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O valor da biodiversidade.

Elementos para a ponderação da biodiversidade quando em colisão com outros princípios constitucionais

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Agenda 10/01/2013 às 14:05

3. O FENÔMENO DA VIDA E OS RISCOS À BIODIVERSIDADE

Somente agora a ciência começa a descobrir a extensão da biodiversidade sobre o planeta.  A cada dia, descobre-se que áreas que se imaginava serem pouco propícias ao desenvolvimento da vida, na verdade abrigam uma infinidade de indivíduos e espécies. 

 Com efeito, em abril de 2005 foram publicados na revista Nature[12] os resultados de uma pesquisa que descobriu uma estranha comunidade de microrganismos nos gêiseres (fontes de água aquecida por energia vulcânica) dentro do Parque Yellowstone, nos Estados Unidos, vivendo em poros de rocha num ambiente com temperatura média de 70º C e com um pH (grau de acidez) de 1, o que é capaz de dissolver pregos de ferro. Nurit Bensusan[13], ao comentar uma pesquisa publicada em novembro de 2009 na revista Science[14] sobre a enorme diversidade de vírus encontrados nas águas geladas da Antártida afirma que naquela localidade, “(...) que parece hostil a qualquer forma de vida, há uma grande quantidade de vírus, muitos deles jamais vistos em outros lugares. Um dos autores do artigo, que reuniu pesquisadores espanhóis e ingleses, afirmou que essa descoberta está mudando a forma de ver aqueles organismos e seu papel nos ecossistemas microbianos”. Mais recentemente, a Nasa divulgou em seu sítio na rede mundial de computadores[15] ter descoberto vida em um lago na Califórnia que é notabilizado por possuir águas hipersalinas e com alta concentração de arsênio, um elemento que se acreditava tóxico para todas as formas de vida baseadas em carbono.

Anualmente, as descobertas feitas pelos taxonomistas adicionam cerca de 15.000 novas espécies ao total das cerca de 1.5 milhões de espécies já descritas[16], mas as estimativas acerca do número total de espécies variam muito, de acordo com método utilizado, correspondendo a algo entre 3 e 100 (!) milhões de espécies[17].  Edward Wilson[18], professor do Museu de Zoologia Comparada da Universidade de Harvard, aposta que existiria no planeta algo entre 5 e 30 milhões de espécies. Já o Centro Mundial de Monitoramento da Conservação (WCMC – World Conservation Monitoring Centre) aposta num intervalo entre 8 e 12,5 milhões de espécies. Para o ex-presidente da Sociedade Real britânica, Robert May, "É uma indicação notável do narcisismo da humanidade que saibamos que o número de livros na Biblioteca do Congresso americano no dia 1º de fevereiro de 2011 era 22.194.656, mas que não podemos dizer - dentro de uma ordem de magnitude - com quantas espécies de plantas e animais nós dividimos o mundo"[19].

 Em estudo publicado recentemente na revista PLoSBio, Camilo Mora[20] propôs um novo método de estimativa do número total de espécies eucariontes (excluídas, portanto, as bactérias, as arqueobactérias e os vírus), concluindo existirem cerca de aproximadamente 8.74 milhões de espécies na terra, dos quais cerca de 7.77 milhões seria animais, 298 mil seriam plantas, 611 mil seriam fungos, 36,4 mil seriam protozoários e 27.5 mil seriam chromistas.

 Apesar dos avanços nas pesquisas, é bem provável que nunca saibamos com exatidão o número total de espécies existentes na terra.   A primeira razão para isso são as dificuldades próprias da pesquisa, já que grande parte dos organismos vive em locais de difícil acesso. Ademais, há naturalmente uma certa predileção dos pesquisadores por determinadas espécies em detrimento de outras (o que se torna bem evidente quando se nota que apesar da maior parte dos animais existentes ser de invertebrados, mamíferos e pássaros constituem o grupo com o maior número de espécies descritas, em termos relativos).  Por fim, não se pode descurar do fato de que os locais em que se concentra o maior número de espécies (as zonas tropicais) são os que detêm o menor número de pesquisadores, já que apenas 6% dos pesquisadores são da África, Ásia e América Latina.

Porém, uma outra razão, ainda mais grave, constitui óbice para um conhecimento mais exato acerca do número total de espécies existentes. É o fato de que muitas espécies vêm sofrendo um progressivo e cada vez mais acelerado processo de desaparecimento. De fato, segundo dados divulgados pelo relatório Panorama da diversidade global 3 (GBO3), do Secretariado da convenção para a diversidade biológica[21], as populações de aves de terras agrícolas na Europa diminuíram 50% em média, desde 1980. As populações de aves em pastagens na América do Norte diminuíram em quase 40% entre 1968 e 2003; as de zonas áridas da América do Norte caíram quase 30% desde a década de 1960.  Das 1.200 populações de aves aquáticas com tendências reconhecidas, 44% estão em declínio. Além disso, 42% de todas as espécies de anfíbios e 40% das espécies de aves estão em declínio em termos populacionais.   A situação assume especial gravidade quando se nota que, como afirma Nurit Besusan,  

(...) supõe-se que se os níveis atuais de remoção da floresta continuarem, em um século, teremos uma perda de 12% das espécies de aves da bacia amazônica e de 15% das 92 mil espécies de plantas das Américas Central e do Sul. Outras estimativas: um quinto das aves em todo mundo foi eliminado desde que os homens ocuparam as ilhas; cerca de 20% das espécies de peixes de água doce estão extintas ou em estado de declínio acentuado; mais de 200 espécies de plantas já se extinguiram nos Estados Unidos; na Alemanha cerca de 30% dos insetos e outros animais invertebrados estão ameaçados de extinção, na Áustria, 22%, e na Inglaterra, 17%; aproximadamente 40% das espécies de fungos da Europa Ocidental desapareceram nos últimos sessenta anos[22].

 Vale notar que essa aceleração no volume de desaparecimento de espécies está intimamente ligada à ação humana. De fato, o aumento da ocupação da terra pela expansão das cidades e pelo aumento das áreas utilizadas pela agricultura, aliado à queima de combustíveis fósseis, vem alterando ecossistemas, destruindo os habitats, poluindo o ar, os rios e os mares, e assim colocando em risco a existência de várias espécies. Segundo dados divulgados GBO3,

A perda e a degradação de habitats criam a maior fonte individual de pressão sobre a biodiversidade em todo o mundo. Para os ecossistemas terrestres, a perda de habitats é, em grande parte, explicada pela conversão de terras silvestres para a agricultura, que hoje representa cerca de 30% da superfície global. Em algumas áreas, essa perda tem sido recentemente impulsionada, em parte, pela demanda por biocombustíveis[23].

 Apesar da resiliência da vida, a enorme diversidade biológica existente em nosso planeta se encontra seriamente ameaçada em razão das atividades humanas. A extinção de espécies, que até hoje ocorreu de forma natural, causada pelas placas tectônicas, vulcões e outras forças da natureza, se dava num ritmo lento o suficiente para possibilitar que o mecanismo da evolução mantivesse a diversidade biológica.  Entretanto, atualmente os efeitos perversos da intervenção humana têm feito com que, segundo dados divulgados pelo WWF[24], as taxas de extinção atuais sejam pelo menos 1.000 vezes maior do que aquela que ocorreria naturalmente, sem interferência humana.

O quadro que se descortina em relação à biodiversidade é, portanto, preocupante, dadas as graves conseqüências que sua perda acarreta. Ocorre, entretanto, que essas conseqüências não são devidamente percebidas pela maior parte da população, que imagina ser a perda da biodiversidade uma questão para ecólogos e ambientalistas preocupados com a preservação das baleias, pandas e gorilas.  Diversamente do que ocorre em relação às mudanças climáticas e ao efeito estufa, a biodiversidade via de regra é tida pela maioria da população como algo distante, sequer sendo sua perda percebida como uma ameaça à qualidade de vida das pessoas.  Com isso, não é nada desprezível o risco de que, na hora de se avaliar a importância da tutela da biodiversidade, esta seja subvalorizada e acabe sempre (ou quase sempre) cedendo frente às necessidades econômicas mais imediatas.

E a face mais dramática disso é o risco de que essa subvalorização da importância da biodiversidade se repita também nos processos judiciais, onde na hora de solucionar concretamente uma colisão entre a biodiversidade e um dado interesse econômico, aplicando a regra da proporcionalidade, o juiz acabe aceitando uma restrição maior à tutela da biodiversidade, por conferir um maior peso relativo ao interesse mais imediato do desenvolvimento econômico. Isso porque, adotando-se a formula preconizada por Alexy para a solução das colisões entre princípios, quanto maior for o grau de não-satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro. Por isso que,

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(...) quando uma norma de direito fundamental com caráter de princípio colide com um princípio antagônico, a possibilidade jurídica para a realização dessa norma depende do princípio antagônico. (...). Visto que a aplicação de princípios válidos – caso sejam aplicáveis – é obrigatória, e visto que para essa aplicação, nos casos de colisão, é necessário um sopesamento, o caráter principiológico das normas de direito fundamental implica a necessidade de um sopesamento quando ela colidem com princípios antagônicos[25].

 Daí que se faz necessário que a biodiversidade seja encarada em todas as suas dimensões, de modo a possibilitar que na avaliação das colisões principiológicas a ela seja conferido o peso merecido, sempre atentando-se para a real importância da biodiversidade, em especial a sua importância para os seres humanos critério que possibilita uma comparação mais objetiva com o desenvolvimento econômico – valor também referido diretamente aos seres humanos).  Neste aspecto, um bom ponto de partida é o alerta constante do relatório Panorama da diversidade global 3, segundo o qual

a diversidade de seres vivos no planeta continua a ser desgastada como resultado de atividades humanas. As pressões que levam à perda da biodiversidade mostram poucos sinais de abrandamento e, em alguns casos, estão aumentando. As consequências das tendências atuais são muito piores do que se pensava anteriormente, e colocam em dúvida a contínua prestação de serviços ecossistêmicos, considerados vitais. Os pobres tendem a sofrer desproporcionalmente devido a alterações potencialmente catastróficas para os ecossistemas nas próximas décadas, porém, em última análise, todas as sociedades têm a perder.[26]


4. FUNDAMENTOS DA PROTEÇÃO À BIODIVERSIDADE

A percepção pluridimensional da biodiversidade torna evidente a extrema e íntima dependência dos seres humanos da natureza, dependência essa que, como assinalado, vai muito além da mera utilização direta ou indireta dos produtos naturais como matéria prima para a satisfação das necessidades humanas.  Na verdade, a extensão das interações entre os seres vivos, a manutenção dos serviços ecológicos essenciais à manutenção da qualidade de vida humana e a necessidade de manutenção dos ecossistemas deixam evidente que a perda da biodiversidade é um problema em si mesmo, já que todas as possibilidades futuras de bem estar humano dependem muito fortemente da conservação deste patrimônio natural, do qual somos absolutamente dependentes.  

 A manutenção da biodiversidade, assim, é de extrema importância para os seres humanos, mesmo a despeito da pouca percepção que a maioria das pessoas tem da relevância da diversidade biológica para a manutenção dos serviços ecológicos essenciais, que se tornam menos resilientes quando há perda da biodiversidade.

A partir deste quadro conceitual, torna-se possível apontar as razões pelas quais deve a biodiversidade ser tutelada, ou, dito de outra forma, torna-se possível identificar os fundamentos pelos quais se deve proteger a biodiversidade. E estes podem ser divididos basicamente em duas ordens: a primeira, de cunho ético, enfatizando o valor intrínseco da biodiversidade, e a segunda de caráter antropocêntrico, ligada ao valor que a biodiversidade tem para os seres humanos.

4.1 FUNDAMENTO ÉTICO

O fundamento ético liga-se à constatação fundamental de que as formas de vida devem ser preservadas simplesmente porque elas existem, porque são produtos de milhões de anos de evolução, e, portanto, têm o direito de continuar a existir independentemente do homem, ou, pelo menos, têm as diversas formas de vida o direito de não terem sua extinção acelerada pela ação do homem. Como afirma Cléber Alho[27], “este argumento ético, estatuindo que a proteção da integridade biológica é moralmente boa, é baseado no fato de que a maior parte da perda da biodiversidade atual é causado por atividades e perturbações humanas (...).”[28].

 Sob esta ótica, a proteção da biodiversidade é tida como um imperativo ético, já que não há motivos legítimos que justifiquem, do ponto de vista filosófico e político, a instrumentalização das outras formas de vida existentes no planeta, que passariam a ser valoradas unicamente pela utilidade que tenham ou possam vir a ter para os seres humanos.  Por isso é que David Ehrenfelkd[29], após chamar atenção para o fato de que a simples existência do debate sobre o valor da biodiversidade já é bastante elucidativo de porque a diversidade biológica está em perigo, adverte que

Não nos ocorre que nada nos obriga a enfrentar o processo de destruição usando as suas próprias premissas e terminologias estranhas e auto-destrutivas. Não nos ocorre que ao atribuirmos valor à diversidade simplesmente legitimamos o processo que está aniquilando-a, o processo que diz: ‘a primeira coisa que conta em qualquer decisão importante é a magnitude tangível dos custos e benefícios monetários’. [...] mas, se persistirmos nessa cruzada para determinar um valor onde o valor deveria ser evidente, com certeza não nos restará nada além de nossa cobiça, no dia em que a poeira finalmente baixar. 

Vale notar que a tese de que o fundamento da proteção à biodiversidade é seu valor intrínseco foi expressamente acolhida pelo ordenamento jurídico pátrio, já que a Política Nacional de biodiversidade, instituída pelo Decreto 4339/2002, aponta como seu primeiro princípio o de que “a diversidade biológica tem valor intrínseco, merecendo respeito independentemente de seu valor para o homem ou potencial para uso humano”.  Como afirma Edis Milaré[30]

[...] se a biodiversidade vale por si mesma e os seres vivos não têm armas para se defenderem, é inarredável a posição do Homem como defensor da biodiversidade pela biodiversidade, com todos os meios lícitos de que possa dispor, inclusive o Direito.  É assim que deve ser entendido o Princípio I do Decreto em análise.  Defender algo não humano, que tem valor intrínseco independentemente do valor que possamos atribuir-lhe, eis um objeto de alta indagação jurídica, não apenas do Direito Ambiental, mas em proporção maior ainda, da Filosofia do Direito. 

4.2. FUNDAMENTOS ANTROPOCÊNTRICOS

Isto não obstante, força é notar que, por mais relevante que sejam os fundamentos ético e filosófico, tais razões não são suficientes para, por si só, garantir que as pessoas, as instituições e os Estados se comprometam de forma efetiva com a conservação da biodiversidade, nem tampouco servem para afastar, per si, o risco de que no âmbito da tutela judicial a biodiversidade ceda espaço ao desenvolvimento.  Especialmente quando se tem em mente a configuração atual da sociedade capitalista ocidental, torna-se inevitável a constatação de que somente a partir da identificação do valor da biodiversidade para os seres humanos é que se tornará realmente possível passar do discurso para a prática real de proteção. 

 A dizer, a transformação dos dados qualitativos acerca da biodiversidade em dados quantitativos, assimiláveis pela lógica de mercado que preside e fundamenta a generalidade das relações humanas, é pressuposto essencial para que seja conferida à biodiversidade uma defesa mais eficaz, especialmente do ponto de vista da tutela jurídica, uma vez que esta demanda necessariamente a adoção de medidas que, numa avaliação imediatista, são caras (de acordo com a lógica de mercado dominante, já que implicam o aumento dos custos de produção) e no mais das vezes impopulares (pelo menos quando se tem em mente os interesse diretamente contrariados).  A proeminência do fator econômico na organização da sociedade, a ditadura do mercado[31] e a busca de lucro como mais relevante fator a motivar as ações dos indivíduos, assim, fazem necessário que seja demonstrada a importância da biodiversidade para os seres humanos.  Por isso é que assiste razão a James Nations[32] quando afirma que    

Virá o dia em que considerações éticas sobre a diversidade biológica tornar-se-ão nosso principal motivo para conservar as espécies.  Mas até lá, se quisermos continuar mantendo a diversidade biológica do planeta, temos que falar a língua corrente.  E a língua corrente é a utilidade, a economia, e o bem-estar dos seres individuais.  Nos anos 80, a pergunta parece ser: ‘o que a diversidade biológica fez por mim recentemente?’ A boa nova é que a resposta a essa pergunta é: ‘muito mais do que você avalia’. Nossas vidas estão cheias de exemplos da lógica de que devemos preservar as plantas e animais dos quais dependemos como espécie.

Daí porque, mesmo a despeito das fundadas críticas a esse utilitarismo ambiental, é importante também estabelecer o valor da biodiversidade sob o enfoque antropocêntrico, especialmente quando o que se busca é fundamentar a tutela jurídica da biodiversidade.  Com efeito, há que se ter em mente que a tutela jurídica da biodiversidade se dá através da edição de normas jurídicas voltadas a garantir essa proteção, sendo certo que norma jurídica é um caso claro de uso prescritivo da linguagem, que ocorre quando aquele que fala (i.e., quem estatui a norma) pretende direcionar o comportamento de outro (os destinatários da norma), ou seja, tenta induzi-lo a adotar determinado rumo de ação[33].  Assim, se o Direito é um fenômeno intrinsecamente humano, feito por homens e destinado a regular condutas humanas, numa aproximação acerca dos fundamentos jurídicos  da tutela da biodiversidade, não se pode descurar do enfoque antropocêntrico sobre o valor da biodiversidade. 

 Neste sentido, um dos primeiros aspectos a ser levado em conta na valoração da biodiversidade para os seres humanos é o seu valor estético e cultural.  A biodiversidade, em toda sua extensão, garante ao ser humano a satisfação de uma necessidade vital, que é o contato com as belezas naturais, com a vida, possibilitando às pessoas uma convivência menos conturbada.  Por outro lado, a biodiversidade também tem servido por anos de fonte de inspiração para manifestações culturais, artísticas e religiosas, essenciais para o desenvolvimento pleno dos seres humanos.

Há, ainda, um enorme valor científico a ser conferido à biodiversidade.  Isso porque, como já afirmado, não é conhecida toda a extensão das inter-relações existentes entre as espécies, nem mesmo quais são as espécies existentes.  Daí que, como acertadamente afirmou Laymert Santos[34], no campo da biodiversidade vivemos um duplo desconhecimento: do que ela é (“porque ela ainda não foi amplamente estudada pela ciência ocidental e o conhecimento tradicional desaparece sob os golpes da sociedade moderna antes mesmo que seu valor seja reconhecido”) e do ela pode vir a ser (“ignorância irresponsável e inconseqüente de quem dilapida uma riqueza do futuro sem ao menos antecipar seus benefícios no presente”).   Com efeito, em grande medida está na exuberante biodiversidade terrestre a chave para a solução de muitos problemas que atingem as sociedades modernas (além de outros tantos que ainda atingirão a humanidade no futuro), de sorte que a perda da biodiversidade corresponde a impedir de modo absoluto o acesso da humanidade a esse conhecimento. Numa passagem que expressa bem o valor científico da biodiversidade, Lester Brown[35] afirma:

Estou preocupado também com a destruição da Amazônia no Brasil, porque acho que ela é uma fonte extraordinária de recursos e de biodiversidade. É algo muito valioso para o Brasil, se o país souber preservá-la. Isso porque, quando eu vejo as queimadas de florestas na Amazônia e a perda permanente e irreversível de material genético que só existe naquela área, isso me faz lembrar do incêndio da biblioteca de Alexandria, mais de 2 mil anos atrás. Era uma biblioteca extraordinária, como nenhuma outra no mundo, e foi queimada. O que o Brasil tem é uma grande biblioteca biológica, com uma variedade de DNA que não existe em nenhum outro lugar no mundo, e está literalmente queimando isso, sem perceber quanto ela é valiosa.

4.2.1. O VALOR ECONOMICO DA BIODIVERSIDADE

Nada obstante o enorme valor científico, espiritual e cultural da biodiversidade, é no campo do valor econômico que se encontra o maior desafio àqueles que buscam, de forma pragmática, justificar a necessidade da proteção à biodiversidade pela enumeração das vantagens que essa proteção vai gerar às sociedades humanas.  Isso porque nossa economia, na busca pela maximização do lucro e minimização dos custos, tem tratado os recursos naturais que não são direta e imediatamente utilizados como matéria-prima como externalidades, que não entram no cálculo dos custos da produção. Como afirma Luiz Antônio Abdalla de Moura[36],

[...] em economia, o conceito de externalidade refere-se à ação que um determinado sistema de produção causa em outros sistemas externos. Trata-se de um conceito desenvolvido pelo economista inglês Pigou em 1920, que estabeleceu que existe uma externalidade quando a produção de uma empresa (ou um consumo individual) afeta o processo produtivo ou um padrão de vida de outras empresas ou pessoas, na ausência de uma transação comercial entre elas. Normalmente esses efeitos não são avaliados em termos de preços. Um exemplo disso é a poluição causada por uma determinada indústria.

Por isso é que, na avaliação dos custos de produção de determinado bem, o meio ambiente somente entra na conta relativa aos gastos com as matérias primas, isto é, corresponde ao valor pago a título de insumos necessários à produção. As conseqüências daquela operação a longo prazo, seja em razão do tratamento dos dejetos, seja em razão da sobrexplotação das matérias-primas, seja, enfim, em razão da poluição causada, por exemplo, ficam de fora dos cálculo, sendo tais custos “externalizados”, ou seja, terceirizados, posto que assumidos pela sociedade, pelo Estado ou pela natureza.

 Um exemplo trazido por Edward Goldsmith[37] serve bem para ilustrar a concepção econômica atual.  Ele imagina a situação de dois irmãos que herdam terras, numa extensão de 10.000 hectares de floresta para cada um.  O primeiro decidiu preservar suas terras em estado natural.  Já o segundo, resolveu tirar o máximo de proveito econômico de suas terras: vendeu as árvores para uma madeireira, cedeu direitos de exploração mineral do solo e subsolo e, quando estes se esgotaram, passou a alugar o poço da mina em desuso para uma empresa de eletrônicos ali depositar os dejetos de sua produção.  Esgotada também essa possibilidade, ele pavimentou o terreno e ali construiu um complexo industrial e um centro de compras.  De acordo com a mentalidade econômica dominante hoje, o primeiro irmão do exemplo é visto como alguém completamente fora da realidade, um lunático ou sonhador, por não ter querido enriquecer com a exploração das terras, enquanto que o segundo é tido como um dos pilares da sociedade, gerando riquezas e empregos. O que não se percebe, entretanto, é que todo o custo ecológico dessa produção foi externalizado, e enquanto o proprietário capitalizava o lucro e os rendimentos dessa utilização econômica dos bens naturais, a sociedade, especialmente as gerações futuras, socializavam os custos ambientais da atividade. Nestas condições, forçoso é reconhecer o acerto da afirmação de Lester Brown[38], para quem

Nossas economias estão comprometidas com uma forma disfarçada de financiamento de um déficit: processos como o desmatamento e o superbombeamento da água e do solo inflam o desempenho atual às custas da produtividade a longo prazo.  Estamos violando os princípios da sustentabilidade ambiental, num setor após o outro. Confiando num sistema incompleto de contabilidade, sistema que não avalia a destruição do capital natural associada aos ganhos do desempenho econômico, devoramos nossos bens produtivos, satisfazendo nossas necessidades de hoje às custas de nossos filhos.  Como afirma o economista Herman Daly, ‘há algo fundamentalmente errado em tratar a terra como se fosse um negócio em liquidação’

Verifica-se, assim, que as dimensões sociais e ecológicas da atividade econômica são relegadas a um plano bastante secundário, sobrepujadas que são pela ideia do desenvolvimento, que configura o paradigma ocidental do progresso, sobre o qual Plauto Faraco Azevedo[39], citando Edgar Morin, afirma que

Trata-se de um mito global e de uma concepção redutora, na qual o crescimento econômico é o motor necessário e suficiente de todos os desenvolvimentos sociais, psíquicos e morais.  Trata-se de concepção tecnoeconômica, que ignora os problemas humanos da identidade, da comunidade, da solidariedade, da cultura.  Por esta forma, a noção de desenvolvimento torna-se gravemente subdesenvolvida.   

 Esta visão economicista está presente em toda relação do homem com a natureza, inclusive (e talvez até de um modo bem especial) no que concerne à biodiversidade, que via de regra sequer é considerada na projeção de custos e ganhos de uma atividade econômica, exceção feita à biotecnologia, que vê na biodiversidade estoque de matéria-prima para as aplicações. Neste ponto, cumpre ressaltar que essa mentalidade economicista é dotada de uma tal influencia que, mesmo a despeito da política nacional da biodiversidade haver adotado a tese do valor intrínseco da biodiversidade, o item 5 do anexo do dec. 4.339/02 dispôs que o objetivo geral da Política Nacional da Biodiversidade é “a promoção, de forma integrada, da conservação da biodiversidade e da utilização sustentável de seus componentes, com a repartição justa e eqüitativa dos benefícios [...]”, o que denota um utilitarismo econômico que parece contradizer o valor intrínseco da biodiversidade, o que, de toda sorte, faz todo sentido quando se percebe que o princípio XV da política nacional da biodiversidade estatui que “ a conservação e a utilização sustentável da biodiversidade devem contribuir para o desenvolvimento econômico e social e para a erradicação da pobreza”.

Em parte esse estado de coisas decorre do fato de que efetivamente é difícil quantificar o valor de bens e serviços dependentes da biodiversidade, dado que a maioria destes serviços está fora dos mercados e não tem etiquetas de preço para alertar a sociedade sobre as mudanças em seu suprimento, ou mesmo sobre sua perda.  Por essa razão é que muitos cientistas e economistas têm tentado traduzir em termos econômicos o valor dos serviços prestados ao homem pela biodiversidade, como forma de tornar claro ao “mercado”, essa abstração que governa a dinâmica de nossa sociedade, que vale a pena gastar dinheiro na proteção da biodiversidade.

 Neste sentido foi que em 1997, Robert Costanza[40], da Universidade de Maryland, estimou o valor econômico de 17 serviços do meio ambiente: regulação hídrica, de gases, climática e de distúrbios físicos, abastecimento d' água, controle de erosão e retenção de sedimentos, formação de solos, ciclo de nutrientes, tratamento de detritos, polinização, controle biológico, refúgios de fauna, produção de alimentos, matéria-prima, recursos genéticos, recreação e cultura, em 16 biomas espalhados pelo mundo. Ao final, o resultado encontrado para o valor médio dos serviços proporcionados pela Natureza, nos ecossistemas pesquisados, foi de US$ 33 trilhões ao ano, o que à época era mais do que o dobro do PIB mundial.

Ainda seguindo essa linha de buscar valorar economicamente os serviços ambientais e a biodiversidade, surgiu em 2007 o TEEB (sigla em inglês para A Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade, um estudo independente, liderado por Pavan Sukhdev, elaborado pela iniciativa “A Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade” sediada pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). O relatório para formuladores de políticas locais lançado em 2010[41], tendo como pressuposto a ideia de que o bem-estar humano e a maioria das atividades econômicas dependem de um meio ambiente saudável, e focando nos benefícios proporcionados pela natureza, expressa que

O TEEB sugere então uma mudança de foco: a análise econômica indica que a manutenção de ecossistemas saudáveis é geralmente a opção menos onerosa. Assim, precisamos descobrir e considerar a gama de benefícios da natureza. Avaliar os serviços ecossistêmicos nos fornece um quadro completo. Podemos indicar os custos e benefícios de diferentes opções de políticas, identificando a melhor estratégia local para o bem-estar humano e a sustentabilidade econômica.

Em entrevista concedida à Revista Veja[42], o economista Pavan Sukhdev, coordenador do projeto TEEB, afirmou que a perda anual decorrente da degradação da natureza representa algo entre 2,5 trilhões e 4,5 trilhões de dólares, sendo que nessa conta está incluída apenas a destruição das florestas, dos mananciais e da vegetação dos mangues, dado que o cálculo foi feito com base no valor atual dos serviços que esses recursos naturais prestam ao homem, como ar puro, água doce, produtos florestais, turismo ecológico, potencial biológico das espécies, prevenção de inundações e controle de secas.  Assim, tem-se que, do ponto de vista da análise econômica de custos,

Os benefícios da natureza muitas vezes fornecem a solução mais sustentável e custo-eficiente para atender às nossas necessidades. Levar os serviços ecossistêmicos em consideração na formulação de políticas pode poupar custos futuros, melhorar a qualidade de vida e garantir meios de subsistência. Essa abordagem também ajuda a combater a pobreza ao revelar a distribuição de recursos e serviços essenciais e escassos.[43]

Sobre o autor
Marcio Luiz Coelho de Freitas

Juiz Federal titular da 2ª Vara da Seção Judiciária do Amazonas. Mestrando em Direito Ambiental pela Universidade Estadual do Amazonas. Professor da Escola Superior de Magistratura do Estado do Amazonas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Marcio Luiz Coelho. O valor da biodiversidade.: Elementos para a ponderação da biodiversidade quando em colisão com outros princípios constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3480, 10 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23399. Acesso em: 2 mai. 2024.

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