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O Poder Judiciário e o direito à saúde.

Parâmetros para intervenção judicial e a análise da condição econômica do postulante como critério para concessão de tratamentos e medicamentos de alto custo

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3.Intervenção do Poder Judiciário na prestação de serviços de saúde.

3.1Do cabimento da intervenção do Poder Judiciário como garantidor do direito fundamental à saúde.

Ao Poder Judiciário cumpre, precipuamente, velar pela correta interpretação das normas jurídicas, resguardando assim o respeito ao ordenamento jurídico, com especial observância aos direitos e garantias fundamentais.

Nos últimos anos tem ganhado força o movimento de ativismo judicial em relação aos direitos sociais, notadamente no que toca às políticas públicas de saúde, a partir, especialmente, da adoção da posição concretista pelo STF em relação à efetivação de direitos fundamentais nos casos de omissão dos poderes legitimados.

Tal fenômeno, entretanto, não é plenamente aceito por doutrinadores nacionais e estrangeiros, não, ao menos, no que toca a individualização de direitos instituídos em modalidade programática, como é o caso da saúde. Ao comparar a forma com que os tribunais brasileiros e os tribunais portugueses tratam o tema, o Professor português António José Avelãs Nunes (2011) pondera:

Não conheço nenhuma sentença de um tribunal português sobre o pedido de um cidadão no sentido de o tribunal condenar o Executivo a adotar as medidas adequadas à efetivação do direito (individual) à saúde do requerente (fornecimento de medicamentos, recurso a meios de diagnóstico, realização de cirurgia ou outro tipo de tratamento). [...] O universo português é, pois, a este respeito, radicalmente diferente do brasileiro.

[...] Quer dizer: o direito à saúde é um direito coletivo, um direito de todos ao acesso universal e igualitário às prestações dos serviços de saúde; um direito que o estado deve garantir através de políticas públicas sociais e económicas, e não apenas através do tratamento na doença e da entrega de medicamentos, mas antes, prioritariamente, através de medidas que visam a redução do risco de doença.

Por isso eu penso que a jurisprudência do STF tem feito tábua rasa deste preceito constitucional, concebendo o direito à saúde como um direito individual, cujo cumprimento pode ser exigido diretamente através de uma ação judicial.

A judicialização da saúde no Brasil também é assunto que tem gerado atenção e preocupação entre organismos internacionais da saúde, como a Organização Pan-Americana de Saúde[3] (2009):

Um fenômeno recente relacionado ao acesso a medicamentos de alto custo é sua relação com o sistema legal a partir do que se conhece como judicialização do acesso. O recurso ao sistema judiciário como mecanismo para tornar efetivo o acesso a medicamentos e tratamentos que os indivíduos não obtiveram do sistema público de saúde por vias habituais é um fenômeno crescente e merece especial atenção. Por um lado, permite ao cidadão fazer valer seus direitos legais à saúde como parte de seus direitos humanos fundamentais. Por outro, sua utilização sistemática pode derivar em disfunções que tornam duvidosos os objetivos de uso racional e eficiente de recursos sanitários limitados. Além disso, também pode resultar em um conjunto de decisões, juridicamente vinculantes, mas ineficientes em termos de gasto público. Trata-se de um problema nacional [referindo-se ao Brasil], centralizado na interpretação constitucional do direito à saúde e do acesso aos medicamentos, interpretação realizada independentemente da evidência científica e de critérios de custo-efetividade, e que podem colocar, em algumas situações, em risco a sustentabilidade do sistema.

Não obstante os receios anunciados, legítimos e com os quais concordamos, entender que o Poder Judiciário não pode ter qualquer ingerência em relação à saúde, implicaria em permitir que o conteúdo normativo sobre saúde – instituído de forma programática – pudesse vir a ser reduzido a um vazio de efetividade, a depender da atuação de cada gestor ou ente legislativo. Não restaria, nestas hipóteses, qualquer garantia à preservação do núcleo essencial dos direitos sociais.

Nesta esteira, sempre que constatada a omissão estatal, violadora do mínimo existencial e acarretadora da negação ao próprio direito vindicado, surge ao Poder Judiciário o dever de atuar como concretizador dos direitos fundamentais previstos na Constituição, este é, portanto, seu inequívoco espaço de atuação no que se refere aos direitos públicos de saúde.

3.2Dos limites à atuação Judicial.

3.2.1Do respeito às políticas públicas legitimamente instituídas e a impossibilidade de substituição da vontade do legislador e do administrador público pela vontade do Juiz.

Ao apresentar a saúde como um direito a ser garantido mediante políticas sociais e econômicas, a Constituição delega aos Poderes Legislativo e Executivo, no âmbito de suas atribuições, o dever de executá-las dando concretude ao comando constitucional.

Fazer políticas públicas, por sua vez, é fazer escolhas – sempre difíceis – de alocação de recursos públicos para o atendimento das demandas mais caras à sociedade, conforme o olhar discricionário do gestor, que deverá pautar-se em consonância com o mencionado princípio da seletividade e distributividade.

Nesta senda a função do Judiciário é de serena vigilância e atuação residual, isto é, deve ser provocado a agir apenas nos casos de comprovada omissão do Legislativo ou Executivo, em tal medida que o conteúdo mínimo exigível do direito em questão esteja comprometido ao ponto de esvaziar-se. 

Atuações de excessivo desvirtuamento, que gerem gastos exorbitantes para benefícios absolutamente restritos, especialmente quando medida comprovadamente mais eficaz e menos onerosa seja objetivamente previsível, também autorizam a intervenção judicial para manter a eficiência administrativa e garantir a máxima efetividade dos direitos fundamentais.

Assim, a intervenção do Poder Judiciário deve ter a marca da excepcionalidade, restrita aos casos de excessiva omissão ou exagerado desvirtuamento das políticas públicas reclamadas pela população. A discordância pessoal das escolhas do Administrador não concede ao Juiz poderes de substituir sua vontade à do gestor.

Quando verificada a adoção de políticas públicas para tutela de bens jurídicos sociais relevantes, ainda que a medida descontente a maioria da população representada, o Judiciário deve conter a própria atuação, sob pena de quebra da harmônica separação dos Poderes, ingerindo em decisões que por força da Constituição, competem aos representantes eleitos pelo voto popular.

A respeito do tema comenta (BARROSO, 2010, p. 891):

A extração de deveres jurídicos a partir de normas dessa natureza e estrutura deve ter como cenário principal as hipóteses de omissão dos Poderes Públicos ou de ação que contravenha a Constituição. Ou, ainda, de não atendimento do mínimo existencial.

[...]

Em suma: onde não haja lei ou ação administrativa implementando a Constituição, deve o Judiciário agir. Havendo lei e atos administrativos, e não sendo devidamente cumpridos, devem os juízes e tribunais igualmente intervir. Porém, havendo lei e atos administrativos implementando a Constituição e sendo regularmente aplicados, eventual interferência judicial deve ter a marca da autocontenção[4].

3.2.2 Impacto orçamentário das decisões judiciais

A quantidade de ações judiciais em que se pleiteia a prestação de serviços na área de saúde tem crescido vigorosamente no Brasil, assim como o montante dos gastos decorrentes das condenações impostas pelo Poder Judiciário.

As despesas oriundas das condenações judiciais já são vultosas o suficiente para serem percebidas no orçamento público, que dificilmente passa incólume a tais intervenções. O quadro abaixo apresenta a evolução dos gastos realizados pelo SUS com fornecimento de medicamentos e tratamentos de saúde decorrentes de decisões judiciais no âmbito da União[5].

EXERCÍCIO

QUANTIDADE DE NOVOS PROCESSOS

VALOR EMPENHADO (R$)

2007

679

17.530.346,45

2008

2.273

47.660.885,29

2009

1.782

83.165.223,93

2010

1.294

124.103.206,10

2011

1.935

198.953.470,14

TOTAL

8.553

482.094.790,20

É de se notar que nos últimos 5 anos a quantidade de processos judiciais para fornecimento de medicamentos ou tratamentos em desfavor da União quase triplicou, enquanto os gastos resultantes destas ações em 2011 superam em mais de 11 vezes o que se gastou em 2007.

A repercussão no orçamento tende a ser ainda mais gravosa nos Estados e Municípios, os quais também estão sendo cada vez mais acionados judicialmente para fornecer medicamentos ou tratamentos de saúde[6].

Reportagem do Valor Econômico (2008) revela que em 2007 no Estado de São Paulo 40% do orçamento do programa de medicamentos excepcionais foram destinados, por força de decisão judicial, para aquisição de medicamentos que atenderam a 30 mil pacientes ao longo do ano, o que representou menos de 8% das pessoas que a Secretária de Saúde planejava atender com todo o programa para o exercício.

Assim como ocorre em relação à União, no estado mais populoso do país há uma tendência de aumento de despesa pública com aquisição de medicamentos e fornecimento de tratamentos de saúde por força de decisões judiciais. Matéria divulgada na internet pelo Estadão (2011) revela que a Secretária de Saúde do Estado de São Paulo desembolsou mais de R$ 700.000.000,00 (setecentos milhões de reais), o que corresponde a quase metade do orçamento específico de assistência farmacêutica, para dar cumprimento a cerca de 25 mil ações judiciais.

Algumas demandas judiciais chamam atenção pelo impacto que causam às finanças públicas, como é o caso do pedido de fornecimento do medicamento importado soliris, indicado para amenizar os efeitos de uma forma rara de anemia, denominada hemoglobinúria paroxística noturna (HPN).  Trata-se do medicamento mais caro do mundo segundo a revista Forbes (2010), sendo que cada frasco de 30 mililitros custa em torno de onze mil reais, o que pode resultar num gasto anual de mais de US$ 409 para cada paciente.

Conforme reportagem da Revista Época (2012), este montante (aproximadamente R$ 800.000,00) é o que o Estado de São Paulo arca por ano com um único paciente, que judicialmente obteve o direito ao tratamento, após recusar o transplante de medula oferecido pela Secretaria de Saúde do Estado (que pode curar a doença) e que ao SUS custaria aproximadamente R$ 50.000,00.

Para que se tenha uma ideia do impacto orçamentário que a concessão de indiscriminada de medicamentos de alto custo pode causar, basta verificar a situação de 4 condenações judiciais para fornecimento de soliris em Fortaleza. O cumprimento da determinação implicará no comprometimento de 67% do valor repassado pelo governo estadual para compra de medicamentos básicos do município inteiro, que conta com mais de um milhão de habitantes[7].

O atendimento de pleitos individuais como estes fazem com que o Brasil, país com precariedades gritantes em relação ao atendimento público de saúde, forneça, em detrimento de muitos, medicamentos de altíssimo custo para pouquíssimos, tratamentos estes que de modo geral não são fornecidos nem por países referência em saúde de qualidade, como Canadá, Estados Unidos, Inglaterra, Escócia, etc.[8].

 Independente da legitimidade da intervenção judicial, o que não se pretende discutir neste tópico, é irrefutável que os valores despendidos com decisões judiciais são altos o suficiente para pôr em risco a fiel execução de políticas públicas previamente planejadas.

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3.2.3 Necessidade de uma abordagem gerencial das políticas públicas: micro-justiça X macro-justiça.

Uma crítica recorrente ao excesso das decisões judiciais que condenam o sistema único de saúde a fornecer tratamentos ou medicamentos repousa na visão restrita do juiz, que focado na questão individual discutida nos autos ignoraria o reflexo de sua decisão aos demais beneficiários do sistema de saúde pública.

Cremos que a crítica seja pertinente e, embora não justifique decisões açodadas, é natural que o Juiz esteja mais afeto à análise do direito individualmente postulado, afinal, diante de si se faz presente uma pessoa cuja obtenção do pleito vindicado pode significar a própria manutenção da vida. A esta justiça focada no caso concreto, chamamos micro-justiça[9].

Ao administrador, por sua vez, compete adotar escolhas estratégicas, com aporte em dados técnicos, estatísticos e gerenciais que lhe façam ter a convicção que suas opções de políticas públicas se destinam a garantir a maior eficiência em relação à saúde, de modo a se converter em atendimento mais amplo ao maior número de pessoas, de acordo com a escala de prioridades previamente definidas, conforme exige o bom senso administrativo e os princípios constitucionais da eficiência (art. 37), da universalidade de cobertura e atendimento, e da seletividade e distributividade na prestação de benefícios e serviços (art. 194, I e III). A esta justiça chamamos de macro-justiça.

Talvez uma das críticas mais relevantes em relação à miopia judicial típica da micro-justiça diga respeito à análise feita pelo julgador em relação aos impactos orçamentários de sua decisão.

É equivocado se limitar a pensar, mesmo em sede de demandas individuais, se a reserva financeira do Estado suporta, sem comprometimento à sua organização, a prestação de determinado serviço a determinada pessoa. A pergunta a ser feita é: pode o Estado fornecer este mesmo tratamento a todas as pessoas que se encontram na mesma situação?

Pensar o contrário e prestigiar apenas aqueles que deduziram seus pedidos em Juízo, seria privilegiar as pessoas mais esclarecidas que, em geral, tem condições de contratar advogados, em detrimento de uma maioria que ficaria desprotegida.  Seria consagrar a quebra da isonomia.

Neste sentido já se pronunciou o STF quando do julgamento do pedido de Suspensão de Segurança 3741/2009 aduzido pelo Município de Fortaleza, contra decisão liminar o Tribunal de Justiça do Ceará, que determinou a aquisição de medicamentos em sede de Mandado de Segurança individual.  

Em que pese denegado o pedido de suspensão da segurança, o Supremo Tribunal Federal asseverou a necessidade do julgador  observar se o SUS tem condições de suportar a extensão dos efeitos da decisão a todos os outros indivíduos que se encontrem na mesma situação, ocasião em que transcrevemos parte do voto do então Relator, Ministro Gilmar Mendes:

Nesses casos, a ponderação dos princípios em conflito dará a resposta ao caso concreto. Importante, no entanto, que os critérios de justiça comutativa que orientam a decisão judicial sejam compatibilizados com os critérios das justiças distributiva e social que determinam a elaboração de políticas públicas. Em outras palavras, ao determinar o fornecimento de um serviço de saúde (internação hospitalar, cirurgia, medicamentos, etc.), o julgador precisa assegurar-se de que o Sistema de Saúde possui condições de arcar não só com as despesas da parte, mas também com as despesas de todos os outros cidadãos que se encontrem em situação idêntica. (STF, SS 3741/CE, 2009)

De fato, se todos os usuários do sistema público de saúde devem receber cuidados idênticos e gozar dos mesmos serviços indistintamente, deve ser vedado o deferimento de medida individual que não possa – por inviabilidade econômica ou porque imediatamente excludente de direito alheio – ser estendida a todos que se encontrem em situação similar (HENRIQUES, 2010, p. 832).

Esta é a tensão ente a justiça do caso concreto (micro-justiça) e a justiça social planejada por meio de políticas públicas (macro-justiça). Nestas novas e cada vez mais frequentes demandas, ao Judiciário compete ampliar o leque de visão para, além das informações trazidas pelo Autor, buscar dimensionar os efeitos (negativos) que sua decisão pode gerar, inclusive em termos de precedência, ao sistema único de saúde, e, por conseguinte, à sociedade.

Aos entes federados compete comprovar objetivamente, por meio de elementos mensuráveis, o comprometimento que a decisão judicial poderá causar no planejamento da saúde em sua esfera de atuação, com riscos à desorganização administrativa.

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Sobre o autor
Nilson Rodrigues Barbosa Filho

Pós-graduado (Especialista) em Direito Público e em Direito Previdenciário, Mestrando em Direito Constitucional pelo IDP. Procurador Federal, atualmente exerce a função de Chefe do Serviço Regional de Assuntos Estratégicos da Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS em Brasília. Professor de Direito Previdenciário da FACIPLAC/DF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA FILHO, Nilson Rodrigues. O Poder Judiciário e o direito à saúde.: Parâmetros para intervenção judicial e a análise da condição econômica do postulante como critério para concessão de tratamentos e medicamentos de alto custo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3459, 20 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23288. Acesso em: 25 abr. 2024.

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