3 – Árvores ou um conjunto arbóreo entendidos como bens culturais
A questão está bem colocada. Se a Prefeitura, ao autuar, considera que o corte de árvores caracterizou o tipo do inciso I, artigo 72, do Decreto n.º 6.514 de 2008, conclui-se, pelo menos de início, que entende que as referidas árvores sejam bens culturais. Diz-se “pelo menos de início” em função do seguinte: é preciso clarear o que está em jogo quando se afirma que uma árvore ou conjunto de árvores podem ser um bem cultural. Nitidamente, as árvores são bens ambientais da flora componentes de nosso patrimônio natural, tendo seu valor precipuamente ecológico, fator importante a todos os seres vivos.[21]No entanto, ter um valor ecológico não quer dizer ter um valor cultural. Entre um e outro existem aspectos que os diferenciam enormemente. As árvores naturalmente têm sua função ecológica, o que foi reconhecido pelo Direito. Ninguém nega isso! Mas para árvores serem bens culturais alguns requisitos legais devem ser preenchidos.
Tal diferença fica clara quando examinado o dano causado a bens naturais. Esse dano é denominado de “dano ecológico puro” (interpretação restrita de meio ambiente) que designa toda degradação que afete os componentes naturais (incluindo conjuntos arbóreos) do meio ambiente e não o patrimônio cultural ou artificial.[22]
No entanto, os conjuntos arbóreos podem também ser considerados bens culturais, devendo a eles ser atribuídos valores extrínsecos que fazem referência à memória do povo brasileiro, memória essa que pode se localizar no passado próximo ou remoto ou, ainda, a fatos presentes detentores de valor singular (preservação).
Por isso o bem e, in casu, o conjunto arbóreo, para ser considerado bem cultural, deve ser especialmente protegido pelo Poder Público, proteção esta que ocorre por meio de ato legal específico, por ato administrativo ou pela via judicial, tudo de acordo com o artigo 72. Inciso I, do Decreto n.º 6.514 de 2008.
Segundo Édis Milaré, espécimes arbóreos podem ser imunes ao corte, sendo um bem cultural. Dá o exemplo de uma árvore centenária que tem expressivo valor histórico para certa localidade.[23]
A nossa legislação concretiza tal ideia ao considerar conjuntos arbóreos como bens culturais. Um exemplo é o exposto no artigo 10, do Decreto Estadual n.º 30.433 de 1989 (ato legal específico), que declara imune de corte, em função de sua beleza e raridade, as árvores existentes nos seguintes lotes:
Rua Maestro Artur de Angelis, 190 Rua Antônio Ribeiro de Moraes, 304-352 Rua Calandra x Rua José Crispim Rua Bartolomeu de Ribeira, 126, e Rua Barcelona, 513 Av. Jaguaré, 717 Rua João Ramalho, 1.321 Rua Doutor Albuquerque Lins, 804 e 818 Rua Armando Álvares Penteado x Rua Alagoas x Rua Ceará Av Paulista e Cerqueira César Rua Major Diogo, 353 Av. Águia de Haia x Rua Nelson Tartuce x Rua Marjorie Av. Professor Francisco Morato x Rua Alfredo Mendes da Silva x Av. Doutor Guilherme D. Villares Av. Morumbi, 5.594 Rua Malvinas, 150 Rua Doutor Mário Ferraz x Rua Arthur Ramos Rua Santa Cruz x Rua Capitão Rosendo Ipiranga Rua Crisolita Rodrigues Pereira, 15 e 19 Rua Fernão de Castanheira, 20 Rua Bem-Aventurança, 109 Av. Doutor Francisco Ranieri, 25 Atual sede da T.F.P. - Rua Conselheiro Pedro Luiz, 13 Av. Angélica, 995. |
Doutra parte, o Município de São Paulo também assim age. Cita-se os seguintes exemplo:
a) Primeiro exemplo: de acordo com a Lei Municipal n.º 10.365 de 1987 (diploma legal que disciplina o corte de espécimes arbóreos no Município de São Paulo), em seu artigo 16, caput, “qualquer árvore do Município poderá ser declarada imune ao corte, mediante ato do Executivo Municipal, por motivo de sua localização, raridade, antiguidade, de seu interesse histórico, científico ou paisagístico, ou de sua condição de porta-sementes”, e;
b) Segundo exemplo: o Município de São Paulo tem a praxe de imunizar conjuntos arbóreos detentores de valores culturais pela via administrativa. Cita-seo constante na Resolução n.º 23 de 2004 expedida pela PMSP em conjunto com a Secretaria Municipal de Cultura e com o Departamento de Patrimônio Histórico. Segundo tal Resolução, serão tombados dois imóveis localizados na Rua Caio Prado e na Rua Marquês de Paranaguá, sendo essas áreas dotadas de alto valor histórico. Os efeitos do tombamento recaíram também sobre o conjunto de espécimes arbóreos que integra a localização.
Ou seja, uma árvore sempre será um bem natural componente da flora, mas isso não quer dizer ser um bem cultural. Para tanto, deve preencher o requisitos da legislação posta, em especial o artigo 72, inciso I, do Decreto n.º 6.514 de 2008.
Entretanto, entre a praxe que a Prefeitura adota em alguns casos para caracterização de conjuntos arbóreos como bens culturais e a fiscalização ambiental existe um abismo, um enorme hiato. Diferentemente do primeiro ponto, no campo na fiscalização ambiental todo corte de árvores caracteriza o tipo administrativo do artigo 72, inciso I, do Decreto n.° 6.514 de 2008, ou seja, um ato concreto contra bem cultural, subsunção essa que é com base na Resolução n.° 124/ CADES/2008.
O entendimento exposto na referida resolução já demonstra a contradição, pois, apesar de apontar a aplicação do artigo 72, inciso I, arrola argumento afetos à função ecológica dos conjuntos arbóreos no espaço urbano, e não a valores culturais. Veja os motivos.
Com a expansão urbana e seus problemas decorrentes, a importância da vegetação se demonstra, em especial a vegetação de porte arbóreo como elemento natural reestruturador e restaurador do espaço urbano. |
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Essa importância da vegetação pode ser demonstrada cientificamente, em função da dimensão do seu papel no equilíbrio das condições ambientais necessárias à vida no planeta e das funções que essa vegetação exerce no equilíbrio ecológico. |
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Funções da vegetação no espaço urbano |
Composição Atmosférica: - Ação purificadora por fixação de poeiras e materiais residuais; - Ação purificadora por depuração bacteriana e de outros microrganismos; - Ação purificadora por reciclagem de gases através de mecanismos fotossintéticos; - Ação purificadora por fixação de gases tóxicos. |
Equilíbrio solo-clima-vegetação: - Luminosidade e temperatura: a vegetação ao filtrar a radiação solar, suaviza as temperaturas extremas; - Umidade e temperatura: a vegetação contribui para conservar a umidade do solo, atenuando sua temperatura; - Redução na velocidade do vento; - Mantém as propriedades do solo: permeabilidade e fertilidade; - Abrigo à fauna existente; - Influencia no balanço hídrico. |
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Níveis de Ruído: - Amortecimento dos ruídos de fundo sonoro contínuo e descontínuo de caráter estridente, ocorrentes nas grandes cidades. |
Conclui-se necessariamente que o Município considera a função ecológica dos conjuntos de porte arbóreo como fator caracterizador de especial proteção equiparadamente ao exposto no artigo 72, inciso I, do Decreto n. ° 6.514 de 2008, o que é um erro conceitual/ analítico e uma ilegalidade, conforme já demonstrado, pois busca a subsunção de um bem de caráter ecológico a um tipo protetor de bens culturais.
Ademais, essa ilação dos componentes da Prefeitura se materializa nos autos que os fiscais da Secretaria do Meio Ambiente impõem, que se resumem no seguinte:
Tipo do artigo 72, inciso I |
Tentativa de subsunção do fato narrado ao tipo |
“Destruir, inutilizar ou deteriorar” |
Corte de “XX”árvores sem autorização |
“bem especialmente protegido” |
- As árvores desempenham importante função no meio urbano: psicológico, amortecimento do som, do vento e da chuva, bem como a permeabilidade do solo, melhoram o microclima, absorvem e armazenam carbono, entre outros |
“por lei, ato administrativo ou decisão judicial” |
Artigo 1° da Lei n.° 10.365: conjunto de porte arbóreo é considerado de interesse comum dos munícipes. Artigo 1° do Decreto n.° 30.443 de 89: exemplares arbóreos considerados como patrimônio ambiental. |
Multa |
R$ 10.000, 00 por árvore cortada |
2.3 –Corte de árvores sem autorização X artigo 72, inciso I, do Decreto n.° 6.514/08: os efeitos dessa indevida subsunção
Concluímos, portanto, que a conduta de corte de espécimes arbóreos sem autorização como sendo o tipo administrativo do artigo 72, inciso I, do Decreto n.º 6.514 de 2008, é uma associação incorreta, especialmente em função do seguinte:
a) O artigo 72, inciso I, resguarda bens de natureza cultural;
a.1) A proteção de um bem cultural se fundamenta em inúmeros valores que determinam a identificação de certa comunidade brasileira;
a.2) Tal proteção deve ocorrer por meio de lei específica, através de ato administrativo ou por meio judicial;
b) Segundo a PMSP, conjuntos arbóreos são especialmente protegidos em razão do valor ecológico que tais têm para o espaço urbano, e;
b.1) O veiculo de tal proteção são dispositivos legais genéricos (artigo 1° da Lei n.° 10.365: conjunto de porte arbóreo é considerado de interesse comum dos munícipes e o artigo 1° do Decreto n.° 30.443 de 89).
Claramente existe, assim, um descompasso entre os motivos fundantes da autuação pela PMSP e o tipo do artigo 72, inciso I, do Decreto n.º 6.514 de 2008, e tal descompasso se refere ao seguinte:
a) O bem retratado pela Prefeitura é um bem ecológico e não cultural;
b) Os motivos de especial proteção dizem respeitos à importância dos conjuntos de porte arbóreo ao sistema urbano do município e não aos valores culturais que identificam a comunidade do Município ou de suas partes, e;
c) Não existe o apontamento de ato legal, administrativo o judicial que proteja os conjuntos arbóreos de maneira específica por serem bens culturais. [24]
Conclusivamente, entende-se que não existe a subsunção e a Prefeitura do Município de São Paulo agiu e age em clara violação do princípio da legalidade constante do artigo 37, caput, da CF.
Conforme ensina o Magistrado Marcos Pimentel Tamassia, nos autos do processo n.º 0011617-46.2010.8.26.0053, o princípio da legalidade, nos casos de multa administrativa, tem fundamental relevância por estabelecer parâmetros contra: “aplicações discricionárias, analógicas ou avaliações subjetivas sobre o caso concreto”. Em função de tal ilação, afirma que o esse princípio tem duas dimensões:
a)A inevitabilidade da aplicação da multa em casos nos quais haja a previsão da lei, e;
b) Se não existir fundamento legal descrevendo o tipo infracional, a impossibilidade da imposição de qualquer penalidade.[25]
Ademais, além do ensinamento, aproveitar-se-á o caso decido pelo referido juiz. No caso, o Município buscava o enquadramento equivalente da conduta de queimar de conjunto arbóreo como equivalente de corte sem autorização de conjunto de árvores, tendo em vista a aplicação da já citada Lei municipal nº 10.365/87, que disciplina o corte de árvores e suas autorizações para remoção no Município. Em função da aplicação do princípio da legalidade, o juiz não aceitou a tese da Prefeitura por entender que queima não é corte, isentando o autuado de pagamento de multa. Vejamos parte da decisão, ipsis litteris:
“O entendimento esposado pela Administração Municipal (...) consiste na equivalência entre queima e poda não pode prevalecer. Dentro da lógica supra narrada, a imposição de penalidade pela Administração Pública está condicionada à legalidade estrita, impossibilitando adotar, para fins de imposição de punição, que o ato de podar equivale ao de queimar.
(...)
É certo que o ato de podar não guarda equivalência com a queima acidental de árvores como ocorreu no caso vertente. A poda pressupõe um elemento volitivo, um dolo direcionado ao ato de cortar partes de determinado espécime arbóreo. De outro lado, a queima acidental, como a retratada nos autos, apresenta, exatamente, a ausência de vontade dirigida. Assim sendo, além de ser impossível estabelecer uma identidade semântica entre ambas condutas, a conformação com o princípio da legalidade estrita impede a utilização de norma que prevê punição ao corte e/ou poda para penalizar a queima.” (Id. Ibid., p. 04 e 05 )
Assim, com base no elucidativo ensino jurídico acima, toda subsunção deve respeitar o princípio da legalidade, tendo em vista evitar arbitrariedade e imposição de multas indevidas. Caso a Municipalidade imponha multa com base em subsunção falaciosa e articulada com interpretações funestas que ferem a legalidade estrita, o auto de infração deve ser declarado nulo, bem como a relação jurídica subjacente, configurando, assim, um ato ilegal, gerando vício insanável.[26]
Atenta-se que implicação jurídica é correta. Decisões judiciais já sedimentam o entendimento de declarar a nulidade de todo ato que não preencha os requisitos para caracterização de bens culturais e a consequente proteção administrativa ou penal. Veja, ipsis litteris:
“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE (LEI N. 9.605/98, ART. 62, I) – DENÚNCIA REJEITADA – ATIPICIDADE DA CONDUTA – INEXISTÊNCIA DE LEI, ATO ADMINISTRATIVO OU DECISÃO JUDICIAL DECLARANDO O BEM PROTEGIDO – REJEIÇÃO DA PEÇA INICIAL MANTIDA. A análise dos critérios estabelecidos para ensejar o recebimento da denúncia ou queixa-crime opera-se por via de cognição sumária, de modo a se admitir a rejeição da peça quando, mediante análise perfunctória, verificar-se a manifesta improcedência do pleito, ou na hipótese de o julgador constatar a presença de alguma das causas de extinção da punibilidade (CP, art. 107) ou a ausência de uma das condições da ação (CPP, art. 43, III).
Assim, não há que se falar na ocorrência do tipo penal descrito no art. 62, I, da Lei n. 9.605/98, quando não existe lei, ato administrativo ou decisão judicial que torne o bem especialmente protegido. Isso porque, a simples inclusão do imóvel em lista de interesse de preservação elaborada pelo Poder Público, sem que se proceda ao regular tombamento, não tem o condão de configurar o delito, a ponto de se reputar atípica a conduta do agente, de modo a justificar a rejeição da denúncia, com base no art. 43, I, do CPP.”[27]
Realizada, então, a demonstração de que a sua subsunção de corte de árvores sem autorização ao tipo do artigo 72, inciso I, do Decreto n.° 6.514 de 2008, é totalmente ilegal pela tentativa de enquadramento de ato que atinge bem natural com função ecológica a um tipo que caracteriza infração em clara proteção de bens culturais com finalidade culturais pela via administrativa.
Mas um problema também importante e central deve ser examinado: a Prefeitura do Município de São Paulo tem Lei específica que tipifica tal conduta (artigo 20, da Lei Municipal n.° 10.365 de 1987). Vamos conhecê-la!