O que aqui se pretende é a análise da responsabilidade penal dos agentes infiltrados em organizações criminosas que porventura venham a praticar condutas delituosas. Note-se que, em nenhum momento, afirmou-se que a infiltração de agentes pressupõe o cometimento de crimes por parte destes.
Além disso, deve-se registrar que o propósito do estudo é fornecer elementos para a opção legislativa por uma regra mínima de exclusão da responsabilidade penal do agente infiltrado. Regra capaz, portanto, de ser aplicada em todos as hipóteses em que o sujeito da operação deva ser resguardado, ao menos no momento inicial do exame do caso.
Aventando a questão do risco da prática do crime, considera Rafael Pacheco (2007, p. 126):
Muitos autores que escrevem sobre o tema da infiltração policial são categóricos quanto à idéia de que se o agente não participar da empreitada criminosa pode comprometer a finalidade perseguida pelo instituto e não haveria possibilidade de execução da medida senão com a aceitação de prática de crime por parte do infiltrado em algum momento de sua atuação.
O referido autor (2007, p. 126), todavia, mostra-se contrário ao entendimento dessa parcela da doutrina, ponderando:
A preocupação é justa e prudente, mas a afirmativa não é absolutamente correta, pois levando-se em conta que a maioria das organizações criminosas está em situação pré-mafiosa, empresarial, torna-se factível integrar-se em sua estrutura sem o cometimento obrigatório de crimes. O cometimento de crime como uma prova de fidelidade, em regra, são praticadas por organizações criminosas do tipo tradicional, mafiosas ou por aqueles grupos de extrema violência. (Grifo nosso)
Consoante leciona Vanessa Dias Ferreira (ONETO, 2005, p. 80, apud PACHECO, 2007, p. 126), valendo-se de pesquisa bibliográfica de artigos referentes às undercover operations norte-americanas, existem possibilidades quanto ao nível de infiltração do agente na organização criminosa, o que pode classificá-la em leve ou aprofundada, a saber: a) operações light cover (infiltração leve), e b) operações deep cover (infiltração profunda).
Resumidamente, pode-se identificar cada uma dessas modalidades por meio das características a seguir apontadas:
As light cover não duram mais de seis meses, não exigem permanência contínua no meio criminoso, demandam menos planejamento, os agentes mantém sua identidade e seu lugar na estrutura policial. Podem constituir uma única transação ou somente um encontro para recolhimento de informações”. As deep cover têm duração superior a seis meses, exigem total imersão no meio criminoso, os agentes assumem identidades falsas e os contatos com a família ficam irregulares podendo até ser suspensos totalmente. As deep cover são mais perigosas e envolvem problemas logísticos, humanos e éticos. (PACHECO, 2007, p. 127) (Grifo nosso)
Não há que se interpretar equivocadamente as considerações realizadas acima. É incorreto afirmar que em “infiltrações leves” não haverá a prática de delitos por parte do agente, assim como também é falsa a assertiva de que as “infiltrações profundas” não podem existir dissociadas dessas práticas. O fato é que a prática de condutas criminosas por parte dos agentes infiltrados tem mais probabilidade de se verificar nas infiltrações profundas do que nas leves.
Nas palavras de Pacheco (2007, p. 129):
Indiferente ao tipo de infiltração pretendida, certo é que não há como negar que estar infiltrado pressupõe correr o risco de praticar o ilícito e é daí que se depreende a preocupação quanto à responsabilidade do agente.
Feita essa abordagem inicial, deve-se, mais uma vez, apontar o fato de ter o legislador perdido uma importante oportunidade de disciplinar a questão da responsabilidade penal do agente infiltrado quando da edição da Lei nº 10.217/01, ou ainda, dos limites a serem observados por esses sujeitos – o que já ajudaria bastante a doutrina na tarefa de tratar da responsabilidade. Como em tantos outros assuntos relevantes, acabou se omitindo e comprometendo sobremaneira a aplicação do instituto da infiltração policial.
Registre-se, por oportuno, que a Lei nº 9.034/95, no inciso I do seu art. 2º, dispositivo que, como se sabe, foi vetado quando da sanção presidencial, estabelecia “a infiltração de agentes da polícia especializada em quadrilhas ou bandos, vedada qualquer co-participação delituosa, exceção feita ao art. 288 do Decreto–lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 Código Penal, de cuja ação se preexclui, no caso a antijuridicidade”. (Grifo nosso)
Essa exclusão de antijuridicidade, que se fundamentava no exercício regular de um direito ou no estrito cumprimento de dever legal, relacionava-se, como pode ser inferido, à conduta do infiltrado de simplesmente aderir à quadrilha ou bando[1], passando a figurar como um dos seus membros. De fato, não há qualquer cabimento em responsabilizar o agente apenas por integrar o grupo de criminosos se este é, justamente, o objetivo primeiro da infiltração.
Explicando a questão, José Lafaieti Barbosa Tourinho (2003, f. 6), acrescenta:
Embora a conduta do agente seja típica (ao se associar em quatro ou mais pessoas para a prática de crimes, a ação estaria tipificada no art. 288 do Código Penal), não se apresentaria ela contrária ao ordenamento jurídico. Ao revés, convergiria com a vontade do legislador, plasmada no inciso V do art. 2º da Lei 9.034/95 (norma permissiva). Não seria razoável admitir-se uma ‘infiltração’ em associação criminosa sem que se permitisse ao agente dela fazer parte. Em uma tal situação, ou a norma proíbe (art. 288 do Código Penal) ou ela permite (art. 2º, inciso V, da Lei 9.034/95) a participação do agente na quadrilha ou bando.
No mesmo sentido, manifesta-se Rafael Pacheco (2007, p. 130):
[...] quanto aos crimes associativos ou plurissubjetivos de quadrilha ou bando e associação criminosa tipificada, sentido algum haveria em imputar a prática dos referidos crimes se é a própria lei que permite ao policial atuar em tais grupo, agindo, portanto, no exercício regular de um direito.
Pelos próprios argumentos elencados acima, esta conduta inicial, meramente associativa, não deve ser considerada o ponto principal da discussão ora travada.
Corroborando tal entendimento, Pacheco (2007, p. 131) explicita:
O grande problema, contudo, não está na adesão do agente aos grupos e na prática de crime associativo; o cerne da questão está na decorrência de suas ações durante a infiltração, na eventual co-participação delituosa.
Eduardo da Silva Araújo (2003, p. 89) aponta a ausência de tipicidade da conduta do agente que adere ao grupo, esclarecendo ser possível, em momento posterior (na hipótese de não ser aceito o afastamento da tipicidade), excluir-se sua antijuridicidade em razão de a atuação se efetivar no estrito cumprimento de dever legal. Nos seguintes termos:
Nesse sentido, apesar da ausência de expressa previsão de causa excludente de antijuridicidade ou ilicitude, não haverá na conduta do policial infiltrado tipicidade em relação às condutas de formação de quadrilha ou bando (art. 288 do Código Penal) e de associação para fins de praticar os crimes previstos nos arts. 12 e 13 da Lei nº 6.368/76 (art. 14 da mesma Lei)[2], em razão da falta da vontade livre e consciente para a prática desses crimes. Ademais, ainda que assim não se considere, o policial atua no estrito cumprimento de dever legal (art. 23, inciso III, do Código Penal).
Passando ao exame da problemática central da responsabilidade penal dos infiltrados, e tratando da lacuna existente na legislação pátria acerca dos limites a serem observados pelos agentes policiais quando da realização de infiltração devidamente autorizada, conclui Isaac Sabbá Guimarães (2002, p. 21, apud PACHECO, 2007, p. 130):
Não há previsão expressa sobre a conduta a ser seguida pelo agente infiltrado, especificamente sobre os atos que eventualmente possam configurar crime, fato este que inapelavelmente terá de ser tratado pela doutrina e pela jurisprudência dos tribunais, pois, em inúmeras situações a infiltração levará a alguma conduta criminosa que não poderá ser recusada sob pena de malograr as investigações.
É cediço que a atividade de infiltração requer dos seus agentes preparação para lidar com circunstâncias diversas dentro da organização criminosa, notadamente por não ser possível prever as conseqüências dessa atividade. Dentre essas circunstâncias, encontra-se a prática de algum delito por parte do policial infiltrado, pois “a negativa do agente infiltrado em participar de alguma atividade criminosa poderá despertar a desconfiança dos integrantes da associação, com riscos à sua integridade física ou à própria vida”. (TOURINHO, 2003, f. 6)
Nesse contexto, algumas possibilidades se apresentam, fazendo-se necessário separá-las por grupos, de acordo com o tratamento da responsabilidade penal a ser empregado em cada caso.
Inicialmente, deve-se distinguir duas classes de práticas delituosas perpetradas no âmbito das organizações criminosas, a saber: a) os crimes praticados em razão da provocação ou instigação por parte de agente, e b) os crimes praticados com a participação do agente infiltrado na organização criminosa.
Na primeira hipótese, o agente faz nascer no autor do delito a vontade de praticar o crime, ou ainda, instiga-o a exteriorizar essa vontade, praticando a conduta delituosa. Com isso, o agente infiltrado provoca a infração. Aqui, dá-se ao caso o tratamento do delito provocado.
A diferenciação entre a figura do agente infiltrado e do agente provocador, apresentada no capítulo antecedente, deve ser, aqui, complementada, de maneira que algumas considerações acerca da responsabilidade penal do agente infiltrado que acaba por provocar o delito, atuando com excesso, sejam trazidas à baila.
Conforme leciona Eduardo Araújo da Silva (2003,p. 116):
A figura do agente infiltrado não se confunde, pois, com a do agente provocador, que deliberadamente desencadeia práticas ilícitas pelos integrantes de uma organização criminosa, sem dela fazer parte, para em seguida impedir a consumação do resultado.
O referido autor (2003, p. 116-117) aproveita para apontar os elementos que identificam o delito provocado, nos seguintes termos:
A propósito, podem ser identificados como elementos constitutivos do delito provocado: a) a incitação por parte do agente provocador para determinar a vontade delituosa do indivíduo provocado (elemento objetivo); b) a vontade de o agente provocador determinar a prática de um crime para possibilitar a punição de seu autor (elemento subjetivo); c) a adoção de medidas de precaução para evitar-se que o crime provocado se consume.
Nesse sentido, a Súmula 145 do Supremo Tribunal Federal, pela qual resta estabelecido que “não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”.
Sintetizando posicionamento da doutrina nacional, Silva (2003, p. 118):
À luz da Constituição brasileira, a ilicitude da prova obtida mediante provocação decorre da ofensa à dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III) e da violação à segurança jurídica, resultante da própria definição de Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput), que é aquele regido por leis que visam garantir a estabilidade da vida em sociedade.
Excede, portanto, as limitações concernentes ao exercício da infiltração, o agente que dá causa à prática do delito. Os excessos na atuação policial configuram, como se sabe, o crime de abuso de autoridade, pelo qual deverá responder o agente.
Necessário enfatizar, nessa oportunidade em que se vislumbram possíveis excessos praticados pelos agentes infiltrados, que o cometimento do delito por parte destes deve ser “uma conseqüência necessária e indispensável para o desenvolvimento da investigação, além de ser proporcional à finalidade perseguida, de modo a evitar ou coibir abusos ou excessos”. (BECHARA e JESUS, 2005, f. 3)
Por outro lado, quando o delito se dá com a participação do agente infiltrado, vislumbra-se, em um primeiro instante, duas hipóteses: a) o crime guarda relação com as atividades desenvolvidas pela organização; e b) a infração perpetrada pelo infiltrado nada tem a ver com referidas atividades. Tem-se, no primeiro caso, a prática de delitos ligados às atividades “próprias” da organização criminosa; e no segundo, alheios ao âmbito de atuação dos referidos grupamentos.
É possível dizer que na primeira hipótese apresentada, a conduta do agente não pode ser considerada de todo imprevisível. Barbosa Tourinho (2003, f. 6) considera:
[...] o juiz, ao conceder a autorização e ao delimitar o ‘mandato’ conferido ao agente, de certa forma limita a atividade deste. Destarte, se ao agente foi dada a missão de investigar uma quadrilha de receptadores de veículos furtados ou roubados, no máximo poderia também eventualmente receber ou adquirir tais produtos. Não poderia, por exemplo, praticar homicídios alegando que estava participando das atividades da quadrilha, pois a sua atuação era na esfera daqueles crimes contra o patrimônio.
A despeito dessa pequena diferenciação, bem como das opiniões de que a limitação contida na autorização judicial tornaria a infração praticada desprovida de antijuridicidade, por representar o estrito cumprimento de um dever legal, o tratamento a ser dado quanto à responsabilidade penal do agente é o mesmo em ambas as circunstâncias e o estudo da natureza jurídica dessas condutas será realizado a seguir.
A NATUREZA JURÍDICA DAS CONDUTAS DELITUOSAS PRATICADAS POR AGENTES EM VIRTUDE DA INFILTRAÇÃO EM ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS
Já foi visto que a atuação dos agentes infiltrados não é compatível com a provocação de membros da organização criminosa para a prática de delitos. Mais do que isso: que essa situação não se coaduna com a ordem jurídica vigente.
Ademais, constatou-se que a mera adesão do agente à quadrilha ou bando e à associação criminosa não configura crime. Nesse particular, há quem defenda a exclusão da tipicidade por ausência de dolo, e aqueles que sustentam a inexistência de antijuridicidade ou ilicitude, considerando se tratar de hipótese de estrito cumprimento do dever legal.
Cumpre analisar, portanto, qual a resposta jurídica a ser dada às hipóteses de cometimento de delitos por agentes infiltrados em organizações criminosas. Referido agente deve ser responsabilizado penalmente? No caso de resposta negativa, onde estaria enquadrada esta ausência de responsabilização? O que não se verifica no caso concreto? A tipicidade da conduta, sua ilicitude, a culpabilidade do agente, ou ainda, o interesse do Estado em punir ditos sujeitos?
Importante ter em mente, durante todo o estudo das condutas criminosas praticadas por agentes “encobertos”, algumas premissas já discutidas anteriormente e agora sistematizadas. Conforme apresentado por Igor Kozlowski (2007, f. 1):
[...] a) a atuação deve ser precedida de autorização judicial; b) o ato criminoso deve estar em curso, ou seja, não pode ter sido realizado por instigação ou induzimento do agente, e, mais do que isso, não poderá a ação do agente ser imprescindível à consumação dos delitos; c) deve haver pertinência ou adequação da medida, necessidade e proporcionalidade stricto sensu.
A doutrina se divide ao tratar desse assunto. Existem posicionamentos relacionados aos três elementos do crime e também à punibilidade. Não se esclareceu qual posição a causa de exclusão dessa responsabilidade deve ocupar dentro da teoria do delito.
Damásio Evangelista de Jesus e Fábio Ramazzini Bechara (2005, f. 2), sintetizando as opiniões existentes quanto ao tema, explicitam:
Discute-se, entretanto, qual seria a natureza jurídica da exclusão da responsabilidade penal do agente infiltrado. É possível identificar as seguintes soluções: 1) trata-se de uma causa de exclusão de culpabilidade, por inexigibilidade de conduta diversa. Isto porque, se o agente infiltrado tivesse decidido não participar da empreitada criminosa, poderia ter comprometido a finalidade perseguida com a infiltração, ou seja, não havia alternativa senão a prática do crime; 2) escusa absolutória: o agente infiltrado age acobertado por uma escusa absolutória, na medida em que, por razões de política criminal, não é razoável nem lógico admitir a sua responsabilidade penal. A importância da sua atuação está diretamente associada à impunidade do delito perseguido; 3) trata-se de causa excludente da ilicitude, uma vez que o agente infiltrado atua no estrito cumprimento do dever legal. 4) atipicidade penal da conduta do agente infiltrado [...]
Quanto ao entendimento de que restaria excluída a tipicidade da conduta perpetrada pelo agente encoberto, cumpre analisar os dois argumentos distintos que a doutrina tem apresentado: a) ausência de imputação subjetiva, e b) ausência de tipicidade conglobante.
A posição que defende a impossibilidade de imputação subjetiva da conduta ao agente traz a afirmação de que este não age com a intenção de praticar o delito respectivo, e sim com o propósito de realizar a tarefa que lhe incumbe na investigação criminal. Não haveria, portanto, dolo na ação ou omissão do agente, de forma que o tipo subjetivo estaria vazio.
Como é cediço, o dolo, na condição de elemento subjetivo geral, compreende dois outros elementos, quais sejam: a) elemento cognitivo ou intelectual, e b) elemento volitivo. O primeiro deles consiste na “consciência atual da realização dos elementos objetivos do tipo (conhecimento da ação típica)”; enquanto o segundo é representado pela “vontade incondicionada da realização dos elementos do tipo (vontade de realizar a ação típica)”. (PRADO, 2003, p. 295)
Sendo assim, restaria excluído o dolo na hipótese ora estudada pela inexistência do seu elemento volitivo.
De acordo com a teoria do assentimento ou do consentimento, adotada pelo Código Penal pátrio juntamente com a teoria da vontade, haverá o denominado “dolo eventual” quando o autor da conduta assumir o risco de produzir o resultado cuja representação apontou possível. Nas palavras de Cezer Roberto Bitencourt (2003, p. 211-212):
Para essa teoria, também é dolo a vontade que, embora não dirigida diretamente ao resultado previsto como provável ou possível, consente na sua ocorrência ou, o que dá no mesmo, assume o risco de produzi-la. A representação é necessária, mas não suficiente à existência do dolo, e consentir na ocorrência do resultado é uma forma de querê-lo. (Grifo nosso)
Por todo o exposto, não se sustenta a afirmação de que a conduta do agente infiltrado quando da prática de um delito carece de dolo, uma vez que, na hipótese, o conteúdo do dolo eventual é preenchido. A circunstância de o agente nunca ter desejado praticar determinada conduta delituosa, não afasta a ocorrência do dolo eventual ou direto.
Para Rafael Pacheco (2007, p. 135):
[...] se o agente comete o crime sem o fim de lesar ou pôr em perigo o bem jurídico, fica isento de penal, ao contrário, se põe em perigo o objeto da ação ou se conforma com a possibilidade de lesão do bem jurídico, age em dolo eventual e, portanto, punível.
Conforme ensinamentos de Rogério Greco (2007, p. 190):
Fala-se em dolo eventual quando o agente, embora não querendo diretamente praticar a infração penal, não se abstém de agir e, com isso, assume o risco de produzir o resultado que por ele já havia sido previsto e aceito. (Grifo nosso)
Tratando da referida possibilidade de se abster ou não de determinada ação, Bitencourt (2003, p. 213) analisa:
A vontade de realização do tipo objetivo pressupõe a possibilidade de influir no curso causal, pois tudo o que estiver fora da possibilidade de influência concreta do agente pode ser desejado ou esperado, mas não significa querer realiza-lo. Somente pode ser objeto da norma jurídica algo que o agente possa realizar ou omitir. (Grifo nosso)
Ademais disso, se é certo que o dolo eventual não pode ser afastado de imediato da conduta, com maior razão não será possível proceder da mesma forma com relação à culpa.
Segundo Greco (2007, p. 198):
A conduta, nos delitos de natureza culposa, é o ato humano voluntário dirigido, em geral, à realização de um fim lícito, mas que, por imprudência, imperícia ou negligência, isto é, por não ter o agente observado o seu dever de cuidado, dá causa a um resultado não querido, nem mesmo assumido, tipificado previamente na lei penal.
Por todo o exposto, não há como sustentar uma posição que, de início e sem maiores discussões acerca do caso, exclui a existência de dolo e de culpa por parte do agente infiltrado que pratica condutas criminosas no âmbito das respectivas organizações, baseando-se na simples constatação de que este, ao aceitar a tarefa que lhe foi dada, jamais desejou praticar qualquer delito, atuando apenas com vistas à coleta de provas a serem utilizadas na persecução criminal. Dita constatação não se presta a expurgar de toda e qualquer conduta delituosa perpetrado pelo infiltrado o dolo indireto ou eventual e muito menos a culpa.
O segundo argumento apresentado para a exclusão da tipicidade se funda na noção de que o juízo de tipicidade não se exaure na verificação do fato objetivamente considerado, isto é, no exame da tipicidade formal, exigindo, pois, a ocorrência de um critério material de seleção do bem a ser protegido, caracterizador da chamada “tipicidade material”, e ainda, a determinação de antinormatividade.
Raul Zaffaroni (2004, p. 436, apud KOZLOWSKI, f. 1) leciona:
[...] o juízo de tipicidade não é um mero juízo de tipicidade legal, mas que exige um outro passo, que é a comprovação da tipicidade conglobante, consistente na averiguação da proibição através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e sim conglobada na ordem normativa”.
Rogério Greco (2007, p. 157) afirma que
A tipicidade conglobante surge quando comprovado, no caso concreto, que a conduta praticada pelo agente é considerada antinormativa, isto é, contrária à norma penal, e não imposta ou fomentada por ela, bem como ofensiva a bens de relevo para o Direito Penal (tipicidade material). Na lição de Zaffaroni e Pierangeli, não é possível que no ordenamento jurídico, que se entende como perfeito, uma norma proíba
aquilo que outra imponha ou fomente. (Grifos nossos)
Nesse contexto, também se apresenta equivocado o entendimento pelo qual a responsabilidade do agente “encoberto” deve ser afastada por ausência de tipicidade conglobante. A idéia de antinormatividade não encontra aplicação na medida de investigação criminal sob comento.
No âmbito da infiltração policial não há qualquer norma que imponha ou fomente a prática de delitos. O instituto, enquanto instrumento extraordinário dos órgãos de persecução criminal, visa, em última análise, à obtenção de provas das práticas das organizações criminosas e da sua autoria.
Frise-se, por oportuno, que a autorização judicial que deve preceder a execução da medida não comporta, de igual modo, nenhuma determinação que possa ser comparada a uma autorização ou fomento a prática de infrações. Contrariamente, referida decisão judicial se presta a oferecer limites à atuação do agente.
Pode-se afirmar, portanto, até o presente momento, que as condutas criminosas porventura cometidas por agentes infiltrados, de regra, são típicas.
Vislumbrando-se o posicionamento doutrinário pelo qual se enquadra a causa de exclusão da responsabilidade penal do agente infiltrado no elemento antijuridicidade, observa-se que as hipóteses de estrito cumprimento de dever legal e de exercício regular de direito são comumente utilizadas como sua fundamentação.
Os doutrinadores em questão acabam por dar à hipótese de prática de crimes pelo agente infiltrado o mesmo tratamento que se dá quando o que se discute é a sua simples adesão à quadrilha ou bando ou à associação criminosa.
Nesse ponto do desenvolvimento do trabalho, em especial, é que se mostram de extrema relevância e utilidade todas as considerações realizadas nos capítulo anteriores, notadamente as que se relacionam de modo mais direto com a infiltração policial, sua natureza, requisitos e características. Isto porque, pela leitura das inferências realizadas pelo jurista em apreço, data venia, pode-se identificar o equívoco da interpretação por ele realizada, que reside, justamente, na análise do instituto da infiltração.
O cometimento de crime por parte do agente que realiza a infiltração policial, seja esta considerada leve ou profunda, constitui apenas um risco. O que existe é a possibilidade de que essa situação venha a ocorrer, motivo pelo qual se entende que a exclusão da responsabilidade penal deve ser devidamente abordada pela doutrina, para a maior segurança do Estado e do próprio sujeito da infiltração.
Não merece respaldo, portanto, a interpretação trazida por Igor Kozlowski (2007, f. 1) como síntese do posionamento:
[...] no momento em que o Poder Judiciário expede uma autorização, o ordenamento jurídico passa a coadunar-se com a prática daquelas condutas, de modo que não podem ser consideradas contrárias ao Direito. Nesta linha, à luz da clássica doutrina, teríamos a presença de uma causa de justificação, denominada estrito cumprimento do dever legal”.
Conforme constata PACHECO (2007, P. 131), “em oposição, outros autores rebatem, pois não conseguem enxergar na prática delituosa o cumprimento do dever, visto que não se concebe que um policial tenha o dever de delinqüir”.
Nesses termos, não é nem um pouco razoável aceitar que constitua um permissivo legal a prática de infrações pelo agente “encoberto”. Não há que se falar, aqui, em existência de norma que se harmonize com as imposições do direito objetivo.
Eduardo Araújo da Silva (2003, p. 121-122), corroborando o que se disse a respeito do risco, apresenta a prática de infrações penais pelo policial no curso das investigações como um desvio de conduta que deve ter solução no terreno do direito material.
Sendo assim, não se subsumem à espécie nem a figura do exercício regular de um direito muito menos a do estrito cumprimento de dever legal[3], restando afastada a alegação de causa de excludente de antijuridicidade para fundamentar a não responsabilização penal do agente infiltrado.
Um pouco mais consistente, apresenta-se a posição dos que alegam se tratar de hipótese de inexigibilidade de conduta diversa, pelo que deveria ser afastada a culpabilidade.
Como exemplo, tem-se o entendimento de Barbosa Tourinho (2003, f. 7), para quem “a negativa do agente infiltrado em participar de alguma atividade criminosa poderá despertar a desconfiança dos integrantes da associação, com riscos a sua integridade física ou á própria vida”.
Uma das críticas que se impõem a esse raciocínio, diz respeito à dificuldade de se estabelecer parâmetros mais ou menos rígidos quando se trata da inexigibilidade de conduta diversa, “bastante controvertida, sobretudo quando se cogita da existência de causas supralegais desta dirimente”.
Por causas supralegais de exclusão da culpabilidade, entende-se aquelas que têm o condão de ensejar tal exclusão mesmo não estando previstas em qualquer texto legal, “em virtude dos princípios informadores do ordenamento jurídico”. (GRECO, 2007, p. 421).
Johannes Wessels (1980, p. 126-127, apud GRECO, 2007, P. 422), referindo-se à insegurança que representam, afirma que
[...] a admissão geral de uma causa de exculpação como essa, vaga e indeterminada, no que diz respeito a pressupostos e limites, daria passo, amplamente, à insegurança jurídica [...] contudo, conforme a opinião sustentada quase por unanimidade, pode admitir-se, em situações excepcionais, uma causa supralegal de exculpação”. (Grifo nosso)
Além da referida controvérsia, se o propósito aqui consiste em colaborar para a elaboração de uma norma geral de exclusão da responsabilidade penal do agente infiltrado (conforme assinalado no início desta seção), por ser tal medida imprescindível ao implemento do instituto da infiltração, há que se considerar que tal intento não pode ser alcançado por meio da análise casuística do problema, do modo como foi realizado pelo autor referido acima.
A possibilidade de o agente se deparar “com situações em que se verá na contingência de cometer crimes” (TOURINHO, 2003, f. 7) existe e não se pretende negá-la. Seria inútil, inclusive, tentar fazê-lo.
De igual modo, existe a possibilidade de a conduta do agente infiltrado ser destituída de tipicidade, em razão, por exemplo, da verificação de erro de tipo; ou ainda, de não ser dita conduta ilícita ou antijurídica por ter se efetivado em razão de legítima defesa.
Todas essas situações são perfeitamente verificáveis na prática. Entretanto, o legislador pátrio não fará (em primeiro lugar, porque não conseguirá, e em segundo, por não ser aconselhável a tentativa) uma disposição de todas as possíveis condutas do agente infiltrado seguidas do tratamento que deverão receber no campo da responsabilidade penal.
O agente policial necessita de uma garantia mínima de que a tarefa por ele realizada não lhe trará maiores dificuldades do que as decorrentes de sua própria natureza. Ele precisa se sentir seguro para que possa optar por levar a termo a infiltração, e essa segurança pressupõe o conhecimento das regras mínimas aplicáveis à medida, dentre as quais, deve estar contida a regra geral de exclusão da sua responsabilidade penal na hipótese incidido na prática de algum delito.
Por todas as considerações realizadas, a escusa absolutória se apresenta como a melhor alternativa para solucionar a questão e dar ensejo à elaboração de uma norma jurídica de exclusão da responsabilidade penal do agente infiltrado.
Nas palavras de Pacheco (2007, p. 132), “não prevista como uma excludente seja de ilicitude ou de culpabilidade, a escusa absolutória aparece como forma de não responsabilização por opção de Política Criminal”.
Continua o autor (2007, p. 133), tratando das escusas absolutórias:
A escusa absolutória aparece fundamentada em motivos transitórios e de conveniência, pois o legislador considera mais útil tolerar o delito que lhe castigar, ainda que reconhecendo que exista delito e que há pessoa que possa responder por ele. Assim, de forma sintética, as escusas absolutórias são circunstâncias pessoais que, por estrita razão de política criminal de utilidade em relação à proteção do bem jurídico, excluem a imposição de pena, restando o pleno reconhecimento da existência do crime, sem, no entanto, a correspondente aplicação de pena.
As escusas absolutórias constituem causas pessoais de isenção de pena, cuja presença se verifica antes do momento consumativo do delito.
Luiz Regis Prado (2002, p. 625) leciona que as escusas absolutórias, “causas pessoais de exclusão de pena expressamente consignadas no texto legal, devem estar presentes antes da prática da conduta delituosa – são inerentes ao agente – e não se comunicam aos eventuais co-autores ou partícipes da mesma”.
Rafael Pacheco (2007, p. 133-135), examinando as legislações estrangeiras que fazem uso da infiltração policial, afirma que estas, em sua maioria, optaram por tratar a prática de delitos por agentes infiltrados como condutas não puníveis. Nesse sentido, cita como exemplos as legislações portuguesa, argentina e espanhola, consoante se verifica a seguir:
É o caso de Portugal, onde a Lei 45/96, que altera o regimento jurídico do tráfico de estupefaciantes, como chamado por essa lei estrangeira, e traz, em seu art. 59, as chamadas condutas não puníveis, a saber: ‘1 – Não é punível a conduta de funcionário de investigação criminal ou de terceiro actuando sobre o controle da Polícia Judiciária que, para fins de prevenção ou repressão criminal, com ocultação da sua qualidade e identidade, acertar, detiver, guardar, transportar ou, em seqüência e a solicitação de quem se dedique a estas actividades, entregar estupefaciantes [...]’ Na argentina, também se optou pela adoção da escusa absolutória expressa no art. 31 da Lei 23.737 (introduzida pelo art. 7º da Lei 24.424) [...] Na Espanha, por sua vez, a Ley de Enjuiciamento Criminal amarra imperiosamente a escusa absolutória ao princípio da proporcionalidade e expressa vedação á provocação do delito [...]
A previsão em lei de uma causa pessoal de exclusão de pena, de uma escusa absolutória, portanto, apresenta-se como a solução mais acertada para o tratamento da responsabilidade penal do agente policial que, infiltrado em organização criminosa, pratica delito relacionado ou não às atividades “próprias” desta, mas em razão da infiltração.
A adoção da medida teria o condão de resolver a problemática da necessidade de maior segurança para o infiltrado, o que, dentre outras importantes conseqüências, ocasionaria a diminuição das lacunas existentes na legislação em vigor, dotando o instituto de maior aplicabilidade e tornando os órgãos de persecução penal mais eficientes no combate à criminalidade organizada.