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O Poder Judiciário e o direito à saúde.

Parâmetros para intervenção judicial e a análise da condição econômica do postulante como critério para concessão de tratamentos e medicamentos de alto custo

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Agenda 20/12/2012 às 13:13

4. A POLÍTICA NACIONAL DE MEDICAMENTOS E A POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA FARMACÉUTICA

Considerada a importância em relação à saúde e o peso que causa ao orçamento público, faz-se necessário a segmentação de políticas públicas específicas para controle e fornecimento de medicamentos.

No Brasil as diretrizes sobre distribuição de medicamentos pelo SUS decorrem da Portaria 3.916 do Ministério da Saúde (1998), que instituiu a Política Nacional de Medicamentos.  Dentre muitos avanços e novidades, a referida portaria criou a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) e instituiu a Relação Municipal de Medicamentos Essenciais (REMUME) a ser definida de acordo com o perfil epidemiológico e nosológico da respectiva população[10].

A criação de política específica e de lista de medicamentos essenciais é uma tendência comum aos países desenvolvidos ou em desenvolvimento e atende a uma recomendação da Organização Mundial da Saúde (2012), para quem medicamentos essenciais são: “aqueles que satisfazem às necessidades de saúde prioritárias da população, os quais devem estar acessíveis em todos os momentos, na dose apropriada, a todos os segmentos da sociedade”.

Em complemento à Política Nacional de Medicamentos, foi criada a Política Nacional de Assistência Farmacêutica, através da Resolução 338/04 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) que, segundo definição do próprio Ministério da Saúde baseada nos princípios estabelecidos no artigo primeiro da referida Resolução, compreende:

Um conjunto de ações voltadas à promoção, proteção e recuperação da saúde, por meio da promoção do acesso aos medicamentos e  uso racional. No Ministério da Saúde, tais ações consistem em promover a pesquisa, o desenvolvimento e a produção de medicamentos e insumos, bem como sua seleção, programação, aquisição, distribuição e avaliação de sua utilização, na perspectiva da obtenção de resultados concretos e da melhoria da qualidade de vida da população[11].

A Política Nacional de Assistência Farmacêutica subdivide-se em três áreas programáticas: a) assistência básica ou primária; b) programas estratégicos de saúde; e c) programa de medicamentos especializados. Cada área visa atender necessidades específicas da população, abrangendo desde os medicamentos mais acessíveis aos mais restritos e custosos, inclusive os destinados ao combate de moléstias raras (BIANCHI, 2012).

Geralmente mantida pela rede municipal de saúde, com atuação complementar dos demais gestores, a assistência básica ou primária visa atender as enfermidades mais corriqueiras, que atinge a parcelas significativas da população.

 Embora não seja o foco do presente trabalho, razão pela qual deixaremos de abordar a fundo a questão, importante ressaltar que as políticas de assistência farmacêutica traçadas pelo Ministério da Saúde apontam algumas diretrizes para divisão de responsabilidades entre a União, Estado, Distrito Federal e Municípios no que toca o fornecimento de medicamentos.

  A jurisprudência, entretanto, em que pese não ser pacífica, tem se inclinado pela atribuição de responsabilidade solidária entre as três esferas de governo.  Neste sentido decisão do STF, por ocasião do julgamento do Agravo Regimental em Suspensão de Liminar nº 46/PE:

EMENTA: Suspensão de Liminar. Agravo Regimental. Saúde pública. Direitos fundamentais sociais. Art. 196 da Constituição. Audiência Pública. Sistema Único de Saúde - SUS. Políticas públicas. Judicialização do direito à saúde. Separação de poderes. Parâmetros para solução judicial dos casos concretos que envolvem direito à saúde. Responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde. Ordem de regularização dos serviços prestados em hospital público. Não comprovação de grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à segurança pública. Possibilidade de ocorrência de dano inverso. Agravo regimental a que se nega provimento (STF, Agr/SL, 2010).

Programas específicos do Ministério da Saúde garantem, por exemplo, o fornecimento gratuito de medicamentos para o combate a asma, diabetes, hipertensão a todos os que sejam portadores destas enfermidades, em todo o Brasil.

Os programas estratégicos de saúde concentram-se no controle das epidemias e endemias. O Ministério da Saúde dispõe à população, mediante distribuição aos gestores municipais de cada Região, medicamentos para tuberculose, hanseníase, leishmaniose, endemias focais, cólera, DST – HIV, diabetes, entre outras (BARATA; MENDES, 2010).

O Brasil tem vivenciado experiências exitosas no que toca a execução dos programas estratégicos de saúde, muitos deles prestigiados internacionalmente:

O programa de assistência farmacêutica aos portadores de HIV, último programa do gênero a ser implantado pelo SUS no país, recebeu o prêmio Gates de Saúde Global em 2003, da Fundação Bill & Melinda Gates, por ser considerado um modelo de programa para tratamento da Aids, ao combinar medidas preventivas com o acesso aos medicamentos antirretrovirais, e foi considerado, pela OMS, o mais avançado programa de tratamento da Aids realizado em países em desenvolvimento no mundo (WHO, Treatment Works, 2004).

O programa de assistência farmacêutica para doenças como a tuberculose e a hanseníase seguem, no Brasil, padrões internacionais estabelecidos pela OMS e têm se mostrado eficientes no controle dessas enfermidades[12].


5.  PARÂMETROS PARA IMPOSIÇÃO JUDICIAL DA PRESTAÇÃO PÚBLICA DE TRATAMENTOS E MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO NOS CASOS CONCRETOS.

No que se refere ao dever do Estado em relação à saúde, a questão do fornecimento de tratamentos e medicamentos de alto custo tem sido um dos temas mais polêmicos e que mais tem povoado os debates nos Tribunais pátrios.

Além das premissas até aqui estabelecidas, o amadurecimento doutrinário e jurisprudencial a respeito do tema nos permite adotar alguns parâmetros objetivos a serem observados na análise do caso concreto, dentre os quais os a seguir especificados.

5.1.Pedido inserido em uma política pública já formulada – análise das listas de medicamentos divulgadas pelo SUS;

A atuação do Poder Judiciário deve, precipuamente, concentrar-se na determinação de fornecimento de prestações já consolidadas como obrigatórias segundo as políticas públicas estabelecidas pela Administração, qualquer que seja a esfera de governo, por meio de qualquer ato normativo legítimo.

Em tais hipóteses é de se presumir que os entes federados tenham instituído as prestações determinadas baseando-se em sua prioridade e eficácia no atendimento à saúde para população e, ainda, na possibilidade financeira do Estado custear estas iniciativas, pois não seria razoável se comprometer com o que não pode cumprir.

É o que se vislumbra, por exemplo, em relação às listas de medicamentos a serem distribuídos gratuitamente pela União, Estados e Municípios. O não fornecimento de um medicamento constante em lista gera o direito público subjetivo de reivindicá-lo judicialmente, não pela ausência de política econômica ou social, mas por descumprimento de uma política pública já implementada.

Logo, uma determinação judicial no sentido de que seja fornecida um substância incluída em lista de medicamentos divulgada por qualquer dos entes federados não significa ingerência nas atribuições do Poder Executivo, mas a garantia de que a promessa de prestação especificada em uma política pública do governo seja devidamente prestada.

5.2. Opção por tratamento ou medicação de eficácia técnica comprovada, com preferência aos medicamentos genéricos e os já incluídos em lista do SUS;

A partir dos pressupostos estabelecidos no tópico anterior, o fornecimento de medicamentos na via judicial deve se pautar pela lista estabelecida pelo Sistema Único de Saúde.

Por serem objeto de análise por especialistas que compõe uma Comissão Técnica e Multidisciplinar de atualização da Relação de Medicamentos Essenciais (COMARE)[13], pressupõe-se que os fármacos mantidos e inseridos nas listas contam com segurança e eficácia suficiente para o uso que se destinam.

Por muito tempo se defendeu a ideia de concessão de medicamentos não incluídos em lista de medicamentos essenciais em razão da letargia do poder público em atualizá-la. Se o argumento já fez sentido, tal justificativa não encontra respaldo nos dias atuais, uma vez que a lista de medicamentos tem sido atualizada a cada dois anos, sendo as três mais recentes em 2012, 2010 e 2008.

A segurança e eficácia técnica da RENAME, entretanto, nem sempre são encontradas nos medicamentos solicitados ao Poder Judiciário, onde, por vezes, são demandados remédios em fase experimental, sem aprofundado estudo científico ou mesmo de eficácia farmacológica duvidosa.

Ainda que não se possa imputar omissão estatal nas revisões das listas de medicamentos, tem sido cada vez mais comum que juízes – adotando uma visão predominantemente individualista, típica da micro-justiça – determinem a compra de medicamentos de qualidade científica questionável, alguns dos quais sequer registrados na ANVISA, com base em meros receituários de médicos contratados pelos pacientes.

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Estudo realizado a partir dos dados colhidos da Secretaria Municipal de São Paulo em 2005 (Vieira; Zucchi 2007), constatou que parte considerável das decisões judiciais serviu para compra de medicamentos sem forte evidência científica:

Dos medicamentos antineoplásicos adquiridos via ação judicial, dois deles sequer estão registrados no Brasil e a maioria carece de mais ensaios clínicos controlados randomizados que fundamentem a sua eficácia.  Em resumo, US$ 281 mil foram utilizados para aquisição desses medicamentos, com total desconsideração da organização do SUS, que prevê o atendimento dessa demanda de outra forma. Além disso, este recurso foi gasto com medicamentos que, em sua maioria, não apresentam fortes evidências de benefícios aos pacientes.

Além de implicar em questões éticas referentes ao uso seguro de medicamentos, o que já seria suficiente para obstar determinação de fornecimento de substâncias sem eficácia comprovada, condenações neste sentido oneram de maneira drástica os entes federados. 

Em parte, a oneração excessiva se explica pela ausência de possibilidade de negociação capaz de barretear os custos dos medicamentos.  Enquanto os medicamentos incluídos em listas (a maioria submetida a processos licitatórios) são adquiridos em grandes quantidades e, portanto, negociados a preços bem mais baixos que o valor de mercado, os medicamentos concedidos judicialmente são comprados em pequenas quantidades, o que obriga o Poder Público a, sem licitação, comprar os medicamentos ao preço exigido pelo laboratório produtor.

Outros casos revelam que mesmo quando a condenação recai sobre princípio ativo incluído na RENAME, a determinação judicial especifica medicamento mais custoso que outros com a mesma eficácia.  Este foi o apontamento da Secretaria de Estado do Rio Grande do Sul em relação às condenações judiciais ao fornecimento do medicamento interferon para hepatite C, que mesmo possuindo a mesma eficácia e princípio ativo de outras drogas constantes na lista de medicamentos do Estado, custava aos cofres públicos 26 vezes mais que os similares (Valor Econômico, 2008).

Incompreensível, portanto, seja o Estado compelido a adquirir uma droga específica e mais dispendiosa, se existente a possibilidade de compra de medicamento genérico ou similar que possua os mesmos princípios ativos, com efeitos científicos devidamente comprovados[14].

Na linha do que se procurou defender no presente tópico já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal, pela inviabilidade de fornecimento de medicamentos que não constam nas listas nacionais ou municipais, através de voto da lavra da Ministra Ellen Gracie no julgamento da Suspensão de Segurança n. 3073/RN, conforme trecho a seguir transcrito:

Verifico estar devidamente configurada a lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem administrativa, porquanto a execução de decisões como a ora impugnada afeta o já abalado sistema público de saúde. Com efeito, a gestão da política nacional de saúde, que é feita de forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre o custo e o benefício dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir o maior número possível de beneficiários.

Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se deferir o custeio do medicamento em questão em prol do impetrante, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade.

Ademais, o medicamento solicitado pelo impetrante, além de ser de custo elevado, não consta da lista do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional do Ministério da Saúde, certo, ainda, que o mesmo se encontra em fase de estudos e pesquisas. 

Constato, também, que o Estado do Rio Grande do Norte não está se recusando a fornecer tratamento ao impetrante. É que, conforme asseverou em suas razões, “o medicamento requerido é um plus ao tratamento que a parte impetrante já está recebendo” (fl. 14).

Finalmente, no presente caso, poderá haver o denominado “efeito multiplicador” (SS 1.836-AgR/RJ, rel. Min. Carlos Velloso, Plenário, unânime, DJ 11.10.2001), diante da existência de milhares de pessoas em situação potencialmente idêntica àquela do impetrante.

5.3Condição econômica do paciente.

A análise da condição econômica da pessoa para fins de fornecimento de medicamentos ou tratamentos de saúde pelo Estado é questão que suscita dúvidas perante especialistas no assunto.

O primeiro enfrentamento jurídico diz respeito ao texto expresso da Constituição Federal (1988, art. 196), que assim dispõe em relação à saúde:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Ao assim dispor o Constituinte expõe o nítido propósito de ampliar o acesso à saúde a todas as pessoas indistintamente, rompendo com o regime constitucional então vigente, segundo o qual os serviços de saúde eram restritos aos filiados a regime previdenciário contributivo.

A garantia de acesso universal e igualitário à saúde do novo regime constitucional não deixa dúvidas de que seu desenvolvimento pelo Estado destina-se a todos, gratuitamente, sem distinções de qualquer natureza, inclusive financeira. Porém, necessário observar que este acesso universal e igualitário é exercido mediante políticas sociais e econômicas, o que conduz o intérprete a algumas reflexões quanto à limitação de seu fornecimento em determinados casos.

De maneira geral podemos entender políticas sociais e econômicas de saúde como aquelas que se destinam a atender a finalidade de bem estar físico, mental e social de uma coletividade de pessoas e, ainda que planejadas prioritariamente para segmentos da sociedade, são alcançadas por todos que queiram delas usufruir.

Nesta esteira, antes de uma garantia de acesso gratuito, por todos e para todos, a qualquer prestação de saúde – o que constitui uma utopia dada a finidade de recursos – a universalidade e igualdade preconizada na Constituição implica na possibilidade de que todos tenham idênticas possibilidade de acesso às políticas econômicas e sociais já estabelecidas [15].

Avançando no tema forçoso compreender que estas políticas são efetivadas mediante ações do Estado, isto é, mediante tomadas de decisões, edição de atos administrativos e, na maior parte das vezes, por meio de comandos normativos, ainda que de cunho infralegal como é o caso da Portaria 3.916 do Ministério da Saúde (1998) que instituiu a Política Nacional de Medicamentos. Este é, pois, o cerne da questão.

Ao programar uma política pública que garante, por exemplo, o fornecimento gratuito de medicamentos de combate aos efeitos da hipertensão, diabetes ou HIV o Estado não pode excluir do rol de beneficiários determinadas pessoas ao argumento de que elas teriam condições de arcar com tais medicamentos sem auxílio estatal, sob pena de incidir em inconstitucionalidade na medida em que estaria a estipular uma política social não universal.

Situação completamente diversa ocorre quando se trata de pleito referente à prestação não abrangida em política econômica ou social instituída pelo Poder Público, tal como ocorre nas demandas judiciais que cuidam de fornecimento de medicamentos não contemplados nas listagens oficiais do SUS. 

Tais prestações configuram, quando muito, um dever de conduta pontual da Administração, jungida a agir por força da excepcionalidade e mediante demonstração de risco ao perecimento de uma ou mais vidas[16], o que extrapola a noção de política pública. Não se tratando de política pública, impertinente falar em universalidade, sendo o caso de análise concreta do direito, que pode ser prestigiado ou não a depender das circunstâncias nas quais os demandantes se inserem, inclusive do ponto de vista socioeconômico.

No que se refere ao acesso igualitário aos serviços de saúde, tal acepção deve ser admitida como decorrência da igualdade em sentido material, isto é, deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades, inclusive, financeiras.

Nesta esteira, não se pode conceber como iguais, para fins de acesso a medicamento de alto custo não contemplado em política pública de governo, uma pessoa de renda ínfima para quem a despesa com o fármaco supera a própria remuneração e outra para quem a mesma droga sequer corresponderia 10% do salário.

 Cumpre lembrar que a Constituição Federal elegeu como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (1988, art. 3º, I) a construção de uma sociedade “livre, justa e solidária”.  A solidariedade é apresentada como vetor de toda seguridade social, inclusive da saúde, e como tal não pode deixar de prevalecer quando deparada com o interesse individual de receber medicamento gratuito de pessoa que por ele pode pagar.

A submissão da coletividade à satisfação de um interesse individual de quem pode custear com medicamentos de saúde (não inseridos em políticas públicas) ofende a ideia de sociedade justa e solidária, tal como preconizada da Carta Maior.  Neste sentido, ao confrontar o princípio da solidariedade com o pagamento de contribuições previdenciárias por servidores inativos, decidiu o STF que o princípio deve prevalecer, o que fez por ocasião do julgamento da ADI 3.128/DF, conforme trechos do voto da lavra do Ministro Joaquim Barbosa, a seguir transcritos[17]:

[...] a Constituição de 1988 elegeu como um dos objetivos fundamentais da nossa República Federativa ‘construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais’ (art. 3º., I e III). Optou sem sombra de dúvidas por um Estado de bem-estar social, calcado no princípio da solidariedade, que, aliás, como muito bem lembrado pelo ministro Sepúlveda Pertence na ADI 1.441 constitui a pedra de toque de todo o sistema da seguridade social. [...] Ora, o princípio da solidariedade, que guarda total coerência com a matriz filosófica da nossa Constituição, quando confrontado com o suposto direito adquirido de não pagar contribuição previdenciária, necessariamente deve prevalecer. [...] Em suma, entendo que a solidariedade deve primar sobre o egoísmo.

5.3.1 – A condição econômica segundo o grupo familiar, apontamentos parametrizantes para aferição de renda. 

Analisar a condição econômica do postulante da prestação de saúde não se resume à verificação de sua remuneração ou reserva patrimonial, tal aferição deve contemplar também os integrantes de seu núcleo familiar.  Pensar o contrário seria tornar inócua a investigação da condição econômica de pessoas desempregadas, crianças ou absolutamente incapazes, ainda que inseridas em famílias de situação financeira favorecida.

A família – base da sociedade (CF, art. 226) – não pode ser ignorada em seu dever de cuidado aos seus membros, a pretexto de tratar-se a saúde de um dever estatal. Um fato não se sobrepõe ao outro, especialmente quando se cuida de medidas excepcionais e consideravelmente onerosas ao Poder Público, como são os casos de fornecimento de medicamentos e tratamentos de alto custo.

Impor à coletividade um sacrifício ao qual a família não irá se submeter importa em subversão de valores, em conceder garantias à proteção da família sem lhe exigir qualquer dever de cuidados no âmbito de suas relações[18]. A base da sociedade restaria, pois, desprovida de função.

Para BIANCHI (op. cit.) a obrigação alimentar consagrada no art. 1.694 do Código Civil[19] abarcaria também as despesas do alimentando com o custeio de sua saúde, pois se o referido dispositivo confere proteção aos gastos com educação, com maior razão inserem-se em seu bojo os gastos com a saúde, porquanto inexoravelmente ligados ao próprio direito fundamental à vida.

Induvidoso que a comunidade entre pais e descendentes e a relação entre pessoas casadas ou em união estável – inclusive se do mesmo sexo – consagram uma vinculação familiar[20] apta a gerar a obrigação de auxílio recíproco com despesas de saúde. A dificuldade a ser enfrentada, entretanto, diz respeito à definição do conceito de família ou núcleo familiar para fins de colaboração quando se tratar de pessoas diversas das mencionadas, isto é, há dever de auxílio mútuo entre irmãos, avós e netos, tios e sobrinhos, padrastos e enteados, etc.?

Considerada a inexistência de norma específica, pertinente a aplicação analógica do art. 20, § 1º.  Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) para incluir, além das pessoas indicadas no art. 227 da Constituição Federal, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.

Lei 8.742 de 07 de dezembro de 2003.

Art. 20.  O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.

§ 1º  Para os efeitos do disposto no caput, a família é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.

Por fim, para aferição das possibilidades financeiras, deve-se analisar o Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS)[21] de cada um dos membros do grupo familiar, bem como as respectivas declarações de imposto de renda, que devem ser apresentadas voluntariamente pelos interessados, ou por determinação do juiz, como pressuposto para concessão de pedidos de tratamentos ou medicamentos de alto custo.

Segundo a sistemática sugerida, a própria noção do que venha a ser alto custo passará a ser vislumbrada também a partir da capacidade econômica familiar do postulante e não apenas sob o prisma do impacto causado aos cofres públicos.  A caracterização da onerosidade, portanto, deixa de ser estável, na medida em que admite oscilação condizente à respectiva realidade socioeconômica do grupo familiar. 

Neste contexto, a título de ilustração, se é certo que a manutenção de medicação ao custo de R$ 800,00 mensais em uma família cuja renda per capita é inferior a um salário-mínimo[22], o mesmo não pode se dizer, ao menos com a mesma segurança, de uma família com renda per capita superior aos R$ 3.000,00.

5.3.2 A verificação da condição econômica segundo a jurisprudência.

A maior parte das decisões judiciais sobre o assunto não trata da verificação da renda dos postulantes às prestações de saúde, ou, quando o fazem, apenas tangenciam sobre a questão, confirmando a situação de hipossuficiência declarada na petição inicial, como reforço argumentativo à obrigação estatal em conceder os medicamentos ou tratamentos pleiteados.

Em caso recente, apreciado pelo Tribunal de Justiça do Paraná, um paciente requereu o fornecimento de medicamento Afinitor[23] para o combate à neoplasia de fígado. Em sua defesa o Município alegou que o fármaco não está inserido em sua lista de medicamentos essenciais e que o pagamento do remédio ao postulante corresponderia a 1/3 do seu orçamento para custear toda a assistência farmacêutica básica para toda população. Sustentou ainda o ente municipal que não haveria comprovação de que o cidadão é pessoa hipossuficiente, considerando, inclusive, que todos os receituários médicos por ele juntados dão conta que o mesmo faz tratamento particular em São Paulo.

Não obstante as alegações do Município, o Tribunal de Justiça do Paraná, sem fazer menção aos critérios para constatar a falta de condições financeiras do requerente, determinou o fornecimento da medicação, independente da limitação financeira do Município.

AGRAVO DE INSTRUMENTO - MEDIDA DE PROTEÇAO A IDOSO C/C ANTECIPAÇAO DOS EFEITOS DA TUTELA - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTO (AFINITOR - EVEROLINO 10mg) A PESSOA PORTADORA DE CANCER DE FÍGADO - DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E À SAÚDE (CF, ARTIGOS 6º E 196 DA CF)- IMPOSSIBILIDADE DE RESTRINGIR DIREITO FUNDAMENTAL ASSEGURADO CONSTITUCIONALMENTE AO CIDADAO - PACIENTE SEM CONDIÇÕES FINANCEIRAS PARA ARCAR COM O CUSTO DO REMÉDIO - RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO, INDEPENDENTEMENTE DA LIMITAÇAO ORÇAMENTÁRIA. RECURSO CONHECIDO E NEGADO PROVIMENTO.VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Agravo de Instrumento nº 777780-6, da Comarca de Marechal Cândido Vara Cível e Anexos, em que é Agravante PREFEITURA MUNICIPAL DE PATO BRAGADO e Agravado MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ.

(TJ/PR, AI 777780-6)

Foi além o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS), na ocasião do julgamento do Agravo de Instrumento 70049439821/RS, em 27 jun. 2012. No caso, o Juízo Monocrático decidiu contrariamente aos interesses da parte autora, uma menor de idade, por entender demonstrado que sua família teria condições de arcar com o tratamento médico postulado.  O TJ/RS, entretanto, em decisão monocrática da lavra do Desembargador Rui Portanova, se manifestou no sentido de que cabe ao Poder Público prestar a saúde, independente da condição financeira dos requerentes, conforme ementa a seguir:

apelação cível. eca. fornecimento de medicamento. direito à saúde. obrigação do estado em garantir o direito a saúde independentemente das condições financeiras da família da menor. princípio da universalidade.

A condenação do Poder Público para que forneça tratamento médico ou medicamento à criança e ao adolescente, encontra respaldo na Constituição da República e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Do ponto de vista constitucional, é bem de ver que em razão da proteção integral constitucionalmente assegurada à criança e ao adolescente, a condenação dos entes estatais ao atendimento do direito fundamental à saúde não representa ofensa aos princípios da separação dos poderes, do devido processo legal, da legalidade ou da reserva do possível.

De acordo com o art. 196 da Constituição Federal a prestação de serviço público de saúde deve ser alcançada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país, de forma universal e igualitária.

O que significa que a universalidade se relaciona a gratuidade no acesso aos serviços prestados pela política pública instituída por meio do SUS.

Assim, associadas universalidade e gratuidade, o acesso aos bens e serviços no sistema de saúde público não deve atender somente aos mais pobres, mas a todos os cidadãos de forma igualitária.

A decisão em apreço peca por não analisar, com a devida profundidade, os princípios do acesso universal e igualitário à saúde, tratando da igualdade em seu sentido formal, deixando, assim, de tratar os desiguais de forma desigual. Ademais, desconsidera que os preceitos constitucionais referentes à proteção da criança não se limitam ao Estado, ao revés, estendem à família e à sociedade os mesmos deveres de cuidado.

O que mais chama atenção são os argumentos utilizados nos trechos a seguir transcritos:

Contudo, antes de mais nada, é bem de ver que a parte do presente processo não é nem o pai nem a mãe. A parte no presente processo, ou seja a pessoa necessitada do medicamento tão dispendioso é o menor, que por evidente, não tem nenhum rendimento.

Ao depois, mesmo que a família possuísse um boa situação econômica, tal fato, por si só, não parece suficiente para indeferir o pedido.

A exigência constitucional de atendimento do Estado, em relação a saúde, vale repetir, é universal. Não se há de fazer distinção, no fornecimento de medicamento como presente entre famílias ricas ou pobres.

Ao depois, dependendo do caso, em face da obrigação do Estado, não deve impressionar tanto o fato de se estar dando medicamento caro para uma criança de família com situação econômica regular.

Parece claro que, para além de o Estado ter obrigação de atender aos economicamente desfavorecidos, não se pode exigir que – em casos especiais como o presente – a emergência e a falta de saúde possa projetar a necessidade de sacrifício e - em alguns casos – até o empobrecimento da família por causa de dificuldade de saúde com um membro da família.

Enfim, da forma como nossos administradores – de todas as instâncias executivas – tem conduzido as questões financeiras da Nação não parece adequado ao Poder Judiciário, se preocupar um valor um tanto maior de um medicamento – comprovadamente necessário e vital para a vida de uma criança - a ser dado a uma família de situação econômica regular.

Ao aludir que a demandante é a menor de idade e não seus genitores, ressalta o fato de que aquela não teria qualquer rendimento, aduzindo, portanto, que a condição econômica que importaria é a da requerente isoladamente, sem qualquer contextualização com a família na qual está inserida.  A prevalecer tal raciocínio, uma pessoa desempregada será tida como hipossuficiente ainda que seu cônjuge ou companheiro seja milionário, o que, por óbvio, gera situações de iniquidade.

Também merece repúdio o argumento, tanto fácil quanto genérico, de que o Poder Executivo conduz equivocadamente as questões financeiras da nação ou, como mais corriqueiro, mencionar a corrupção e má gestão das políticas públicas de saúde como justificativa para o Poder Judiciário não se preocupar ao conceder um medicamento de alto custo.

Ainda que, lamentavelmente, a corrupção e a má gestão sejam práticas sabidamente existentes no país, tomar isto como um fato geral e inequívoco sem a verificação concreta do desvirtuamento de conduta ou da omissão estatal, significa anuência com o desleixo para com a coisa pública, aliando-se, assim, à vala comum da mediocridade em que residem os ditos maus gestores.

Este entendimento, entretanto, parece não ser o prevalente no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, donde, a nosso ver, as decisões referentes ao fornecimento de medicamentos não integrantes das listas do SUS se destacam pela razoabilidade de se buscar analisar, no caso concreto, a situação econômica do requerente como condição para o atendimento do pleito:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. CONDIÇÕES FINANCEIRAS PARA AQUISIÇÃO. RESPONSABILIDADE DO ENTE PÚBLICO. AFASTADA.

Apesar de os atestados médicos comprovarem a necessidade do tratamento postulado, as peculiaridades do caso concreto afastam, por ora, a obrigação do ente público. As condições financeiras do autor são suficientes para a aquisição dos medicamentos debatidos na ação.

AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO.

(TJ/RS, AI n.  70044296598, 2ª. Cam. Cível, DJ. 10.04.2012, Rel. Des. Almir Porto da Rocha Filho).

AGRAVO. SERVIÇO PÚBLICO DE SAÚDE. CIRURGIA. SOLIDARIEDADE. DISPONIBILIDADE. IRREVERSIBILIDADE. CONDIÇÕES FINANCEIRAS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.

1. Há solidariedade entre a União, os Estados e Municípios na prestação dos serviços de saúde. Jurisprudência pacífica do TJ/RS.

2. A prestação do serviço de saúde está subordinada à disponibilidade dos serviços dentro do Sistema Único de Saúde, segundo o fluxo pré-estabelecido pelo órgão gestor. A execução do serviço sem consideração da ordenação estabelecida administrativamente importa a quebra da garantia constitucional a todos do acesso universal e igualitário aos serviços. Contudo, a consulta para a realização do procedimento já foi realizada, tornando a tutela irreversível.

3. O fornecimento de serviço de saúde gratuito pelo Estado exige prova da impossibilidade econômico-financeira de a pessoa ou a sua unidade familiar em arcar com o custo do tratamento sem prejuízo da sua subsistência. Hipótese em que há, nos autos, comprovação da falta de condições financeiras da Agravada. Recurso desprovido. (TJ/RS, AI n. 70048447478, 22º. Cam. Cível, DJ. 24.05.2012, Rel. Des.ª Maria Isabel de Azevedo Souza)

Na mesma linha o Tribunal de Justiça de São Paulo:

MANDADO DE SEGURANÇA. MEDICAMENTO.

Hipossuficiência econômica. Não configuração Embora tenha a impetrante trazido aos autos relatórios médicos aptos a comprovar sua má condição de saúde, não fez a recorrente prova de não ter condições de arcar com os custos de seu tratamento. Ausência de direito líquido e certo. Sentença mantida. Recurso não provido.

(TJ/SP – Apel. em MS, n. 959.075.5/8-00, DJ. 30.12.2009, Rel. Vera Angrisani).

Sobre o autor
Nilson Rodrigues Barbosa Filho

Pós-graduado (Especialista) em Direito Público e em Direito Previdenciário, Mestrando em Direito Constitucional pelo IDP. Procurador Federal, atualmente exerce a função de Chefe do Serviço Regional de Assuntos Estratégicos da Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS em Brasília. Professor de Direito Previdenciário da FACIPLAC/DF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA FILHO, Nilson Rodrigues. O Poder Judiciário e o direito à saúde.: Parâmetros para intervenção judicial e a análise da condição econômica do postulante como critério para concessão de tratamentos e medicamentos de alto custo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3459, 20 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23288. Acesso em: 22 nov. 2024.

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