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O Poder Judiciário e o direito à saúde.

Parâmetros para intervenção judicial e a análise da condição econômica do postulante como critério para concessão de tratamentos e medicamentos de alto custo

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O dever do Estado de garantir o direito fundamental à saúde: reserva do possível X mínimo existencial.

Resumo: O presente trabalho cuida da possibilidade de intervenção judicial na determinação de prestação de serviços de saúde pelo Estado. A saúde é constitucionalmente tratada como direito de todos e dever do Estado, porém, as disposições relativamente amplas e de conteúdo programático impõem ao intérprete dificuldades em delimitar a extensão destes direitos, bem como dos deveres dos entes públicos. A partir de pesquisas doutrinárias e jurisprudenciais, e de apontamentos orçamentários sobre políticas públicas da área, será analisado o conceito jurídico da saúde e a eficácia normativa de suas disposições em nosso ordenamento, além da amplitude do princípio constitucional da universalidade, de modo a determinar os limites da obrigação estatal em prestá-la segundo a Constituição Federal e normas infraconstitucionais correlatas. Com os esclarecimentos referentes ao alcance obrigacional do Estado, objetiva-se aferir a legitimidade do Poder Judiciário no papel de garantidor destes direitos e os impactos orçamentários e sociais da ingerência judicial indevida ou excessiva nas políticas públicas de saúde. Sem a pretensão de esgotar este complexo tema, serão apresentados parâmetros objetivos para definir as hipóteses de intervenção judicial na resolução dos casos concretos, com destaque para análise da condição econômica do paciente. Comumente pouco observada, quando muito como reforço argumentativo, a análise da renda familiar do paciente como critério para o fornecimento de prestações ou medicamentos de alto custo homenageia o princípio da igualdade em sentido material e revela-se medida eficaz de redução dos gastos públicos.

Palavras-chave: Saúde. Dever do Estado. Limites. Intervenção Judicial. Parâmetros. Medicamentos. Alto Custo. Condição Econômica. Postulante. Critério.


INTRODUCÃO

O avanço das tecnologias e o amplo acesso aos meios de informação, em um mundo cada vez mais globalizado, têm propiciado uma maior conscientização popular a respeito das garantias e direitos que lhes são devidos, inclusive em relação aos direitos sociais, como: saúde, moradia, educação, segurança, entre outros.

Este amadurecimento tem levado as pessoas, diretamente ou por meio de órgãos legitimados, a reivindicarem tais garantias, mediante o exercício de um direito público subjetivo previsto na Constituição Federal, em disposições que por muito tempo foram encaradas como meras promessas constitucionais, verdadeiros enunciados de boas intenções, especialmente por sua positivação de forma programática ou direcionada à formulação de políticas públicas.

A conclusão de tratar-se de direito público subjetivo, reivindicável, portanto, através do Poder Judiciário, traz consigo um problema da mais alta complexidade, sobretudo em relação à saúde: como estipular os limites dos direitos dos particulares em obter os serviços e medicamentos de saúde? Qual o limite dos entes públicos em prestá-los? As respostas a estas indagações servem de indicação à delimitação campo de atuação do Poder Judiciário em litígios desta espécie. 

Apoiando-se na doutrina especializada, no cenário jurisprudencial pátrio e, especialmente, nos modelos adotados pelo sistema único de saúde (SUS) para formatação das políticas públicas de saúde e de distribuição de medicamentos, apresentaremos parâmetros objetivos a serem utilizados na resolução dos casos concretos, como sugestão de critérios impessoais abalizadores da legítima intervenção judicial nas demandas que lhes forem apresentadas.

De maneira mais específica, será abordado o papel do Poder Judiciário como garantidor de direitos fundamentais quando da determinação do fornecimento de tratamentos e medicamentos de alto custo e, na mesma medida, os riscos que uma intervenção judicial excessiva ou não criteriosa podem gerar às políticas públicas de saúde, com efeitos nefastos para toda sociedade.

Nas discussões sobre o tema já apreciadas pelos Tribunais pouco se fala da condição econômica do postulante de serviços médicos de alto custo, quando muito tais aspectos são ventilados como reforço argumentativo à obrigação do Estado em prestar assistência ao particular.

Sem antecipar qualquer posição a respeito do dever do Estado em fornecer tratamentos custosos, o que em última análise só é possível constatar em análise ao caso concreto, o fato é que condenações neste sentido representam gastos excepcionais a serem suportados por todos em detrimento de pouquíssimos.

Em homenagem aos princípios da solidariedade e da igualdade material, faz-se necessário analisar a condição econômica do postulante e dos membros do seu núcleo familiar, com base nas informações constantes no Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) e por outros meios, para que, em solidariedade com o sacrifício a ser suportado por toda a sociedade, a família, tendo condições para tanto, suporte integral ou parcialmente os custos do tratamento.


1.COMPREENSÃO DO CONCEITO E EFICÁCIA NORMATIVA DO DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. SAÚDE COMO DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO.

1. 1 Conceito jurídico de saúde

A Constituição não conceitua a saúde, se resguardando a tratá-la como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art. 196).

Percebe-se, entretanto, que os cuidados relacionados à saúde assumem contornos amplos, uma vez que ao enunciar as atribuições do sistema único de saúde o art. 200 da Constituição Federal elenca deveres relacionados à produção de medicamentos, vigilância sanitária e epidemiológica, saneamento básico, inspeção de alimentos e de água para consumo humano, meio ambiente, entre outros.

De forma mais objetiva, sem, entretanto, lançar um conceito próprio, a Lei 8.080 (1990, art. 2º.) define saúde como “um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”.

O referido diploma, em seu art. 3º, indica – de forma não exaustiva – fatores determinantes e condicionantes da saúde.

Art. 3º A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País.

Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social[1].

A melhor compreensão a ser feita da saúde é trazida pela Constituição da Organização Mundial da Saúde (1946): “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de afecções ou enfermidades”. Buscar fornecer a todos um estado de completo bem estar-físico, mental e social é, portanto, o compromisso assumido pelo Brasil.

1.2 Eficácia normativa – Saúde como direito público subjetivo.

A saúde, juntamente com a previdência e a assistência social são direitos sociais que compõe o sistema de seguridade social brasileiro, tal como preconizado no art. 194 da Carta Maior.

A doutrina classifica os direitos sociais como direitos de segunda geração ou dimensão e como tal se notabilizam pela necessidade de intervenção do Estado para sua promoção. Ao contrário dos direitos relacionados à liberdade individual, chamados direitos de primeira geração, os quais restam garantidos através do dever de abstenção do Estado em interferir no seu exercício, os direitos de segunda dimensão para serem usufruídos reclamam ações positivas do Estado.

Em última análise, são os direitos sociais que criam as condições materiais para a igualdade real e para o efetivo exercício da liberdade (SILVA, 2008, pp. 286-287):

Assim, podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitem melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.

Por serem comumente normatizados sob a forma de comandos gerais enunciativos de programas ou políticas públicas, os direitos sociais não estão imunes às críticas dos que questionam a sua real aplicabilidade. Se desvirtuadas da realidade econômica e social da nação, as disposições referentes aos direitos sociais seriam, nas palavras de LASSALE (2011), mera folha de papel.

Tal acepção não se coaduna com as normas constitucionais, mesmo as sociais instituídas de maneira programática, e dela não nos ocuparemos, pois, como adverte HESSE (1991), as normas constitucionais possuem força normativa própria capaz de impor tarefas e orientar condutas segundo as ordens nelas estabelecidas.

A seguridade social, onde se insere a saúde, foi proclamado direito de todos os homens pela Organização das Nações Unidas quando da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). De fato, impossível compreender a vida humana digna sem a proteção e promoção da saúde, do que decorre sua natureza de direito fundamental, repetida expressamente na Lei 8.080/90, como mencionado[2].

A propósito, a expressa disposição de aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, dentre os quais os direitos sociais (art. 5º. § 1º. da Carta Magna), faz superar os questionamentos sobre a executividade dos direitos de segunda geração, como bem explica BONAVIDES (2002, p. 66).

Da juridicidade questionada nesta fase, foram eles [direitos sociais] remetidos à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade. Atravessaram, a seguir, uma crise de observância e execução, cujo fim parece estar perto, desde que recentes Constituições, inclusive a do Brasil, formularam o preceito da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais

Ademais, as normas tidas como meramente programáticas, ainda que não possuam eficácia imediata em relação à sujeição ao seu conteúdo, implicam em um dever de conduta do qual o legislador e os gestores públicos não podem se afastar. Neste sentido (NERY FERRARI, 2001):

O seu simples surgir [normas programáticas] no sistema constitucional acarreta, como consequência, o informar a atuação do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, de tal modo que quaisquer de seus atos que se desviem da diretriz prevista no comando normativo da Lei Fundamental, viciam-se por inconstitucionalidade. [...] Tais normas, além de traduzirem um efeito inibitório para o Legislativo, Executivo e Judiciário, conferem ao seu destinatário o direito de exigir o cumprimento da prestação nela prevista, de modo que não altere o seu significado original, gerando, portanto, efeitos jurídicos, situações subjetivas.

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Além de servirem de norte a ser seguido, as normas programáticas impedem que os Poderes Executivos e Legislativos retrocedam em relação às conquistas já obtidas no sentido disposto na norma, no que a doutrina convencionou chamar de princípio da vedação ao retrocesso social (DERBLI, 2010, p. 382).

Constitui o núcleo essencial do princípio da proibição de retrocesso social a vedação ao legislador de suprimir, pura e simplesmente, a concretização de norma constitucional que trate do núcleo essencial de um direito fundamental social, impedindo a sua fruição, sem que sejam criados mecanismos equivalentes ou compensatórios. É defeso o estabelecimento (ou restabelecimento, conforme o caso) de um vácuo normativo em sede legislativa.

Não obstante instituído de maneira geral e ser garantido mediante políticas sociais e econômicas, não entendemos o direito à saúde como norma meramente programática, trata-se de um direito público subjetivo, reivindicável, pois, por todos, diretamente ou através dos órgãos legitimados, inclusive perante o Poder Judiciário, que terá o papel de garantidor da aplicabilidade dos direitos fundamentais.

Como ensina Luís Roberto Barroso (1998, p.103), trata-se de direito público subjetivo a ser exercido quando configurada a omissão Estatal, diferente das normas de conduta típica, que geram uma consequência jurídica sempre que um comportamento se enquadrar ao enunciado normativo.

Por explicitarem fins, sem indicarem os meios, investem os jurisdicionados em uma posição jurídica menos consistente do que as normas de conduta típica, de vez que não conferem direito subjetivo em sua versão positiva de exigibilidade de determinada prestação.

Assim, restará ao particular a faculdade de exercer seu direito público subjetivo de compelir a Administração a fornece-lhe as prestações e serviços de saúde, sempre que esta se mostrar omissa em seu dever de manutenção de uma condição humana minimamente digna de bem-estar físico, mental e social.

Todavia, o alto grau de abstração dos direitos sociais, em especial o direito à saúde, gera dificuldades em estremar as situações onde o particular pode legitimamente exercer o seu direito subjetivo de exigir o fornecimento de prestações de saúde, das hipóteses excessivas, onde, de acordo com a realidade econômica e social do Estado, a este não se pode imputar omissão a ser reparada.


2. UM ESTUDO SOBRE A ABRANGÊNCIA DO DEVER DO ESTADO EM RELAÇÃO À SAÚDE.

2.1Amplitude do princípio da universalidade da cobertura e do atendimento às prestações e serviços de saúde.

A Constituição Federal, em relação à Seguridade Social, expressamente previu o princípio da universalidade, evidenciando seu compromisso em dar máxima efetividade a estes direitos, albergando o maior número de pessoas ao maior número de proteções contra possíveis contingências sociais.

Por universalidade de cobertura entende-se a integralidade (ou a busca dela) de proteções e prevenções sociais possíveis, seja na área da saúde, previdência ou assistência social, enquanto a universalidade de atendimento diz respeito às pessoas beneficiadas com estas medidas protetivas.  Em termos de seguridade social a Constituição estabeleceu expressamente, por meio do princípio da universalidade, um dever de continua ampliação do grau de proteção social e do rol de seus beneficiários.

Forçoso notar que em relação à previdência e à assistência social a própria Carta Magna estabelece limites ao princípio da universalidade, nos termos dos seus arts. 201 e 203.  Ao instituir a previdência sob a forma de regime contributivo, priva do rol de beneficiários aqueles que não tenham vertido contribuições para o regime geral de previdência social. De igual modo, a Constituição (1988, art. 203) ao dispor que a assistência social será prestada a quem dela necessitar é clara ao limitar suas prestações, especialmente os benefícios concedidos em forma de pecúnia, a um grupo específico da população.  

Não é por acaso que a demonstração da necessidade, nos termos especificadamente definidos em lei, é requisito essencial à obtenção de benefícios assistenciais, tais como: bolsa família, benefício assistencial ao idoso, benefício assistencial ao deficiente, etc.

Em relação à saúde tais restrições não se evidenciam, muito pelo contrário, o art. 196 da Constituição ao garantir o acesso universal e igualitário às ações e serviços que visem a promoção, proteção e recuperação da saúde, enfatiza a universalidade em seu sentido mais amplo, sem quaisquer distinção entre beneficiários, isto é, independente da nacionalidade, condição econômica ou social.

2.2 Do mínimo existencial e da reserva do possível

2.2.1 Saúde e o mínimo existencial.

A premissa de acesso universal e igualitário à saúde pode levar ao equivocado entendimento de criação de um sistema público de saúde capaz de arcar, para todos os indivíduos, todas as prestações e tecnologias de saúde já desenvolvidas. Evidentemente tal concepção, dissociada da realidade histórica e econômica do país, não se sustenta.

Reconhecendo que a máxima amplitude da prestação dos serviços de saúde é uma diretriz permanente a ser seguida, mas impossível de ser exigível no momento atual, necessário se faz dimensionar qual, então, é o conteúdo exigível em relação ao dever estatal de fornecer os serviços de saúde.

Nesse contexto é imperioso fixar um conteúdo obrigacional mínimo a ser suportado pela Administração, que se inobservado significa negação ao próprio direito, uma inconstitucionalidade por omissão face o total esvaziamento do comando constitucional.  A respeito do mínimo existencial referente à saúde, BARCELLOS (2010, p. 808) ensina:

Muitas vezes não é possível, realmente, precisar em toda a sua extensão o efeito planejado pelo enunciado, mas apenas um conteúdo mínimo. E assim é porque no momento em que determinadas condições – que compõem esse mínimo – são desrespeitadas, há consenso de que o princípio foi violado.

De forma ilustrativa há consenso que um pronto-socorro desprovido de médicos, enfermeiros e elementos essenciais de atendimento, tais como seringas, luvas, remédios básicos, macas, etc., deixa de cumprir, ainda que minimamente, o dever constitucional de prestar saúde.  O mesmo não poderá se dizer da falta de equipamento importado para exames de alta complexidade, ou a inexistência, em tempo integral, de médicos de todas as especialidades neste mesmo pronto-socorro.

Na primeira hipótese a evidência do descumprimento do mínimo existencial gera um consenso a partir do sentido que razoavelmente se extrai do meio social e histórico do país, no segundo caso não. O mínimo existencial se faz mais percebido, portanto, quando inobservado, o que lamentavelmente ainda é muito comum no Brasil, um país que, não custa lembrar, se compromete ao acesso universal e igualitário às ações de saúde.

2.2.2 – Saúde e Reserva do Possível.

Se de um lado exige-se do Estado o acesso universal aos serviços de saúde, de outro é necessário reconhecer a escassez de recursos públicos, a tornar impossível o atendimento de todas as demandas sociais.

Independente do estágio de desenvolvimento do país, as reservas financeiras serão invariavelmente inferiores às demandas de saúde. Ao legislador e ao gestor público resta a árdua missão de fazer escolhas alocativas em relação aos escassos recursos financeiros que o Estado dispõe, devendo priorizar investimentos em contingências mais urgentes, que propiciem maior proteção social, ao maior número de beneficiários.

Sabidamente são escolhas trágicas, pois, no mais das vezes, optar por agir em determinada ação de saúde implica em deixar de atender, ao menos razoavelmente, outras áreas igualmente dignas de tutela estatal.

Decorrente da jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, a reserva do possível ou do financeiramente possível seria, na análise do caso concreto e nunca de modo absoluto, um óbice à prestação dos direitos sociais, na medida em que o Estado só poderia fornecer determinados serviços se dispusesse de reservas financeiras para tanto, sem desequilibrar seus demais compromissos constitucionais, especialmente os destinados ao atendimento do mínimo existencial.

Ao tratar do tema o Professor português Jorge Reis Novais (2010, p. 91) ensina:

Assim, a reserva do possível passa a ser essencialmente entendida como constituindo essa limitação imanente a este tipo de direitos [sociais]: mesmo quando a pretensão de prestação é razoável, o Estado só está obrigado a realiza-la se dispuser dos recursos necessários; daí a designação mais expressiva de reserva do financeiramente possível.

Então, e uma vez que nas situações típicas de Estado social, pelo menos em situação de normalidade, a escassez nunca é absoluta, mas moderada, a reserva do possível implica, mesmo da parte de um poder político empenhado na realização dos direitos sociais, uma definição de prioridades, implica escolhas e opções políticas de distribuição de recursos e, consequentemente, conflitos entre as opções públicas selectivas de alocação de recursos e as necessidades e interesses individuais no acesso a bens económicos, sociais ou culturais.

Embora verdadeira a premissa de que os recursos existentes sempre serão aquém das demandas sociais, não se pode fazer uso indiscriminado da reserva do possível como óbice às prestações de direitos de segunda dimensão. Para que o argumento seja verdadeiro, e não meramente retórico, o Estado deve comprovar, com apresentação de dados mensuráveis, que a adoção da medida postulada implica em grave risco às demais políticas públicas planejadas, comprometendo, inclusive, núcleo essencial de outros direitos, caracterizador do mínimo existencial.

Nesta senda já decidiu o Supremo Tribunal Federal quando do julgamento de Agravo Regimental em pedido de Suspensão de Tutela Antecipada n. 175, interposto pelo Estado do Ceará.  Em seu voto bem asseverou o Ministro Celso de Mello:

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da reserva do possível – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido essencial de fundamentalidade (STF, Agr/STA 175/CE, 2010).

Cumpre salientar que em relação à seguridade social a reserva do possível guarda ligação direta com o princípio expresso da seletividade e distributividade na prestação dos serviços e benefícios, art. 194, III da Carta Maior, que estampa a mesma necessidade de criteriosa análise das opções alocativas dos escassos recursos públicos.

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Sobre o autor
Nilson Rodrigues Barbosa Filho

Pós-graduado (Especialista) em Direito Público e em Direito Previdenciário, Mestrando em Direito Constitucional pelo IDP. Procurador Federal, atualmente exerce a função de Chefe do Serviço Regional de Assuntos Estratégicos da Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS em Brasília. Professor de Direito Previdenciário da FACIPLAC/DF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA FILHO, Nilson Rodrigues. O Poder Judiciário e o direito à saúde.: Parâmetros para intervenção judicial e a análise da condição econômica do postulante como critério para concessão de tratamentos e medicamentos de alto custo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3459, 20 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23288. Acesso em: 19 abr. 2024.

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