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Comentários ao edital 1/2001 da Anatel sobre critérios de seleção de softwares

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Agenda 01/11/2001 às 01:00

2- A escolha da Microsoft para a Internet Escolar, como de interesse público

Se o meritíssimo juiz nunca tivesse atuado na área tecnológica da atividade pedagógica, seria pouco provável que se pronunciasse sobre este interesse público por opinião própria. Ao se pronunciar sobre este interesse público, como se o licitável em tela fosse um bem, é mais provável que esteja expressando sua confiança na retidão e lisura dos argumentos apresentados pela defesa, em referência aos critérios usados para aferição deste interesse. Entretanto, uma deficiência nesta aferição já é sinalizada nos argumentos apresentados em público, pretendendo justificar a especificação unívoca do licitável em software, para computadores de tipo A e B do edital, inputando-lhe uma inexigibilidade de concorrência que favorece uma das empresas interessadas. As justificativas para este interesse público, divulgadas pelo presidente da Anatel e pelo ministro da Educação, resumem-se a dois pontos.

O primeiro ponto da justificativa: Os critérios para a univocidade do licitável teriam sido determinados pelas secretarias de educação dos 26 estados e do Distrito Federal, que teriam, mediante consulta e usando seus próprios critérios, concluído idêntica e unanimemente pelo interesse público na escolha da Microsoft.

O segundo ponto da justificativa: As grandes organizações brasileiras utilizam softwares desta empresa, e é nessas empresas que a maioria dos alunos do ensino médio vai trabalhar.

Entre estes dois pontos, a precedência tem sido escolhida conforme a conveniência, por quem justifica a escolha do edital. O Jornal do Commercio de Recife de 4/9/01 refere-se a uma nota oficial do Ministro da Educação, explicando esta escolha, onde destaca o primeiro ponto da justificativa e cita uma reunião que teria ocorrido em Abril, para firmá-la. O Jornal do Brasil de 3/9/01 também dá o mesmo destaque, citando o diretor do Programa Nacional de Informática do MEC, Cláudio Sales, quem teria dito ter sido a escolha do Windows feita depois de 45 dias de discussão, com a participação dos coordenadores estaduais deste programa. Cláudio Sales é também citado dizendo: "Temos uma ata, assinada por todos os coordenadores, na qual eles fazem as escolha unanimemente pelo Windows". Esta suposta unanimidade tem sido ressaltada pelo ministro da Educação, em várias outras matérias jornalísticas.

Para exame dos fatos, há que se considerar os que são evocados em tais declarações. A ata a que se refere o diretor do Programa Nacional de Informática do MEC, não deve ser a da reunião realizada em 19 de Abril de 2001, no Hotel Nacional, em Brasília. Pois esta ata não registra, nem em sua pauta nem no relato do que ali foi discutido e decidido, qualquer menção à escolha do sistema operacional Windows para o programa "internet na escola". A ata menciona, em seu segundo item de pauta, a escolha de "equipamentos", palavra normalmente empregada para designar o hardware de uma plataforma computacional. E o relato deste item registra discussão sobre características de performance destes equipamentos, que são claramente referentes a hardware. A única menção à escolha dos programas ou de software para estes equipamentos, nesta ata, é sobre a possibilidade de que as coordenações estaduais se manifestem sobre esta escolha. Além disso, a única referência nesta ata a algo semelhante a uma "discussão com a participação dos coordenadores", que poderia ter durado 45 dias, seria uma pesquisa sobre o uso de software pelas respectivas secretarias, cuja avaliação consta como primeiro item da pauta, mas cuja discussão não é relatada na ata.

Conforme teriam informado alguns dos coordenadores que teriam participado da reunião, do Rio Grande do Sul, do Rio de Janeiro e de São Paulo, a "discussão" a que se refere o primeiro item desta pauta foi uma pesquisa conduzida pelo MEC junto às secretarias estaduais, para catalogar os softwares que estariam sendo hoje usados. E não sobre suas preferências para o programa "internet na escola". Nenhuma decisão teria sido por eles documentada junto ao MEC acerca de tais preferências, exceto a do Rio Grande do Sul, que teria enviado ao MEC um documento especificando suas preferências por plataformas baseadas em Linux, nos computadores de tipo A e C (veja matéria de Pedro Dória no portal http://www.no.com.br, de 9/9/01). A ata só fala em software para registrar a possibilidade de cada estado definir os softwares dos servidores, nas tabelas do edital, e "redefinir os softwares a serem instalados nos demais microcomputadores", sem nenhuma referência a prazo ou forma de manifestação de tal redefinição. Sobre quais softwares já definidos seriam objetos de redefinição, a ata se cala. Só fala em Windows e Linux uma vez, em referência a especificação de benchmarks (avaliações comparativas de performance, geralmente usadas como parâmetros em licitações de equipamento ou software), "se possível para os mundos" destes dois sistemas, mas sem especificar qualquer tipo de métrica de performance, numa linguagem por demais vaga e estranha.

Outra nota pública que causa espécie, foi divulgada pela câmara brasileira de e-commerce, em boletim de 27/08/01, em http://www.vista3d.com.br/camara-e/_acontece/arko.htm. Este boletim relata que o Ministro das Telecomunicações teria afirmado, em audiência pública, a razão do software livre não estar nos planos de aplicação dos fundos do FUST no projeto Telecomunidade, do qual faz parte o projeto "internet na escola", apesar de ter a sua preferência. O software livre estaria fora do edital devido a um acordo com a Microsoft. Entretanto, em outras matérias jornalísticas, o ministro da Educação e o presidente da Anatel teriam apresentado apenas os dois pontos da justificativa anteriormente descritos, e nenhum acordo é citado. Os fundos do FUST somam quase 4 bilhões no total, dos quais 450 milhões para o projeto "internet na escola". Embora seja parte pequena do licitável, a escolha do sistema operacional das plataformas computacionais neste programa é o parâmetro básico para todas suas outras licitações, pelos motivos relatados na sessão anterior.

Ao declarar que a forma de contratação sem concorrência é aqui de interesse público, e de que a responsabilidade pela determinação do caráter público deste interesse teria, hora sido dos coordenadores estaduais do programa Proinfo e do ensino médio, hora sido da lógica do mercado, a Anatel e o ministério da Educação nos colocam diante de um cenário do qual várias teses podem emergir. Vamos enumerar as mais prováveis, dirigindo em seguida nossa atenção às suas mais graves conseqüências, que também perpassam as dimensões política e pedagógica desta escolha.

Ou bem não se consideraram as dimensões ideológica e mercadológica da competição licitatória em tela, como poderia sinalizar a declaração do presidente da Anatel ao classificas de surrealistas;

Ou bem essas dimensões foram consideradas, e para elas escolhidas escalas de medida obscuras, ou que não podem vir a público na forma em que operam;

Ou bem essas dimensões foram consideradas com uma única escala -- a do fundamentalismo de mercado --, que toma como interesse público o interesse do capital, sacramentando a identificação entre ambos em leilões nos quais esta união é sustentada em troca de sustento político, ungindo assim sua ideologia com o óleo sagrado da democracia;

2.1 Sobre superficialismos, na escolha de escalas do interesse público

Para que a tese do interesse público na escolha unívoca do licitável em software, neste edital, seja sustentada, há que se constatar uma construção mínima de consenso prévio, por quem de competência, em torno deste interesse. Mas, quando se busca esta constatação, surgem problemas com a aferição deste consenso, devido à precariedade de sua construção. O que a nota oficial do MEC a respeito se refere como sendo um consenso formado a partir de amplo debate com as secretarias estaduais de ensino, não se materializou ainda em nenhum registro ou documento público. Haveria, por acaso, uma outra ata secreta da reunião de 19 de Abril, ou uma outra reunião secreta, sacramentando este interesse público, mas que só verá a luz do dia em autos de processos na Justiça?

Um detalhe grave, entretanto, já veio a publico. Não só se desconhece documento público que registre este consenso, alardeado como primeiro ponto da justificativa, mas já se conhecem duas versões conflitantes de uma suposta votação dos coordenadores do Proinfo. Uma versão do diretor do Programa Nacional de Informática do MEC, citado anteriormente, que pretende encarnar um boletim de urna com escolha unânime em alguma ata assinada, e outra versão da Microsoft, na nota por ela publicada na primeira página do Correio Braziliense de 4/9/01, com subtítulo "Restabelecendo a verdade", a mesma nota que classifica de desesperada e covarde a atitude de se questionar a lisura do edital.

A empresa vencedora da "eleição" apresenta, nesta nota, uma totalização que não confere com a do diretor do Proinfo: teriam sido 26 votos a favor do Windows, e um voto contra, segundo a Microsoft. A única ata de reunião do Proinfo, assinada por seus coordenadores estaduais e que poderia conter algo neste sentido, e que já teria vindo a público, a da reunião de 19 de Abril de 2001, contém apenas uma frase que poderia, após decodificada, pretender dar conta de uma escolha de software. Esta frase é a seguinte: "A reunião foi precedida de um seminário (de três dias) sobre temas relacionados à universalização do acesso à telemática, contando com a participação de representantes das diversas interfaces necessárias ao esclarecimentos das questões e envolvidas com a solução". Entretanto, sobre quais interfaces e qual solução, a ata se cala.

Teria esta fantasmagórica eleição sido apenas uma enquete, conduzida no referido seminário pela própria empresa favorecida, com o intuito de sacramentar, em surdina, a sua escolha? Uma enquete cujo propósito derradeiro -- o de decidir como o governo iria gastar 450 milhões de reais do contribuinte -- teria sido omitido da convocação aos votantes? Um lapso que teria se repetido com os organizadores do evento, que também teriam se olvidado de registrá-lo na tal ata, antes da coleta de assinatura dos votantes? Propósito este que só agora os votantes ficam sabendo, através de notícias em jornais? Que outra forma haveria para se interpretar as discrepâncias, as reticências e os silêncios dos coordenadores estaduais a respeito desta celeuma, senão a de atribuírem uma relação direta entre o que possam hoje declarar e o risco de verem suas verbas minguarem amanhã?

Que acordo com a Microsoft seria este, de que fala o boletim da câmara de comércio eletrônico, cuja existência teria vindo à tona numa declaração do Ministro das Telecomunicações em audiência pública? Se este acordo existe, por que não vem a público? Quem o teria firmado? Seria talvez um acordo impublicável, que faz da empresa o tribunal eleitoral de sua própria eleição, permitindo-lhe divulgar um boletim de urna que diverge do divulgado pelo MEC? Ou seria talvez um acordo para que o verbo "usar" se tornasse, secretamente, depois de 45 dias de "intensas discussões", sinônimo de "preferir"? Seria um acordo para execução de ambas manobras, para se "garantir a segurança" da eleição? Será que não existe acordo nenhum, e a câmara de comércio eletrônico irá eventualmente se retratar do que divulgou em seu boletim de 27/08/01? A mera especulação sobre estas possibilidades, aqui levantada com o único e exclusivo propósito de bem esclarecer o julgamento de uma ação popular de embargo contra o edital da Anatel, poderia parecer leviana e caluniosa se não estivesse, como está, lastreada em variados e copiosos exemplos de conduta semelhante, expostos nos autos do processo em que tal empresa é condenada, no seu país de origem, por práticas monopolistas ("Wired", Nov 2000).

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Há de se convir que no rastro descortinado de sua conduta caberiam melhor os adjetivos escolhidos pela Microsoft para atacar quem não entende este processo eleitoral, processo que a teria como única concorrente em 95% dos computadores licitados no edital da Anatel. Mas é compreensível que prefira predicá-los na conduta de outros sujeitos, já que se recusa a reconhecer os sinais de envelhecimento no modelo de negócio que tem sido sua galinha dos ovos de ouro, enquanto crê poder fazer renascer a Verdade de sua chocadeira bancária. Esta recusa é igualmente compreensível devido à sua hubris, dramaticamente exibida na forma como refuta as acusações de prática monopolista, durante os três anos do processo em que foi disso acusada, julgada, por isso condenada em primeira instância, e em segunda instância mantida a condenação, por unanimidade do tribunal de apelação. Esta hubris emerge não só neste drama, mas também subliminarmente, quando sua máquina publicitária promove, de carona com seus produtos, a sua agenda fundamentalista.

Em http://www.cyber1.com.br/solucoes_softwares.htm por exemplo, uma revenda Microsoft explica o que é pirataria de software. "A pirataria de software é uma prática ilícita, caracterizada pela reprodução sem autorização ou uso indevido de programas de computador legalmente protegidos. Ela ocorre também quando alguém faz mais cópias de um programa do que o permitido ou quando, por exemplo, uma pessoa empresta a cópia de um programa para outra." Neste última categoria de prática supostamente ilícita a revenda está incluindo algumas atividades de professores de computação que, como o autor, distribui entre os alunos o melhor trabalho da classe no ano anterior, para que vejam um exemplo de como se faz um bom software. A revenda pode se despreocupar da possibilidade destes exemplos violarem as licenças que negocia, mas não com o fato de incluir também, em suas acusações, a colaboração solidária de quem investe em software livre, como se o modelo de negócio da empresa que representa fosse o único possível. Estas acusações seriam calúnias, se não estivessem no âmbito de uma batalha ideológica.

Resta-nos a esperança de que a Justiça saiba interpretar, de forma mais serena e equilibrada, o discurso ideológico que tenta desqualificar seu oposto pela suposta falha de ser ideológico. E saiba penetrar além da superficialidade com que se está pretendendo vestir o interesse público no edital em tela, com um manto de legitimidade ainda mal costurado.

2.2 Sobre obscurantismos, na escolha de escalas do interesse público

Consideremos agora a hipótese de que eventualmente surja, nos autos do processo da ação popular pelo embargo deste edital, um documento público que registre, de forma cabal e irrefutável, a escolha dos coordenadores estaduais do Proinfo pelo sistema operacional Windows nos computadores tipo A e B do programa "internet na escola". Um documento cujo contexto de produção dirima todas as dúvidas acerca da ocorrência de influências indevidas sobre os votantes, ou sobre manipulação da eleição por eventuais interessados no seu resultado. Mesmo assim teremos, ainda a abordar, a questão da competência técnica dos escolhidos para legitimar esta escolha, como nos lembra o cientista político Sérgio Abranches, em artigo de 2/9/01 no portal No (http://www.no.com.br), na mais lúcida crítica à forma com que está sendo conduzido o programa "internet na escola", até agora vinda a público. Teremos, nesta hipótese portanto, ainda por aceitar a tese da própria legitimidade do primeiro ponto da justificativa.

Abranches afirma, e cabe aqui ressaltar, conhecer "alguns secretários estaduais de educação que são quase analfabetos digitais". Cá está o cerne da impropriedade da defesa deste edital. Quem o tem defendido, seja pelo primeiro ponto, seja pelo segundo ponto da justificativa, invariavelmente exibe, ao fazê-lo, graves déficits de conhecimento, hora na área fim (a pedagógica), hora na área meio (a informática). Este artigo está eivado de exemplos destes déficits, um problema crônico da administração pública brasileira. Urge que se estabeleçam critérios para competências, prioridades, preferências e responsabilidades no gasto do dinheiro dos contribuintes, principalmente em contratos obscuros que envolvam inexigibilidade de concorrência licitatória. Ocorre que os apressados andaram se esquecendo de que o Congresso Nacional já atuou sobre este problema crônico, aprovando, em maio de 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal. E como diz o meritíssimo juiz Alexandre Vasconcelos, ao negar pedido da Anatel para manter sua licitação, "Boa ou má, esta lei condiciona a realização de licitação à previsão orçamentária e adequação ao plano plurianual, o PPA"

Entra então em cena, em 5/9/01, a comissão mista de orçamento no Congresso Nacional. Ela aprova, em atitude corajosa -- pois registra suas votações em notas taquigráficas e divulga suas transcrições aos votantes para assinatura -- e serena -- pois não extrapola nem se furta da sua competência e do seu dever -- emenda ao PPA que estabelece preferências para o destino orçamentário do FUST, adequando as verbas destinadas a software no projeto "internet nas escolas" à opção pelo software livre. Mas o Congresso Nacional é uma casa política, e pode muito bem desfazer amanhã o que faz hoje. O fato de ter aprovado emenda ao PPA pela preferência ao software livre no empenho de verbas do FUST, ou de amanhã vir a revogar esta emenda, nada diz a respeito da fundamentação técnica desta preferência. É apenas uma manifestação de vontade política, uma outra forma de manifestação do interesse público, contraponível àquela dos coordenadores estaduais do programa Proinfo. A favor da casa legislativa, nesta contraposição, está a sua legitimidade, constitucionalmente assegurada para expressar o interesse público em possíveis escolhas no empenho de verbas públicas.

Se a escala que prevalecer para aferição do interesse público neste edital for eminentemente técnica, temos já uma amostra da direção que deveria seguir. A saber, a mesma expressa na emenda ao PPA a respeito, aprovada em 5/9/01. Dentre os que investiram e desenvolveram, em suas atividades profissionais, competência tanto na área pedagógica como na área da informática, estão os professores de computação. Desses, todos que se manifestaram sobre este edital foram unânimes nesta direção. Como por exemplo o prof. Ivan Moura Campos, membro do comitê gestor da internet no Brasil e nosso representante no ICANN (espécie de comitê gestor global da internet), o Dr. Carlos Afonso, pesquisador responsável pelo Rits, o prof. Carlos Rocha do ITA, ex-presidente da Abicomp, o prof. Silvio Meira, coordenador do projeto CESAR (veja em "o Globo on line", de 3/9/01, "A educação jogada, literalmente, pelas janelas"), o já citado prof. Sergio Abranches, e o autor deste artigo.

A jornalista Miriam Leitão lembra também (no mesmo site) que todas as empresas de telecomunicação, exceto uma, abastecedoras e parceiras do projeto "internet na escola", adotam para si estratégia semelhante à recomendada por estes especialistas, contrária à escolha única do edital. A jornalista Marta Vieira, do Estado de Minas, informa em 11/09 que só no começo de Setembro, portanto só após o Justiça ter sido acionada para anular este edital, o MEC convocou representantes da Associação Brasileira de Empresas Estaduais de Processamentos de Dados para discutir o assunto, mas que não houve qualquer conclusão em torno da polêmica. Provavelmente porque tal conclusão não seria favorável à defesa do edital.

Se for esvaziado o primeiro ponto da justificativa, evacuando-se das secretarias estaduais a responsabilidade pela atribuição de interesse público à especificação unívoca do licitável em software, a tese a ser desenvolvida para sustentar a lisura do edital teria que se concentrar no segundo ponto da justificativa, a partir da manifestação pública de quem o defende. A saber, a de que a escala de medição do interesse público nesta escolha deva ser mesmo a lógica de mercado. O argumento central seria então o de que nossos alunos vão precisar saber usar os softwares que hoje predominam no mercado. Tal postura é puramente ideológica, como veremos, e como tal deve ser analisada. Reflete uma visão das inteligências dos alunos e professores do ensino médio que as enxerga insignificantes, ao igualar conhecimento em informática com treinamento em software, numa confusão típica do déficit de conhecimento em informática. Como uma opinião sobre as linguagens humanas, por quem só fala um idioma. E reflete uma visão pedagógica por demais simplista, que, de pior, embute uma leitura política perigosa. Uma leitura que enxerga como fato consumado, óbvio, perpétuo e imutável, o monopólio de mercado da empresa favorecida no edital. Como a de quem acha que todo o mundo tem que falar o seu idioma.

Uma visão fatalista que, naqueles que as proclamam, não fatalizou da mesma forma outros monopólios, que quando estatais, receberam desta mesma lógica de mercado prescrição para tratamento oposto. Aliás, tratamento de choque que transformou parte da receita do extinto monopólio brasileiro das telecomunicações em remessas de lucros para multinacionais, que hoje sangram nossa balança de pagamentos, e cujas migalhas de pedágio -- o FUST -- agora se quer fazer aportar num outro monopólio, este pretensamente intocável e inimputável. Há algo de obscuro e ambíguo nesta ideologia, que trata um monopólio multinacional fundamentalista como necessariamente bom, e um monopólio estatal como necessariamente mau para o interesse público, mas que nunca admite este preconceito em público. Haveria candidato mais apto para a lista de perversões, que o presidente da república diz querer corrigir, do que tal preconceito velado? Pelo menos um dos seus ministros entende que sim: o da Saúde.

Além deste preconceito ser ideologicamente ambíguo e obscuro, sua aplicação neste caso é ingênua, pois o mercado da informática muda muito rapidamente. O sistema operacional hoje predominante é um, mas há cinco anos era outro, e há dez era outro, e há vinte era outro completamente diferente, tanto nas suas características funcionais como proprietárias: era de uma outra empresa, que aprendeu com seus erros e hoje investe e promove o software livre, em programas parecidos com o Telecomunidade, em países que, como a China, nutre posturas ideológicas ao melhor menos obscuras e ambíguas do que a que sustenta a defesa deste edital. (veja http://www.acm.org/technews/articles/2001-3/0905w.html#item13 ). Nossas crianças, que estão hoje tentando aprender a escrever na escola, vão estar entrando no mercado daqui a oito ou dez anos, se até lá não abandonarem os estudos. Num mercado onde a versatilidade e a adaptabilidade valerão cada vez mais, muito mais do que hábitos mecânicos, treinados no uso de sistemas e aplicativos que estarão inevitavelmente obsoletos, daqui a oito ou dez anos. E num mercado que será moldado pelo fluxo cambiante das preferências e da evolução de modelos de negócio, e que hoje exibe uma taxa de crescimento do uso do Linux duas vezes maior que a do Windows.

O argumento pedagógico empregado para sustentar o segundo ponto da justificativa servirá, ao final, apenas para ajudar a empresa favorecida a neutralizar sua desvantagem nesta tendência, com ajuda da inércia e da lei do menor esforço. E pior, às custas do erário. O argumento pedagógico na defesa do edital seria apenas uma cantilena de camelô, se a muamba fosse qualquer badulaque. Mas a muamba aqui é coisa séria, destinada a intermediar a vontade e a inteligência do cidadão frente ao mundo virtual, ao passo que o argumento é do mesmo estofo que qualquer cantilena de camelô. Como por exemplo, pelo banimento dos sapatinhos de pano nos bebês em creches públicas, pois no mundo-lá-fora 90% tem os pés em couro e borracha. Ou pelo banimento das bicicletas em estacionamentos das escolas públicas, pois no mundo-lá-fora 90% vai trabalhar de automóvel. Ou pelo banimento dos lápis, lousas e crayons das salas de aula públicas, pois no mundo-lá-fora 90% do mercado prefere a tecnologia de escrita das esferográficas Bic.

A liberdade é o paradigma da adaptabilidade e da versatilidade, não só no mundo-lá-fora mas também no mundo da indústria do software. O Sr. Pedro Paulo Popovic, responsável pelo ensino à distância do MEC nos explica, dando destaque ao segundo ponto, que no mundo-lá-fora só tem Microsoft, enquanto desvia a atenção das estranhezas do primeiro ponto da justificativa, citadas pelo prof. Sérgio Abrantes na matéria supramencionada. Enquanto isto a Microsoft tenta, para ocultar sua alma absolutista, seqüestrar a palavra "liberdade" numa campanha publicitária onde defende o seu direito à "liberdade de inovar". Mas esta liberdade será usada, como já nos mostra, para que suas inovações possam se arremessar incólumes contra o edifício da cidadania planetária, onde o internauta abriga a sua liberdade de controlar intermediações de sua própria inteligência. Se a IBM aprendeu o valor do paradigma da liberdade com seus próprios erros, por que nós também não podemos aprendê-lo com os nossos erros? Afinal, estaríamos ao menos imitando a estratégia de uma empresa que era vaca sagrada do capitalismo, há vinte anos. E que soube sobreviver à queda do pedestal, agora ocupado pela empresa monopolista que quer total liberdade para inovar, num cenário em que o controle global sobre a informação se torna cada vez mais cobiçado e Orwelliano.

2.3 Sobre fatalismos, na escolha de escalas do interesse público

A obsolescência de escolhas na informática virá, de uma forma ou de outra. Mas, com a escolha do edital em tela, o roteiro já está mapeado e o mapa pode ser lido. A empresa favorecida programa a obsolescência de seus softwares controlando a incompatibilidade e a dependência daquilo que licencia e dá suporte. Ela é quem controla os formatos e protocolos que dão vida útil a seus softwares no mundo virtual, e só não se apoderou ainda dos protocolos abertos que dão vida à internet, porque nem todos no mundo-lá-fora engolem a cantilena do segundo ponto da justificativa. O que acontecerá então se, por fim, o fatalismo vencer corações e mentes nesta batalha, e nos rendermos à cantilena do Sr. Popovic, amplificada por ovos de ouro na mídia? Para manterem-se pari passu com este mundo-lá-fora, cumprindo a promessa do ministro da Educação de formar alunos para o mercado (e não para a vida em sociedade), as escolas e os alunos terão que correr da obsolescência, artificialmente manipulada pela empresa favorecida. Esta corrida exigirá, do programa "internet na escola", um fluxo contínuo e crescente das migalhas do pedágio das telecomunicações privatizadas, e o retreinamento constante de professores e alunos em seus softwares.

Se isso ocorrer, seria bom que, antes da rendição, lançássemos um olhar sobre a empresa-que-sabe-tudo, premiada com a fé cega de nosso ministro da Educação e do presidente da Anatel, para entendermos o que ela planeja para o nosso futuro. As novas licenças de software terão validade anual, a distribuição e a ativação dos softwares se dará via conexão pela rede, proporcionando à empresa baixos custos na distribuição de novas versões, aos licenciados uma dependência cada vez maior e mais freqüente em novos treinamentos e em verificação automatizada da adimplência de EULAs e de futuros aditivos, e aos parceiros multinacionais de telefonia uma demanda artificial crescente de serviço, com a carga e ativação de software on line. O hardware poderá ser do tipo que impeça a "possível redefinição do software", prometida na tal ata, principalmente depois de aprovada a SSSCA nos EUA. Nem mesmo para partida dual, para pluralizar os sistemas disponíveis aos coordenadores que venham a se arrepender de sua estreiteza e omissão. Estes impedimentos e sobrecargas serão legais, decorrentes de tecnicalidades que terão passado despercebidas nas subcontratações para aquisição de equipamentos e upgrades, vagamente abordadas ou omitidas no edital. Detalhes, com o perdão da palavra, surrealistas.

Além das dependências ocultas e cruzadas entre hardwares e softwares da Microsoft, tal fé cega irá colocar outro bode nas salas de aula, no custo de manutenção e suporte do programa "internet na escola". Uma grande balela tem sido alardeada, por quem concentra a defesa do edital no segundo ponto da justificativa, para atrair mais este bode. Uma balela que explora déficits de conhecimento técnico do leitor incauto ou desavisado, e para a qual chama atenção o prof. Sergio Abranches, na sua supracitada matéria. Trata-se de ilações sobre estimativas de TCOs (custo total de manutenção e operação de plataformas de informática) entre a escolha do edital e suas alternativas não contempladas. A balela é a de que a escolha do edital resultaria em TCO mais barato para o programa "internet na escola". A jornalista Mariana Barbosa cita, no artigo "Janela Indiscreta" na revista Dinheiro de 12/9/01, declaração do diretor Nacional do Proinfo, Cládio Sales, de que o edital "Foi a decisão mais vantajosa financeiramente". Resta esclarecer para quem serão as vantagens, declaradas pelo mesmo diretor que pretende encarnar um boletim de urna em alguma hermética ata, um boletim que não bate com o apresentado pela empresa por ele julgada mais vantajosa.

Quem tiver dúvidas sobre a insensatez desta balela, incorporada à cantilena do segundo ponto da justificativa, poderá consultar documentos públicos a respeito. Poderá começar pelos da única empresa estatal brasileira até hoje em condições de comparar os TCOs de plataformas livres com TCOs de plataformas da Microsoft, por ter recentemente iniciado um programa de migração para software livre, relatando uma economia anual de cerca de R$40 milhões para o contribuinte gaúcho (veja em http://www.procergs.com.br). E depois, examinar documentos públicos que mostram como a empresa favorecida pelo edital pratica contratos com grandes clientes no governo brasileiro, e de como, uma vez firmado contratos guarda-chuva (contratos select), este tipo de contratação pode escamotear e abrigar custos obscuros e espertezas contábeis, embrulhando junto EULAs, prestação de serviços, de suporte, de consultoria e de futuros aditivos contratuais, engatados em requisitos de compatibilidade e upgrades. Com a inexigibilidade de concorrência garantida pelo edital, combinada às práticas mercantis da empresa que tem ficha criminal inidônea, a imaginação torna-se o limite da criatividade para tais manobras.

Quem quiser sondar estes limites, pode consultar auditorias realizadas na Caixa Econômica Federal, para ver como a licença de uso do software pode sair barata, porém, empacotada com suporte "opcional" cuja hora pode custar mais de R$2000,00 (opcional do tipo "possibilidade de redefinição dos softwares", na tal ata do Proinfo). Pode verificar a imensa gama de malabarismos e artifícios possíveis neste tipo de contrato, escamoteando custos e beneficiando empresas premiadas pela inexigibilidade de concorrência, pegando carona em dependências de compatibilidade produzidas pela arquitetura dos softwares da empresa-que-sabe-tudo. Estes detalhes podem ser encontrados, por exemplo, na auditoria que o ministro Iram Saraiva do TCU executou nos contratos firmados entre o Serpro e TBA, representante exclusiva da Microsoft no Distrito Federal para contratos de grandes clientes, em http://:www.tcu.gov.br/SA/Rol%2520de%2520Atas/Download/Atas%25202000/Plenario/ATA_PL_48,_de_06-12-2000.PDF,

Com a escolha atual do edital, todo o planejamento orçamentário do programa "internet na escola" ficará, depois dos primeiros dois anos, em mãos desta empresa premiada, prisioneiro da inércia decorrente da escolha. Inclusive quanto a custos indiretos, com aumento de demanda de tráfego telefônico para sócias da empresa no negócio -- outro lado obscuro do edital --, gerado pelo modelo de distribuição e autenticação do software, em sua alardeada tecnologia do futuro, sua "plataforma ponto net". Passados os dois primeiros anos do programa, nos quais está prevista a ausência de upgrades, quando alunos semi alfabetizados tenham mal aprendido a usar 5% de um maravilhoso editor de texto com quatrocentos mil pontos de função, terão que retreinar-se numa nova e recém lançada versão, que vai custar ainda mais caro e terá seiscentos mil pontos de função.

O MEC não terá nada a fazer. Quando o aluno clicar no ícone, a nova versão do software virá automaticamente à escola via rede, e a fatura será devidamente encaminhada à Anatel. Mas somente se a linha telefônica da escola estiver funcionando, pois se não estiver, nada poderá ser feito com o maravilhoso computador, já que a validade da licença do Windows não poderá ser verificada on line pela proprietária do software. Se a "eleição" das secretarias estaduais pelo Windows não deixou rastro nem pode ser auditada, imagemos então os aditivos contratuais para novas versões de software, cujas negociações serão, estas sim, pura e simplesmente surreais. A voracidade da empresa favorecida poderá vir a inchar os custos do programa "internet na escola", que inicialmente giram em torno de 12% do orçamento do FUST, minguando outros programas de cunho social que também dependem das verbas deste fundo.

Alunos e professores não terão o que contestar, pois foi-lhes prometido que aprenderiam o que o mercado-lá-fora esteja pedindo. E a promessa teria sido ingenuamente aceita, como se o prometido fosse um passaporte para a entrada de todos num mercado de trabalho futuro. Esta é a educação pública que se quer impor ao Brasil, através de atas herméticas. Por um ministro da Educação que é contra o ensino de filosofia nas escolas, e que confunde treinamento com formação. Que quer fazer nossos filhos aprenderem a apertar botões, sim, mas a pensar, não. Que quer oferecer treinamento em produtos de um monopólio intocável e inimputável, às custas do erário, à guisa de educação. Com máquinas e softwares caros e sofisticados para quem mal tem merenda e lousa, para quem convive com goteiras e carteiras quebradas, greves, bandidos e drogas em sala de aula, professores mal pagos e amedrontados. A pressa que nunca houve para se oferecer resposta a estes descasos, emerge agora com todo ímpeto, para legitimar opção pelo monopólio fundamentalista da empresa-que-sabe-tudo, em troca do monopólio da liberdade com que nascemos. Que coceira estranha é esta, causada em homens públicos por verba parada em cofres públicos?

Em entrevista ao Estado de São Paulo em 4/9/01, o diretor de marketing da Microsoft teria dito que "com o Linux, os alunos não seriam preparados para o mercado de trabalho". Traduzindo para um português menos ambíguo: com o Linux nossos alunos não estarão preparados, quando se formarem, para o mercado de trabalho, como ele é hoje. Treinamento nos produtos de sua empresa, licenciados hoje ao governo, seria a formação ideal para os nossos alunos, para a vida de amanhã. Ele parece estar identificando aquilo do qual entende, aquilo que é potencialmente bom para o negócio de sua empresa -- algo volátil por natureza, com as nuanças pedagógicas de um dever do Estado para com a sociedade -- algo estratégico por natureza. A mesma conclusão a que chega o ministro da Educação, a partir de déficit de conhecimento complementar. O que eles não dizem, mas que precisa ser dito e verificado, para que o exame da escolha de escalas pedagógicas para sacramentar a escolha do edital se complete, é que a opção pelo software livre formará, em nossos alunos, um melhor apreço pela diversidade, pela liberdade, e pelo imenso potencial humano para a cooperação solidária. Valores perenes dos quais deveria se ocupar a Educação numa sociedade sadia.

Para completar-se este exame precisa ser dito e verificado que, com a opção pelo Linux, os alunos terão aprendido a usar editores de texto, planilhas, bancos de dados e navegadores do mesmo jeito, ou melhor, com menos frustrações, aborrecimentos e custos ao erário que com o Windows. As dificuldades maiores ficariam com os técnicos, que teriam novas oportunidades de acumular competência profissional, diante de novos desafios e diversidades. A oferta de serviços sempre acompanha a demanda, e precisará ser criada para acomodar as necessidades ainda inexistentes do Proinfo, quaisquer que venham a ser. Os argumentos sobre TCO na cantilena do segundo ponto da justificativa são apenas palpites tendenciosos, como demonstra a experiência de migração para software livre conduzida pelo Estado do Rio Grande do Sul. Com o software livre as dificuldades estarão onde podem ser úteis, e não com os alunos e professores, que de outra forma teriam que negociar travamentos, surtos virais e "operações ilegais", como têm tido que negociar os funcionários do MEC. E com a plataforma ponto net, até para digitar um bilhete para a vovó a criança precisará acionar o serviço de telefonia de sua escola, que não sai barato, para que e empresa de Redmond autorize-a, mantida a escolha do edital. Além de negociar as mazelas já conhecidas dos softwares desta empresa, os alunos terão que negociar também linhas telefônicas congestionadas ou escassas nos bairros de suas escolas.

Com a opção pelo software livre, criança nenhuma precisará de autorização on line de empresa nenhuma para digitar "Querida vovó" num teclado de uma escola pública. E quando estiverem para sair da escola saberão que, para acudirem às preferências de mercado, quaisquer que venham a ser elas, a tarefa será de readaptação a ferramentas que já conhecem, com penduricalhos diferentes. Principalmente se as preferências se mantiverem como hoje, pois a Microsoft tem "inovado" em software apropriando-se ou comprando direitos de uso de tecnologias ou idéias alheias, muitas vezes quebrando contratos (Sybase, Sun). Assim surgiu o Windows a partir do Macintosh, o Excel do Visicalc, o Access do Sybase, o Internet Explorer do Netscape Navigator, o Media Player do RealPlayer, o servidor web IIS do Apache, etc, etc. A empresa só tem sido verdadeiramente inovadora nos seus contratos. Igualmente importante, os alunos saberão que seu conhecimento em informática não estará preso a penduricalhos e arapucas mercantis. E se estas afirmações parecerem disparatadas ou caluniosas, considere-se o seguinte dispositivo no EULA da sua ferramenta da para confecção de páginas web, o FrontPage 2002:

"You may not use the Software in connection with any site that disparages Microsoft, MSN, MSNBC, Expedia, or their products or services... " (em http://www.infoworld.com/articles/op/xml/01/09/17/010917opfoster.xml?0920t). A empresa se dá o direito de censurar on line qualquer tentativa do usuário, aluno ou professor, de publicar suas páginas em sites que, no entender dela, depreciam-na ou depreciem qualquer de seus produtos, parceiros ou serviços. Dá-se também o direito de implodir o software a posteriori, sem ressarcimento ou compensação ao licenciado (vigorando a UCITA), caso venha a considerar que tenha havido envolvimento de aluno ou professor, através do seu software, com sites que a depreciam. Se o licenciado for o poder Judiciário não poderia publicar, em seu próprio site, sentenças como a do juiz Penfield Jackson!. E o usuário, ao clicar no botão de instalação do software, paga e aceita caladinho. Se a escolha deste edital não tiver uma dimensão ideológica, o que mais poderia ter? Se a lógica que deduz esta escolha não for uma das perversidades da globalização que precisam ser corrigidas, como quer o presidente da república, o que mais poderia ser?


3. Conclusão

A rendição ao bicho papão do mundo-lá-fora do Sr. Popovic seria um vôo cego da sociedade brasileira através da globalização, guiado por uma tragicômica proclamação de fatalidade, pela ingenuidade de uns e pela avareza do outros. Esta afirmação não se retira de uma novela de George Orwell, mas antes, se deduz da expressão do desejo do nosso atual ministro da Educação e do atual presidente da Anatel. Para contextualizarmos a postura da Anatel neste debate, vale relembrar alguns fatos sobre seu desempenho na missão que ainda lhe cabe desempenhar. Manteve, nas mãos da Embratel, a responsabilidade de representar o Brasil quando do último congresso do consórcio intelsat. Na ocasião, o Brasil poderia ter exercido o direito de aumentar sua cota de participação neste consórcio, de 2% para 4%, conquistado pelo aumento no volume de sua demanda. Mas não o fez, pois quem controlava a Embratel, a Sprint, preferiu abocanhar parte da deferência para si mesma, na redistribuição do bolo de acesso ao tráfego de comunicação por satélites do consórcio, negociado neste congresso.

Questionado, o presidente da Anatel justificou-se por este deslize afirmando não ter previsto conflitos de interesse ao manter a Embratel como representante no consórcio, já que, até antes da privatização, a empresa vinha bem representado os interesses do Brasil. Este prejuízo para a nação deve ter sido uma outra dessas fatalidades, pois nada lhe aconteceu. Será que o presidente da Anatel também acha que a empresa de Redmond vai bem representar o interesse da educação pública brasileira através de seus softwares? Ele teria classificado de "surreal" a discussão política e ideológica em torno do seu edital, enquanto sua agência oferecia agravo de instrumento contra liminar que suspende sua licitação, alegando "lesão aos competidores, prejuízo ao interesse público e todos os beneficiados", incluindo nos beneficiados até "a comunidade como um todo". Haveria, nesta análise toda, algo mais surreal do que o plural naquela primeira oração do agravo, e o inversão de predicados? Se a Anatel cuidar para que fiquem ilesos os "competidores" em suas licitações sem concorrência, com o mesmo afinco com que cuida o Serpro, a resposta mais provável será afirmativa.

Temos aqui descritas quatro manifestações distintas do interesse público no licitável do edital da Anatel, onde apenas uma delas -- a mais débil -- o sustenta conforme o edital. Uma, aferida por escalas obscuras e mal riscadas. Outra, por escalas cambiantes e volúveis. Outra, por escalas técnicas e exteriores ao processo. E outra, por escalas subjetivas e imprecisas, na postura pública do presidente da república, de querer corrigir perversidades do fundamentalismo de mercado na globalização. Temos, também, a esperança de que a Justiça brasileira saberá se manifestar, com parcimônia e equilíbrio, sobre qual processo deva aqui prevalecer, para a escolha de escalas que irão aferir o interesse público neste decisivo mergulho da nossa sociedade, em direção à globalização.

Sobre o autor
Pedro Antônio Dourado de Rezende

professor de Ciência da Computação da Universidade de Brasília (UnB), coordenador do programa de Extensão Universitária em Criptografia e Segurança Computacional da UnB, ATC PhD em Matemática Aplicada pela Universidade de Berkeley (EUA), ex-representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REZENDE, Pedro Antônio Dourado. Comentários ao edital 1/2001 da Anatel sobre critérios de seleção de softwares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2350. Acesso em: 23 dez. 2024.

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