sendo a Inglaterra, a Finlândia e a Nova Zelândia, exemplos de estabilidade do Texto Constitucional[50].

A doutrina tem apontado como explicação para essa conformação a existência de dois tipos de estabilidade: a sociologica e a legal.

Assim, Constituições como a brasileira, a americana, a francesa, etc. possuem estabilidade legal, ou seja, força jurídica das normas constitucionais esta relacionada a um modo especial de produção e as dificuldades postas à aprovação de uma nova nomia constitucional.

O paradóxo Constituição flexível-estabilidade, presente por exemplo na Inglaterra, cuja Constituição é flexível, mas no entanto o país apresenta uma notável estabilidade política, se mostraria apenas aparente, uma vez que a estabilidade constitucional decorreria da adequação entre a Constituição e a sua conjuntura social e política.


4.MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL

4.1 Conceito e denominação

Processo informal de mudança da constituição, através do qual se atribui novos sentidos ao texto constitucional, fazendo aflorar conteúdos até então não ressaltados à letra da Constituição. De forma geral é a mudança de sentido da norma sem mudança de texto.

Portanto, mutação constitucional consiste na alteração da Constituição segundo um processo informal, uma vez que não se encontra prevista no próprio texto constitucional, em contraposição aos processos que são ditos formais, expressamente regulados. Numa acepção formal, mutação é o processo de alteração, e na acepção material ou substancial, o resultado mesmo desse processo.

Nas palavras do professor Uadi Lammêgo Bulos[51]:

[...] mutação constitucional o processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da Lex Legum, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção (construction), bem como dos usos e costumes constitucionais.

Quanto a denominação deste fenômeno, salienta Uadi Lammêgo Bulos[52] inexistir uma terminologia uniforme, colacionando os seguinte cognomes: vicissitude constitucional tácita (Jorge Miranda); mudança constitucional silenciosa, transições constitucionais (Canotilho); processo de fato (Chierchia), mudança material (Pinto Ferreira, Jellinek); processos indiretos, processos não formais, processos informais (Cunha Ferraz).

Observamos, no entanto, que todas as denominações levam em conta o fato de o processo de mudança não estar expressamente previsto na Constituição.

Este fato é bem explicado por CANOTILHO[53]:

[...] considerar-se-á como transição constitucional a revisão informal do compromisso político formalmente plasmado na Constituição sem que haja alteração do texto constitucional. Em termos incisivos: muda o sentido sem mudar o texto.

Tomando as lições de Georges Burdeau, segundo a qual haveria um ‘poder constituinte difuso’ não registrado pelos mecanismos constitucionais, BULOS[54], sugere a utilização da denominação ‘meios difusos’, demarcando, assim, as mutações realizadas fora do exercício do instituído poder reformador.

A solução adotada por BULOS deixa clara a contraposição entre mutação constitucional e reforma constitucional.

4.2 Natureza da mutação constitucional

Numa acepção formal, mutação é o processo de alteração, e na acepção material ou substancial, o resultado desse processo.

Para George VEDEL apud BULOS[55]:

[...] a natureza de um ato ou de uma atividade jurídica pode ser analisada sob dois pontos de vista: o material e o formal. No primeiro, considera-se o objeto em sua substância. No segundo, investiga-se o processo de formação do ato ou da atividade.

Portanto, os meios difusos de mudança constitucional têm natureza informal, ou seja, não seguem formalidades ou procedimentos expressos. Porém, embora seja informal, a mutação é de natureza constitucional, materialmente constitucional[56].

4.3 Tipos de Mutação Constitucional

Com o fito de sistematizar o estudo do tema, a doutrina tem sugerido os mais diversos critérios informadores de uma classificação das mutações constitucionais.

Uadi Lammêgo Bulos[57], ao discorrer sobre os tipos de mutação constitucional destaca as quatro categorias elaboradas por Hsü Dau-Lin e seguida por Pablo Lucas Verdu e Manuel Garcia Pelayo:

1ª) mutação constitucional através de prática que não vulnera a Constituição; 2ª) mutação constitucional por impossibilidade do exercício de determinada atribuição constitucional; 3ª) mutação constitucional em decorrência de prática que viola preceitos da Carta Maior; 4ª ) mutação constitucional através da interpretação.

Paolo Biscaretti Di Ruffia, continua BULOS[58], agrupa tais mutações em dois tipos:

No primeiro, encontramos as modificações operadas em decorrência de atos elaborados por órgãos estatais de caráter normativo (leis, regulamentos etc.) e de natureza jurisdicional (decisões judiciais, principalmente em matéria de controle de constitucionalidade das leis). No segundo ramo, estão as mudanças ocorridas em virtude dos fatos de caráter jurídico (como os costumes); de natureza político-social (normas convencionais ou regras sociais de conduta correta frente à Carta Suprema); ou, simplesmente, as práticas constitucionais (tais como a inatividade do legislador ordinário que, não elaborando normas de execução, logra, substancialmente, impedir a realização efetiva de disposições constitucionais).

Já para Milton Campos e José Horácio Meirelles Teixeira[59] três seriam as hipóteses nas quais se delineariam mutações constitucionais: complementação legislativa, construção judiciária e consenso costumeiro.

Asseverando a imprecisão e vaguidade criteriológica para o estudo dos meios de que podem ocasionar mutações constitucionais, BULOS[60], prosseguindo sua exposição, ressalta a posição de diversos outros doutrinadores de escol:

Para Wheare, tanto a interpretação judicial como usos e costumes podem provocar mutações constitucionais. Em sentido idêntico estão Humberto Quiroga Lavié e Hector Fix Zamudio.

[...]

Já Anna Cândida da Cunha Ferraz examinou a interpretação constitucional, em suas várias modalidades, e os usos e costumes constitucionais, enquanto processos informais de mudança da Constituição, procurando seguir, em essência, a classificação proposta por Biscaretti Di Ruffia.

Ressaltando a dificuldade que a classificação do fenômeno mutação constitucional representa, o procurador federal Ronaldo Guimarães Gallo[61] apresentou interessante solução:

[...] entendemos que o gênero mutação constitucional apresenta apenas duas espécies, que denominamos “puras” e “impuras”. Segundo esse entendimento, esta subdivisão é suficiente para abarcar as possibilidades de alteração do conteúdo do Texto Constitucional sem a mudança formal dos seus artigos.

Prossegue o insigne Procurador[62]:

No nosso entender, as mutações constitucionais puras seriam aquelas que alteram o conteúdo da norma constitucional em virtude da mudança do pensamento, do entendimento, ponto de vista da sociedade como um todo, sobre determinado tema ou assunto.

[...]

Entendemos como sendo mutações constitucionais impuras aquelas que impõem uma alteração no conteúdo do Texto Fundamental, sem alteração do seu dispositivo (que permanece intacto), entretanto não como reflexo das alterações ocorridas nos ideários sociais, mais sim advindas de pressões efetivadas por determinados grupos (ainda que representativos de determinada parcela da sociedade), de práticas governamentais, legislativas ou judiciárias, ou ainda de complementações legislativas.

As modalidades de mutações constitucionais, como se vê, têm sido objeto de diversas formulações doutrinárias, inexistindo uma congruência de entendimentos a respeito. Neste estudo, porém, tomamos por base a classificação sugerida pelo professor Uadi Lammêgo Bulos.

Partindo da premissa de que as mutações constitucionais são uma realidade modificadora do significado e do alcance das normas previstas na Constituição, sugere BULOS[63] a seguinte classificação:

a) as mutações constitucionais operadas em virtude da interpretação constitucional, nas suas diversas modalidades e métodos;

b) as mutações decorrentes das práticas constitucionais;

c) as mutações através da construção constitucional; e

d) as mutações constitucionais que contrariam a Constituição, é dizer, as mutações inconstitucionais.

4.3.1 Mutação constitucional pela via interpretativa

A doutrina é pacifica ao apresentar a interpretação constitucional como uma das mais clássicas formas de Mutação Constitucional.

Cabe ressaltar que o ato de interpretar sempre conduz a uma reconstrução[64], uma vez que atribui ao objeto ou sinal interpretado, um significado. Dessa forma, a norma jurídica somente ganha valor ou sentido, após o ato de interpretação, através do qual se investiga o seu significado exato.

Como ensina BONAVIDES[65] a interpretação das normas jurídicas busca:

[...] estabelecer o sentido objetivamente válido de uma regra de direito. Questiona a lei, não o direito. Objeto da interpretação é, de modo genérico, a norma jurídica contida em leis, regulamentos ou costumes. Não há norma jurídica que dispense interpretação.

Por onde se conclui improcedente o aforismo romano “in claris non fit interpretatio”. Este, pelo menos, é o parecer de Nawiasky, Carbone e Somlo.

Continua o constitucionalista paraibano[66]:

Em verdade, a interpretação mostra o direito vivendo plenamente a fase concreta e integrativa, objetivando-se na realidade. Esse aspecto Felice Battaglia o retratou com rara limpidez: “O momento da interpretação vincula a norma geral às conexões concretas, conduz do abstrato ao concreto, insere a realidade no esquema.

Como visto, a interpretação possui o papel de atribuir vida ao texto legal, o que, em se tratando de norma constitucional, cujo conteúdo é preponderantemente político e social, acabando por exigir do interprete especial atenção.

BONAVIDES[67], com a clareza de sempre, elucida a questão:

As relações que a norma constitucional pela sua natureza mesma costuma disciplinar são de preponderante conteúdo político e social e por isso mesmo sujeitas a um influxo político considerável senão essencial o qual se reflete diretamente sobre a norma, bem como sobre o método interpretativo aplicável.

Não vamos tão longe aqui a ponto de postular uma técnica interpretativa especial para leis constitucionais, nem preconizar os meios e regras de interpretação que não sejam aquelas válidas para todos os ramos do Direito, cuja unidade básica não podemos ignorar nem perder de vista, mas nem por isso devemos admitir se possa dar á norma constitucional, salvo violentando-lhe o sentido e a natureza, uma interpretação de todo mecânica e silogística, indiferente á plasticidade que lhe é inerente, e a única aliás a permitir acomodá-la a fins, cujo teor axiológico assenta nos princípios com que a ideologia tutela o próprio ordenamento jurídico.

O erro do jurista puro ao interpretar a norma constitucional é querer exatamente desmembrá-la de seu manancial político e ideológico, das nascentes da vontade política fundamental, do sentido quase sempre dinâmico e renovador que de necessidade há de acompanhá-la.

Atado unicamente ao momento lógico da operação silogística, o interprete da regra constitucional vê escapar-lhe não raro o que é mais precioso e essencial: a captação daquilo que confere vida á norma, que dá alma ao Direito, que o faz dinâmico, e não simplesmente estático. Cada ordenamento constitucional imerso em valores culturais é estrutura peculiar, rebelde a toda uniformidade interpretativa absoluta, quanto aos meios ou quanto ás técnicas aplicáveis.

Assim, a Mutação Constitucional pela via interpretativa, é a porta de entrada no ordenamento constitucional das mudanças políticas e econômicas e das mudanças sociais, podendo se falar inclusive que tal tipo de mudança é o canal de comunicação entre o Direito e a sociedade, estando o resultado da interpretação constitucional no limite entre a mutação e o desuso constitucional.

Ressalve-se, por oportuno, que a declaração (concretização) através da interpretação é feita a partir da própria Constituição (interpretação autêntica) adaptando o texto original à nova realidade social que impulsiona a Constituição.

Ressalve-se, também, que a há diferença entre a Mutação Constitucional e a mera mudança de opinião dos tribunais, que embora sutis, existem. A principal  é a extensão da alteração, sendo a Mutação Constitucional muito mais extensa e profunda que uma mudança de interpretação.

Em geral, a Mutação Constitucional, é resultado de uma adequação do texto constitucional á nova realidade política, apresentando uma natureza contra-fática em relação à finalidade original da norma, enquanto a mudança de interpretação não tem natureza contra-fática, atuando dentro de uma extensão delimitada.

Podemos dizer que a mudança de interpretação decorre da redação do texto legal, a qual é imprecisa ou omissa permitindo dúvida no momento da sua aplicação.

Não há mudança da realidade social no caso de interpretação, mas sim uma escolha do aplicador da norma dentre uma gama de possibilidades decorrentes da norma, sempre respeitando, contudo, o texto da lei. A escolha e concretização da norma são feitas dentro da realidade social existente, não existindo mudança dessa realidade social como na Mutação Constitucional.

A Mutação Constitucional decorre da alteração da conjuntura política num determinado momento histórico, buscando adequar o texto constitucional á essa nova força normativa. Pode ela, ainda, ampliar ou reduzir a força normativa da norma constitucional original.

Já a alteração de interpretação é uma mera correção pontual não implicando alteração, ampliação ou redução de força normativa do texto constitucional.

Portanto, é no caráter contrafático presente na Mutação Constitucional que a difere de uma mudança de interpretação, ou seja, na Mutação Constitucional há uma divergência entre a norma e a realidade social, surgindo está exatamente para adequar o conteúdo da norma à nova realidade constitucional que está em oposição ao significado do texto original.

O caráter contrafático, ou seja, a contrariedade da norma jurídica aos fatos reais, para DIMOULIS[68], apresenta-se em quatro sentidos:

Primeiro, [...], a norma continua válida mesmo quando está sendo violada. Por tal razão, as autoridades do Estado e os cidadãos devem cobrar seu respeito alegando sua validade, que persiste mesmo quando a norma contraria a realidade. Segundo, a norma jurídica é contrafática porque exprime um dever ser que objetiva mudar a realidade social, transformar o comportamento dos homens e as relações sociais. O direito contraria freqüentemente os fatos sociais porque deseja que estes sejam alterados. Temos aqui a ‘função progressista’ ou transformadora do direito que manifesta-se claramente nos momentos de crise e ruptura, por exemplo, quando acontece uma revolução para instituir uma nova ordem social e jurídica [...]. Terceiro, as normas jurídicas têm uma função contrafática indireta, mas não menos importante. Manifestam a vontade de manutenção da atual situação, ou seja, das instituições políticas, das relações sociais e das posições dos indivíduos. Por isso afirma-se que o direito assume um papel ‘conservador’. Seu objetivo é impedir mudanças sociais, reprimindo as tentativas de alteração da organização social. O elemento mais importante da função contrafática do direito é a ameaça de sanções contra tentativas de mudar a situação social [...]. Quarto, o direito é contrafático porque seus mandamentos valem mesmo quando contrariam a lógica e o senso comum. Isto ocorre com as ficções jurídicas que impõem considerar como verdadeiro algo que não é.

4.3.2 Mutação constitucional pela construção constitucional

A construção representa inestimável veículo de mutação constitucional, através dela há um ajuste das normas da Constituição à sociedade em evolução, à uma realidade ou situação nem sempre disciplinada expressamente pelo texto constitucional.

A doutrina, porém, reconhecendo o valor da construção constitucional para o desenvolvimento da idéia de Constituição, e até mesmo para sua maior legitimidade, pois contribui para a adaptação dos preceptivos constitucionais às exigências da evolução social, atribui a esta um caráter supletivo. O que significa dizer que a construção constitucional só pode ser invocada na ausência de disciplina expressa no texto fundamental que seja capaz de solucionar a questão posta em debate.

Para BULOS[69]:

[...] a construção designa um meio eficiente pelo qual as constituições sofrem mudanças substanciais, no sentido, alcance e conteúdo dos seus preceptivos, sem a necessidade de recurso formal à revisão ou emenda constitucionais e encontra seu fundamento no fato de que o direito é experiência.

4.3.3 Mutação constitucional pela prática constitucional

Esta espécie de mutação parte do pressuposto de que uma Constituição é um ser orgânico, mutável e atualizável, reconhecendo, ainda, que além do poder constitucional dos Estados, há um poder de ação permanente que:

[...] não possui as marcas da iniciatividade, autonomia e incondicionalidade, nem, tampouco, os traços da secundariedade, limitabilidade e condicionalidade. Não está previsto pelos mecanismos instituídos na ordem jurídica, e não advém da linguagem prescrita do legislador constituinte[70].

O que se ressalta nessa hipótese de Mutação Constitucional é o conflito entre o Ser e o Dever-Ser, o qual pode ocorrer entre a Constituição e a realidade social ou entre uma norma constitucional isolada e a mesma realidade.

Prática constitucional, num sentido amplo do termo, abrange, além dos costumes e usos constitucionais, as praxes, os precedentes, as convenções e figuras afins[71].

As praxes são usos a que falta a convicção de obrigatoriedade (o elemento psicológico do costume), destacando-se as praxes parlamentares. Os precedentes (não jurisprudenciais) são as decisões políticas, através das quais os órgãos do poder manifestam o modo como assumem as respectivas competências em face de outros órgãos ou de outras entidades. As convenções são regras informais, que não necessitam estabelecer-se por escrito, mas às vezes também são revestidas desta solenidade.

4.4 Mutação inconstitucional

Este tipo de mutação reflete-se numa adaptação do texto à realidade social, sem modificação do mesmo, por meio de interpretação e costume, sem a observação aos limites impostos pela própria natureza do texto constitucional. São os processos informais de violação da Carta Magna[72]. Dessa forma, pode uma adequação sociológica resultar na violação dos limites impostos pelo texto constitucional, pois, como vimos, a mutação é um processo informal de mudança do sentido da norma.

Para BULOS: “os efeitos provocados por essas deformações variam em grau e em profundidade e podem contrariar a Carta Magna em maior ou menor extensão, sem mudar a letra das suas normas”[73]

Esse tipo de mutação é de fácil detecção por apresentar uma clara incompatibilidade com o sentido da Carta Magna.

A doutrina aponta de forma meramente exemplificativa vários processo inconstitucionais de mudança informal: inércia legislativa; as leis, os atos administrativos de finalidade administrativa ou política e a interpretação judiciária contrários à Constituição; o costume e as práticas inconstitucionais, inclusive os chamados golpes de Estado.

O que se extrai da visualização das espécies de mutação inconstitucional é que todas elas não se coadunam com o caráter integrador e unificado que as normas constitucionais devem ter, sendo resultado de um processo anômalo, que visa a satisfação de uma necessidade setorial, em detrimento da busca do bem comum.

Para melhor esclarecimento dessa questão, trago a lume o posicionamento adotado pelo procurador federal paulista Ronaldo Guimarães Gallo[74], o qual, denominando as mutações inconstitucionais de mutações impuras, assim as define:

[...] advindas de pressões efetivadas por determinados grupos (ainda que representativos de determinada parcela da sociedade), de práticas governamentais, legislativas ou judiciárias, ou ainda de complementações legislativas (dentre outros). [...] O que se tem são transformações daquela concepção jurídica desenvolvida por forte "influência" de setores da sociedade (ou então por órgãos que não a representam na sua totalidade) com suas ações.

Grupos de pressão, explica[75], são:

[...] ‘grupos’ (lobbies, sindicatos, partidos políticos etc.), invariavelmente, esforçam-se por defender interesses setoriais das respectivas classes, que muito embora possam imprimir uma mudança no conteúdo normativo da Lex Legum, tal não é fruto, como insistentemente ressaltado, da alteração do pensamento social como um todo e sim, como o próprio nome diz, da "pressão" exercida por esses grupos.

A inconstitucionalidade das mutações, portanto, reside no fato de que as mesmas atacam fundamentalmente o sentido material da Constituição, que como bem definiu BACHOFF, parafraseando JELLINEK, é o "conjunto das normas jurídicas sobre a estrutura, atribuições e competência dos órgãos supremos do Estado, sobre as instituições fundamentais do Estado e sobre a posição do cidadão no Estado"[76].

Vale ressaltar que, se o Poder Judiciário é o último intérprete da norma constitucional, tem o dever de detectar mutações que ultrapassem os limites da Carta Magna.

O ressaltou Uadi Lammêgo Bulos: “as mutações, quando constitucionais, promovem mudanças necessárias e perfeitamente, sem necessidade de se recorrer àquelas reformas despropositadas, sem previsibilidade técnica e sem visão de futuro”[77].

O mesmo conclui Anna Cândida da Cunha Ferraz apud Glauco Salomão Leite[78]:

[...] os processos de mutação manifestamente inconstitucional alteram, transformam, mudam, substituem e até mesmo destroem normas constitucionais, ou a Constituição por inteiro (...) Inadmissíveis teoricamente diante da concepção de Constituição, obra de um poder mais alto, reflexo de uma idéia de direito na comunidade, decisão política fundamental positivada, dotada de caráter impositivo que deve prevalecer sobre todo o sistema jurídico e político, abarcando, a um só tempo, todos os atos dos governantes e governados, perduram, todavia, na prática. Combatê-los e repeli-los é, pois, imperativo indiscutível.

4.1 Limites da mutação constitucional

Para Uadi Lammêgo Bulos é impossível traçar os limites das mutações constitucionais:

[...] Diante de tudo isso, as mudanças informais da Constituição não encontram limites em seu exercício. A única limitação que pode existir - mas de natureza subjetiva, e até mesmo, psicológica - seria a consciência do interprete de não extrapolar a forma plasmada na letra dos preceptivos supremos do Estado, através de interpretações deformadoras dos princípios fundamentais que embasam o Documento Maior.[79]

O fenômeno da mutação, continua, “é, em essência, o resultado da atuação de forças elementares, dificilmente explicáveis, que variam conforme exigências e situações sempre novas, em constante transformação“[80].

Resultado do reflexo teórico e prático dos ‘fatores sociais cambiantes’, as normas constitucionais são modificadas pelo influxo de acontecimentos que não alteram a sua forma, porém, transmutam o seu conteúdo, portanto, a mutação é um fenômeno ‘involuntário’, embora, seja ‘intencional’.

Dessa forma, é na ação subjetiva do intérprete que poderemos encontrar limites às mutações constitucionais, na medida em que, este possua consciência e evite “extrapolar a forma plasmada na letra dos preceptivos supremos do Estado, mediante interpretações deformadoras dos princípios fundamentais que embasam o Documento Maior”[81].

Paulo BONAVIDES, admitindo a força normativa da realidade e do meio social, definida como: “a facticidade que transforma as Constituições e as rejuvenesce”[82]. Este poder teoriza BONAVIDES[83]:

[...] não desampara a Constituição depois de feita, antes a acompanha e modifica, posto que não tenha titularidade definida, ou careça da racionalidade do momento constituinte ou haja tomado ocasionalmente configuração difusa. Diante da lentidão com que atua, só é possível perceber-lhe a presença invisível quando se constatam as transformações já operadas na Constituição sem a interferência do poder constituinte derivado.

Corroborando as palavras de BULOS, afirma BONAVIDES que este poder, que acompanha e modifica o texto constitucional, “não se sujeita à disciplina jurídica, porquanto, [...] pertence às categorias sociais que atuam à margem do quadro normativo formal”[84].

Portanto, o limite das mutações constitucionais encontra-se na ‘ponderação do intérprete’ tendo, pois, uma natureza ‘subjetiva’, “consubstanciado no elemento psicológico a consciência do interprete em não desbordar os parâmetros jurídicos, através de interpretações ‘maliciosas’ ou ‘traumatizantes’”[85].

Sobre o autor
Carlos Henrique dos Santos

Pós-Graduando em Direito Processual Civil e Direito Constitucional. Graduado em Direito pela Faculdade de Sergipe - FaSe. Assessor Técnico da Secretaria de Educação do Município de Maruim, Estado de Sergipe

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Carlos Henrique. Controle difuso de constitucionalidade: atribuição de eficácia erga omnes e vinculante às decisões do Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3406, 28 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22897. Acesso em: 5 nov. 2024.

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