5.CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
5.1 Introdução, conceito e generalidade
O pressuposto da ordem e unidade é a principal característica de qualquer sistema, pois, através deles se obtém uma convivência harmoniosa[86].
Para a manutenção e preservação da harmonia do sistema são criados mecanismos de controle através do qual, identificada a ruptura, “o sistema provê um conjunto de medidas que visam a sua superação, restaurando a unidade ameaçada”[87].
Como ressaltou BARROSO, normalmente duas premissas são necessárias à existência desse mecanismo de controle num sistema constitucional: a supremacia e a rigidez constitucionais.
Destarte, ressalta BONAVIDES ser necessário estabelecer uma distinção entre Constituição e sistema constitucional, de modo a retirar da primeira o seu sentido clássico: “[...] a Constituição se continha toda no texto, como se fora o livro sagrado da liberdade, a bíblia de uma nova fé democrática, o alcorão dos princípios liberais, tendo por finalidade precípua limitar ou enfrear o exercício do poder”[88]-[89].
Assim, concluiu BONAVIDES[90]:
O sistema constitucional teria por conteúdo, ‘primeiro’, a Constituição propriamente dita, ‘segundo’, as leis complementares previstas pela Constituição, ‘terceiro’, todas as leis ordinárias que, do ponto de vista material, se reputar constitucionais, embora não estejam no texto da Constituição formal, e a seguir, com o máximo relevo, o conjunto de instituições e poderes [...], a saber, os partidos políticos e correntes de interesses.
A supremacia revela a hierarquia, uma vez que o sistema se estrutura de forma escalonada, inexistindo validade se houver desconformidade frente à Constituição. Para BONAVIDES[91] a hierarquia tem como conseqüência o reconhecimento de uma ‘superlegalidade constitucional’, fazendo da Constituição a lei das leis, a lex legum.
Por força da hierarquia não se aplica, em sede de apuração de constitucionalidade, o princípio básico de hermenêutica jurídica de que a lex posterior derogat priori, pois, a lei que apresente desconformidade com a Constituição será dita inconstitucional. Assim, pode a inconstitucionalidade ser originária ou superveniente. Na originária a norma dita inconstitucional é mais recente do que a constituição. Já na superveniente a edição da norma precede no tempo a promulgação da constituição a ser considerada.
A premissa da supremacia, como bem lembrou CAPPELLETTI, foi utilizada por John Marshall para reconhecer o “poder e o dever dos juízes de negar aplicação às leis contrárias à Constituição mesma”[92].
Já a rigidez constitucional, requisito para que a lei ou ato normativo possa servir de paradigma de validade das demais normas, consiste na exigência de um processo de elaboração mais complexo do que o utilizado para gerar a norma objeto do controle.
Temos que o controle de constitucionalidade é um meio indireto de aplicação da Constituição, uma vez que esta serve de referência na atribuição de sentido a uma norma ou de parâmetro para a sua validade.
Ensina Alexandre de Morais[93], que o controle de constitucionalidade consiste numa verificação da adequação ou compatibilidade de uma lei ou ato normativo, no tocante aos seus requisitos formais e materiais, em face da Constituição.
Paulo Bonavides[94] diz que este se “assenta numa distinção primacial entre poder constituinte e poderes constituídos”, característica das constituições rígidas, em que a necessidade de um processo especial de revisão estabelece uma hierarquia jurídica entre normas.
MORAES[95] afirma ser possível identificar três grandes modelos de justiça constitucional: o francês, o austríaco e o norte-americano. Desses, somente o francês não é jurisdicional[96], sendo eminentemente político, decorrente do dogma da soberania da lei, segundo o qual, só os próprios corpos legislativos poderiam manifestar-se sobre a sua validade.
Do sistema francês o Brasil importou o seu controle preventivo e político, v. g., Comissão de Constituição e Justiça dos parlamentos e o veto presidencial. O mesmo poderia se afirmar quanto à necessidade do pronunciamento do Senado Federal de modo a suspender a execução da lei dita inconstitucional em controle abstrato.
No modelo austríaco, originário do pensamento kelseniano, o controle da constitucionalidade é concentrado e atribuído a um único órgão jurisdicional, a Corte ou Tribunal Constitucional. É realizado de forma abstrata, decisão em tese, tendo esta eficácia erga omnes e efeito ex tunc , sendo a lei ou ato normativo impugnado expurgado do ordenamento.
No modelo norte-americano, por sua vez, tendo como precedente histórico o caso Marbury versus Madison[97]-[98], a constitucionalidade é tida como mera questão prejudicial ao exame do mérito. Os tribunais são chamados a resolver uma lide e, incidentalmente, solucionam a questão constitucional. A inconstitucionalidade é alegada por via de exceção, como meio de defesa, a decisão, pois, opera inter partes, não desaparecendo do ordenamento jurídico a lei ou ato normativo impugnado.
Porém, por força dos precedentes, no modelo americano, a decisão de qualquer Corte vincula as decisões de Cortes que lhe sejam funcionalmente inferiores. Assim, a decisão da Suprema Corte americana sobre constitucionalidade é respeitada por todas as demais cortes e juízes do país.
O modelo adotado no Brasil é misto, como disse Alexandre de Moraes “esta espécie de controle existe quando a constituição submete certas leis e atos normativos ao controle político e outras ao controle jurisdicional”[99].
Aqui a constitucionalidade pode ser aferida preventivamente pelo Poder Legislativo e pelo Poder Executivo mediante as comissões de constituição e justiça e o veto jurídico (controle preventivo). Também o controle de constitucionalidade pode ser efetuado de modo repressivo, sendo este em regra jurídico e realizado pelo Poder Judiciário (controle repressivo).
Como exceção, à exclusividade do controle repressivo pelo Judiciário, há a possibilidade deste ser realizado pelo Poder Legislativo, podendo este, “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa”[100].
Outra exceção é a prevista no art. 52, inciso X da Constituição Federal de 1988, que segundo a nova tese, teria sofrido uma mutação constitucional, de modo a não mais persistir.
5.2O Controle concentrado e o controle difuso de constitucionalidade
5.2.1 Controle concentrado
Tendo como antecedente a representação interventiva[101] criada na Constituição de 1934. Nela condicionou-se a eficácia de lei interventiva, de iniciativa do Senado (art. 41, §3º), ao reconhecimento de sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal (art. 12, §2º), provocada por representação do Procurador Geral da República.
Conforme indica Luis Roberto Barroso, “o controle de constitucionalidade só viria a sofrer inovação radical com a Emenda Constitucional n. 16, de 26 de novembro de 1965, na vigência ainda da Constituição de 1946, mas já sob o regime militar”[102].
Com a mudança aqui reportada, foi atribuído poder ao Supremo Tribunal Federal para declarar em via principal, concreta e abstrata a inconstitucionalidade de lei, mediante representação do Procurador Geral da República.
5.2.2 Controle difuso
Introduzido na Carta republicana de 1891, sob influência de Ruy Barbosa, o controle difuso de constitucionalidade atribuiu, a partir dali, a todo órgão jurisdicional competência para declarar, nos litígios sob exame, a inconstitucionalidade de alguma norma, tendo esta decisão efeitos circunscritos às partes do processo.
Embora tenha sido a judicial review norte-america a fonte de inspiração para a criação do controle difuso brasileiro, a adaptação, porém não trouxe para o nosso sistema o mecanismo do precedente obrigatório ou stare decisis.
O controle difuso ou aberto, também é conhecido como controle por via de exceção ou defesa[103], tendo como característica permitir a qualquer juiz ou tribunal realizar num caso concreto a compatibilidade da norma à Constituição Federal[104]. Recebendo essa denominação pelo fato de ser exercido por qualquer juiz ou tribunal, sendo, no Brasil, sempre incidental e concreto.
No controle difuso a questão constitucional é meramente de fundo, apresentando-se como prejudicial ao mérito, operando, pois, efeitos apenas entre as partes em litígio.
Portanto, o efeito da declaração de inconstitucionalidade no controle difuso é ex tunc (retroativo) apenas entre as partes, podendo a esta decisão operar efeitos para os demais por força do previsto no art. 52, X da Constituição Federal, nesse caso os efeitos serão ex nunc.
Tal mecanismo representa uma “ampliação dos efeitos da declaração incidental de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal”. Como visto o sistema constitucional brasileiro optou por uma adoção incompleta do sistema difuso americano, pela falta de vinculação ao precedente (decorrente, no sistema da common law, da regra do stare decisis).
5.2.2.1. Os efeitos do controle difuso de constitucionalidade
Como dito a pronúncia do judiciário, sobre a inconstitucionalidade, nesse tipo de controle não é feita enquanto manifestação sobre o objeto principal da lide, mas sim sobre questão prejudicial, indispensável ao julgamento do mérito.
Nessa via, esclarece MORAES[105], outorga-se ao interessado a declaração de inconstitucionalidade somente para o efeito de isentá-lo, no caso concreto, do cumprimento da lei ou ato produzido em desacordo com a Constituição, permanecendo, entretanto, tal ato ou lei válidos no que se refere à sua força obrigatória com relação a terceiros.
O efeito da declaração no controle difuso adstringe-se ao caso concreto, ou seja, é inter partes (atinge apenas as partes do litígio em exame). Sua eficácia é ex tunc (retroativa), atingindo a lei ou ato normativo inconstitucional desde o seu nascimento, frise-se, apenas no que concerne à aplicação naquela lide especifica.
O sistema brasileiro, no entanto, permite a extensão dos efeitos de uma decisão operada em controle difuso de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, desde que, para tanto, o Senado Federal promova a suspensão da sua execução mediante resolução suspensiva. Nesse caso a resolução senatorial só poderá emprestar à decisão efeitos ex nunc, ou seja, para ofuturo.
5.3.A suspensão da execução de lei ou ato inconstitucional pelo legislativo
A suspensão pelo Poder Legislativo, da execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário foi introduzida no sistema constitucional brasileiro pelo constituinte de 1934. Naquele tempo o controle da constitucionalidade das leis era feito apenas em sede de controle difuso, funcionando a Corte Suprema como última instância recursal.
A previsão veiculada no art. 91, IV, decorreu, portanto, do fato de inexistir o controle concentrado de constitucionalidade no ordenamento então vigente, passando ao Senado Federal a competência para atribuir efeito erga omnes às decisões da Corte Suprema[106].
Competia, ainda ao Senado Federal “examinar, em confronto com as respectivas leis, os regulamentos expedidos pelo Poder Executivo, e suspender a execução dos dispositivos ilegais”[107]. Tal disposição, no entanto, não se repetiu nas constituições posteriores.
Com o golpe de Getúlio Vargas e a criação do Estado Novo foi outorgada a Constituição de 1937, inspirada na Carta ditatorial Polonesa de 1935, ficando conhecida como ‘a Polaca’. Vargas dissolveu o Senado Federal e criou o Conselho Federal.
No art. 101, inciso III, alíneas “b” e “c”, foi mantida a competência recursal do STF[108] para declarar inconstitucional lei ou ato governamental em julgamento de recurso extraordinário. No entanto, caso o Presidente da República entendesse conveniente, poderia submeter esta decisão ao Parlamento Nacional[109], formado pela Câmara dos Deputados e pelo Conselho Federal, que por 2/3 de votos de cada uma das casas poderia tornar sem efeito a decisão do Supremo, como prevê o art. 96, parágrafo único[110].
Com a redemocratização, após a queda de Getúlio Vargas e fim do Estado Novo, foi promulgada a Constituição de 1946, sendo restabelecido o Senado Federal.
Nos moldes da Constituição de 1934, atribuiu-se ao Senado competência privativa para suspender a execução de lei ou decreto declarados inconstitucionais por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (art. 64).
Em 26 de novembro de 1965, através da Emenda nº 16 à Constituição de 1946, foi instituído o controle abstrato de normas estaduais e federais. No entanto, foi rejeitada[111] a proposta de atribuição de eficácia erga omnes à declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
[...] pedimos, todavia, uma formulação mais singela e mais eficiente do que a do art. 64 da nossa Constituição, para tornar explicito, a partir da declaração de ilegitimidade, o efeito erga omnes de decisões definitivas do Supremo Tribunal, poupando ao Senado o dever correlato de suspensão da lei ou do decreto.
O texto rejeitado dava ao art. 64 da Constituição a seguinte redação[112]:
Art. 64. Incumbe ao Presidente do Senado Federal, perdida a eficácia de lei ou ato de natureza normativa (art. 101, §3º), fazer publicar no Diário Oficial e na Coleção das leis, a conclusão do julgado que lhe for comunicado.
A Constituição de 1967/69[113] manteve a sistemática introduzida na Carta de 1946 pela Emenda nº 16, competindo ao Senado Federal a suspensão da execução de lei ou ato declarados inconstitucionais por decisão definitiva do STF (art. 45, IV).
Percebesse, pois, que no período anterior a 1988, o sistema difuso de controle de constitucionalidade mostrava-se dominante.
Com a promulgação da Constituição de 1988, o constituinte, ao ampliar o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal a um controle abstrato de constitucionalidade, restringiu a amplitude do controle difuso de constitucionalidade, uma vez que as questões constitucionais passam a ser veiculadas, fundamentalmente, mediante ação direta de inconstitucionalidade.
O constituinte, porém, continuou a exigir resolução do Senado Federal para a suspensão da execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo em controle difuso de constitucionalidade (art. 52, X).
Portanto, a Constituição de 1988 manteve o seguinte paradoxo: ao Supremo Tribunal Federal cabe a guarda da Constituição (art. 102), porém, as suas decisões em sede de controle de constitucionalidade só terão efeitos erga omnes e vinculante se proferidas em tese, ou seja, em controle concentrado de constitucionalidade.
Como assevera Regina Ferrari[114] ao Senado Federal cabe o exame da conveniência e oportunidade de retirar o dispositivo legal ou regulamentar do ordenamento jurídico. Sendo tal competência, portando, uma atividade discricionária de natureza política.
Demonstrando essa discricionariedade Luís Roberto Barroso[115], cita o caso do art. 9º da Lei n. 7.689, de 15 de dezembro de 1988, que instituiu contribuição social sobre o lucro das pessoas jurídicas, declarado inconstitucional no RE 150.764/PE, onde a Comissão de Constituição e Justiça, após recebida a comunicação da decisão pelo Senado Federal, manifestou-se pela não-suspensão da norma.
A manifestação do Senado não se reveste de caráter necessário, não se podendo impugnar ou recorrer quanto a uma eventual inércia deste, pois ubi non est actio, ibi non est jurisdictio.
Assim, chegamos à esdrúxula configuração hermenêutica na qual uma lei inconstitucional num caso concreto, não necessariamente o seria numa análise em tese.
Destarte, a suspensão da eficácia da decisão do STF vinculada à uma atuação do Senado, representa uma solução rudimentar, na medida em que, configura uma limitação das garantias ‘judiciárias’ (independência e imparcialidade), transcurando o caráter necessariamente dinâmico e evolutivo da jurisprudência.
5.4Controle difuso e a transcendência dos motivos determinantes
Em regra eficácia preclusiva da coisa julgada abrange apenas a parte dispositiva das decisões e das deliberações colegiadas.
A transcendência dos motivos determinantes consistiria, em juízo de constitucionalidade, no entendimento de que a eficácia vinculante das deliberações não se cinge somente à parte dispositiva do julgado, mas abrange também os próprios fundamentos determinantes da decisão, com base no princípio da supremacia formal e material das normas constitucionais.
O fenômeno consiste no reconhecimento da eficácia que transcende o caso singular, não se limitando à parte dispositiva da decisão, de modo a se aplicar aos próprios fundamentos determinantes do julgado que o Supremo Tribunal Federal venha a proferir em sede de controle abstrato, especialmente quando consubstanciar declaração de inconstitucionalidade[116].
Na prática, os fundamentos da decisão do STF, ou seja, a ratio decidendi, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade vinculam o Poder Judiciário e Administração Pública à sua observância.
Ocorre, porém que o STF vem reconhecendo em sede de controle difuso de constitucionalidade a transcendência dos motivos determinantes.
Tal se deu no julgamento do Recurso Extraordinário 197.917, que definiu os critérios da proporcionalidade da fixação do número de vereadores por município.
Embora o Ministro Gilmar Ferreira Mendes tenha afirmado que a declaração de inconstitucionalidade efetuada no Recurso Extraordinário não necessitaria do referendo do Senado Federal, como prescreve o art. 52, X, da CF/1988, pois, para ele houve um reconhecimento expresso de que ali não haveria efeito transcendente.
No entanto, os critérios da proporcionalidade na fixação do número de vereadores presentes no Recurso Extraordinário 197.917 embasaram a formulação de ato normativo do Tribunal Superior Eleitoral que reduziu o número de vereadores de todo o país.
Contra a resolução do TSE, foi proposta a ADI 3345/DF, entendendo, o Pleno do STF haver transcendência dos fundamentos da decisão no RE 197.917, julgando constitucional o ato normativo editado pelo TSE.
Ou seja, o Supremo em sede de ADI reconheceu a transcendência dos motivos determinantes no julgamento do RE 197.917. Por essa razão, vinculou a decisão da ADI aos motivos que determinaram a decisão no controle difuso de constitucionalidade, em razão da existência em ambos os casos do mesmo fundamento jurídico.
Destarte, o Supremo ao conceder efeitos transcendentes à decisão que declarará a inconstitucionalidade de uma norma em controle difuso, aproximou os efeitos deste aos do controle concentrado, já que os fundamentos daquela decisão, aparentemente utilizados apenas na fronteira do processo inter partes, passaram a transcender o próprio processo, aplicando-se a outros casos.
Portanto, com base na teoria da transcendência dos motivos determinantes é possível requerer diretamente ao STF a manutenção da autoridade de seu julgado através do instituto processual da reclamação[117].