O meritíssimo Juiz Carlos Eduardo Castro Martins, da 6ª Vara da Justiça Federal de Brasília, indeferiu, em 30/8/01, pedido de liminar pela nulidade do edital de licitação da Internet escolar, do programa Telecomunidade, financiado com recursos do FUST, o edital 1/2001 da Anatel. Ao explicar sua decisão, oferece-nos um exemplo dramático e lapidar da importância da reta compreensão de novos conceitos que aportam à cena jurídica por via da informática. Neste exemplo, os conceitos vêm da imersão da sociedade na teia virtual, no qual a parcial compreensão volatiliza a segurança e o equilíbrio que a sociedade almeja do poder Judiciário. Contudo, como o meritíssimo juiz diz basear sua decisão apenas num primeiro exame do tema, cumpre-nos aqui oferecer alguns comentários.
Segundo a revista eletrônica IDG (em http://idgnow.terra.com.br/idgnow/internet/2001/08 /0097), a explicação do meritíssimo juiz teria sido a seguinte. Havendo interesse no fornecimento de um bem, fabricado ou fornecido por determinada empresa, sua especificação "pode, em princípio, constar do edital, pois o interesse público pode existir unicamente no fornecimento de um determinado bem, o que ocorre neste caso". Licitação de um determinado software seria, portanto, um caso de aquisição de bem, e o interesse público na sua aquisição estaria, neste caso, ocorrendo. Neste contexto, faz-se mister que sejam esclarecidas duas afirmações.
A primeira: De que o fornecimento do sistema operacional Windows pode ser considerado como aquisição de um bem;
A segunda: De que esta aquisição pode ser considerada de interesse público.
1- O fornecimento do sistema operacional Windows, como aquisição de um bem
Se o meritíssimo juiz nunca tivesse usado o Windows, seria pouco provável que se pronunciasse sobre seu interesse público, por opinião própria. Ao se pronunciar sobre este interesse público, sustenta a tese de sua peculiar vantagem para o fim pedagógico a que se destina no edital em tela, sem desenvolvê-la. Entretanto, mesmo para quem conhece o software em questão, a defesa desta tese pode encontrar dificuldades na compreensão do objeto da licitação. Uma deficiência de compreensão deste objeto já é sinalizada no seu despacho negando a liminar pleiteada, através da alusão que faz ao ato licitatório em exame, alusão que passamos aqui a comentar.
Vamos supor que o meritíssimo juiz já tenha feito uso pessoal deste software. Neste caso, devemos antes supor que o tenha feito na forma da lei. Neste caso, teria concordado com sua licença de uso, na qual está explícito que a empresa produtora mantém, e sempre manterá, a posse do software fornecido. Também está explícita na licença a natureza deste uso: para gerenciamento de arquivos eletrônicos e controle das funções do computador, no qual venha a ser instalado. O meritíssimo juiz saberia que o ato de licenciar o uso do Windows é mais propriamente um ato de contratação de serviço do que um ato de aquisição de um bem, porquanto a própria licença se nomeia materializadora deste contrato, e explicita os direitos e responsabilidades das partes contratantes de forma peculiarmente detalhada (EULA-End User Licence Agreement). Quem contrata o serviço quase só terá obrigações e responsabilidades, e quem o fornece quase só terá isenções e direitos.
Atos intermediados pelo Windows são atos de acesso e manipulação a recursos computacionais e documentos eletrônicos. Pelo contrato que licencia seu uso, estes atos serão sempre de responsabilidade do licenciado. O pagamento pela licença de uso do Windows não cobre estas responsabilidades. Trata-se de um contrato de adesão, com características semelhantes às de uma procuração judicial, no qual a capacidade de um ente etéreo -- um software -- para cumprir estes atos é definida e aceita pelo licenciado na forma de suas conseqüências, não de expectativas do licenciado. Nem mesmo aquelas expectativas que porventura surjam de material publicitário sobre o software, fornecido pelo licenciador. Não se trata, portanto, de um tipo qualquer de contrato, pois sua natureza jurídica é assaz peculiar, tendendo ao desequilíbrio de riscos entre contratantes.
Ao declarar que uma tal forma de contratação é uma aquisição de bem, o meritíssimo juiz nos coloca diante de um cenário do qual várias teses podem emergir. Vamos enumerar as mais prováveis, dirigindo em seguida nossa atenção às suas mais graves conseqüências.
Ou bem o meritíssimo Juiz nunca usou o sistema operacional Windows, não tendo tido a oportunidade de verificar que seu fornecimento, na forma da lei, constituísse numa contratação para licença de seu uso (EULA), sem transferência de posse e com precário equilíbrio jurídico entre contratantes;
Ou bem o meritíssimo Juiz conhece a licença de uso, mas discorda de sua validade jurídica, referindo-se implicitamente à sua clausula que retém a posse do software pelo licenciador como nula;
Ou bem o meritíssimo Juiz conhece a licença de uso e reconhece sua validade jurídica, referindo-se implicitamente às obrigações e responsabilidades decorrentes do ato de sua contratação como sendo um bem de interesse público, lastreado em promessas ou inferências sobre a eficácia pedagógica de sua contrapartida contratual;
1.1 Sobre a natureza e o negócio dos sistemas operacionais
O Windows, como todo software, é um agregado de programas de computador que se intercomunicam para operar, controlar e transformar dados digitais. Dito de outra forma, um mecanismo lógico que controla o acesso e manipula bits, que, quando contextualizados, se tornam informação. Softwares são instrumentos de poder na medida em que a informação é o ativo mais importante na nova economia. Além disso, o Windows é um software especial, por se tratar de um sistema operacional. Dentre os softwares, os sistemas operacionais se destacam pois a informação que controlam são outros programas. Eles intermediam as conexões destes aos recursos físicos (hardware e mídia) e lógicos (formatos e protocolos digitais) que lhes permitem realizar suas funções.
Os sistemas operacionais tem poder supremo dentre os softwares, pois eles é que controlam o poder que outros programas terão a oferecer aos usuários. O negócio dos sistemas operacionais é de natureza semiológica, pois tais sistemas cumprem o mesmo papel no mundo virtual que a capacidade lingüística cumpre no mundo da vida. Assim é, pois o domínio de um idioma também dá acesso e poder de manipulação à informação, na sua manifestação humana, pré computacional. Por isso o negócio dos sistemas operacionais é naturalmente monopolista, da mesma forma que uma cultura humana tende a desenvolver um idioma comum. No caso dos idiomas, seu modelo de negócio é livre. Ninguém, por exemplo, é dono absoluto da língua portuguesa. Aprende e usa quem quer, bem ou mal, mas livremente.
Da mesma forma, há um modelo de negócio em torno do software que é livre. Por sinal, o negócio do software começou com este modelo, na década de 50. Neste modelo, o código do programa é aberto e seus preços são negociáveis, exceto um. A distribuição e o suporte dos programas tem preço livre, mas sua liberdade não. No segmento de mercado que opera este modelo, programas evoluem pela contribuição de todos, principalmente dos cultos. Quando passa a incluir sistemas operacionais ele se emancipa, como ocorre com os idiomas. Como um idioma, um sistema operacional tem potencial universalizante, através do difusão do conhecimento e direito de uso dos formatos e protocolos por ele intermediados, para aqueles que desejem produzir softwares destinados a operar sob esta intermediação.
Mas, como o negócio dos sistemas operacionais tende ao monopolismo, no mercado geral do software é natural que também surjam tendências absolutistas, segmentando o mercado em torno de distintos sistemas, para torná-lo monopolista e proprietário. Nesta tendência, as características universalizantes do sistema -- compatibilidade e interoperabilidade de programas -- se tornam moedas de troca para o exercício de um poder absolutizante. Exemplos de controle destas características para o exercício deste poder abundam, sendo tema recorrente em meus artigos e cerne da condenação, por práticas monopolistas, da empresa escolhida pelo edital da Anatel para fornecer a quase totalidade dos sistemas que irão operar em nossas escolas públicas.
Na ausência de controles sociais neste mercado, como ocorre hoje, a tendência absolutista predomina. Sob o efeito deste predomínio, um olhar desatento e desarticulado pode ver o modelo de negócio do segmento predominante como única alternativa viável. Pode assim chegar a confundir uma das formas contratuais de intermediação ao virtual, praticadas neste mercado por este segmento, com uma dádiva ou benefício cultural adquirível como mercadoria, como se adquire uma caneta esferográfica para intermediar a expressão escrita, um sapato de couro para intermediar o andar, ou um carro de passeio para intermediar o transporte. Este olhar pode até confundir tal predomínio com preferência pela qualidade ou pela eficácia. Mas não é, por exemplo, porque todos por aqui falam português que este idioma será o melhor dos idiomas. Sistemas operacionais, como os idiomas, não são mercadorias. São meios de se realizar a inteligência humana, na fala e na escrita, ou nos bits. Como todo software e toda linguagem, não são feitos de átomos, mas de símbolos.
Quando este olhar desarticulado se insinua na cena jurídica, as consequências podem ser graves, e a gravidade dessas possíveis consequências será comentada na sessão 2. Se o meritíssimo juiz não teve ainda a oportunidade de verificar que o formecimento do Windows, na forma da lei, constitui-se numa contratação para licença de seu uso (EULA), sem transferência de posse e com precário equilíbrio jurídico entre contratantes, certamente terá a oportunidade de fazê-lo num exame mais detalhado, enquanto desenvolve ou reverte a tese que defendeu, no despacho do pedido de liminar.
1.2 Sobre dispositivos da licença de uso do Windows
O discurso oficial da empresa proprietária do Windows para explicar este cenário atual, é o de que ele seria a própria natureza do mercado de software. A Microsoft não reconhece o valor social do segmento livre do mercado onde opera, vendo-o antes como ameaça, embora comece a reconhecer sua importância (veja em http://www.politechbot.com/p-01740.html). Esta sua postura é compreensível, já que sua ideologia é o fundamentalismo de mercado, segundo a qual o negócio tecnológico é o que importa, e o processo semiológico é irrelevante. Porém, sob um olhar mais amplo, o cenário atual apenas reflete déficits de governança e controle social na esfera virtual. Estes déficits podem ser atribuídos à diferença na velocidade em que evoluem as aplicações tecnológicas na esfera semiológica, e os processos sociais onde estas aplicações tem efeito, incluso as novas jurisprudências que tangem o virtual. Estes déficits permitem à empresa alcançar e sustentar sua posição de mercado e, a partir dela, evangelizar e avançar a ideologia que abraça e que bem lhe serve. Converte-se quem quer.
Este cenário nos leva a um impasse. As novas jurisprudências não devem ignorar os dispositivos contratuais que constituem o cerne do negócio em torno dos sistemas operacionais, ou deles se desviar, sob pena de pagarem um preço em perda de autonomia, perpetuando déficits de cidadania para os licenciados e de governança para os poderes constituídos, inclusive para o próprio Judiciário, com a qual a sociedade conta para proteger suas instituições e suas conquistas humanistas. Isto porque, no segmento absolutista deste mercado, a intermediação que o software exerce é opaca à auditagem, e a verdade dos seus bits quer-se soberana e final. Os dispositivos sobre o preço a ser pago pela licença de uso, foco de uma primeira atenção na discussão política que se avoluma em torno do interesse público da contratação do Windows, nos termos do edital em tela, ou mesmo os dispositivos que tratam da posse de software, são, sob um olhar mais amplo, de importância menor.
Muito mais graves, pelas suas conseqüências sociais, são os dispositivos contratuais destinados à manutenção de controles absolutistas sobre processos semiológicos, cada vez mais cruciais para a sociedade e para a autonomia dos Estados. Faz-se mister questionar, neste ponto, as razões para o edital da Anatel não se ater à forma de contratação para licença de uso dos softwares que univocamente especifica, o Windows ME e o Windows CE. Pois, numa análise mais criteriosa da natureza do objeto da licitação, muitas das cláusulas nos EULA desses softwares se chocariam frontalmente com o espírito ou dispositivos do código de defesa do consumidor, e com preceitos sobre a natureza da Educação que o Estado tem, no Brasil, obrigação constitucional de prover e fiscalizar. A título ilustrativo, passamos a enumerar alguns, cujos desdobramentos serão brevemente ponderados na sessão 2.
As versões de softwares que a Microsoft está por lançar, como por exemplo o Windows XP, devem incluir, na sua funcionalidade de navegação na internet, mecanismos eufemisticamente denominados "elos inteligentes". Quando um professor pedir aos alunos para visitarem um site, fornecendo-lhes o endereço web do mesmo, ao digitar este endereço no navegador o aluno verá que digitou corretamente o endereço fornecido. Mas, ao clicar o comando, o "elo inteligente" do sistema estará, sorrateira e invisivelmente, substituindo este endereço por um outro, que um banco de dados da Microsoft considera possuir conteúdo equivalente, desviando sua navegação e mostrando na tela ao aluno, ao invés do site indicado pelo professor, o site de alguma empresa que mantém parceria comercial ou ideológica com a Microsoft. Será que nossas escolas terão alunos que saberão apertar botões, e professores que não sabem o que estará acontecendo por trás da tela do computador? Onde se diz que nossos alunos estarão, com a escolha do edital, dominado as tecnologias preferidas do mercado, seria talvez mais apropriado dizer que estarão sendo dominados por elas.
Nas suas versões usuais, os contratos de adesão para licença de uso (EULA) dos produtos da Microsoft contém cláusulas destinadas a neutralizar jurisdições em vigor no foro do licenciado, determinando como foro de pacificação de disputas judiciais aquele onde tem sede a empresa licenciadora. Algumas leis em vigor em alguns desses foros são draconianas em relação a vários direitos do licenciado, sustentados em outras jurisprudências do direito comercial. Como a proibição de investigar a lógica interna do software objeto da licença, de divulgar comparações de performance com outros softwares, vulnerabilidades ou embustes em relação ao que a publicidade do software anuncia. Estes dispositivos estão presentes nas leis UCITA e DMCA, a primeira sobre comércio e de juristição estadual, a segunda sobre direito autoral e de jurisdição federal, nos EUA, que em muitos casos sequer são citados nos EULA.
Em conseqüência, pesquisadores na área de segurança computacional tem sido ameaçados por anunciarem sua intenção de divulgar suas descobertas sobre vulnerabilidades e falsas promessas em softwares proprietários, em congressos científicos. O prof. Edward Felten, da Universidade de Princeton, retirou recentemente um artigo dos anais de um congresso sobre segurança computacional, após sofrer ameaças da RIAA, a associação que congrega as maiores indústrias fonográficas do mundo, amparadas no DMCA. (veja http://www.cs.princeton.edu/sip/sdmi/riaaletter.html ). Um aluno de doutorado em computação, nascido e criado na Rússia, Dmitri Sklyarov, recentemente viajou aos EUA para apresentar suas descobertas sobre vulnerabilidades em um software proprietário americano, em congresso. Foi preso e aguarda julgamento, acusado, junto com a empresa em que trabalha na Rússia, a Elcomsoft, por infração de dispositivos anti burla do DMCA, em atos praticados em seu país de origem, onde estes atos não constituem crime. (veja http://www.politechbot.com/cgi-bin/politech.cgi?name=sklyaro)
Ironicamente, a Elcomsoft é fornecedora de softwares para auditoria e forênsica computacional do FBI, sua atual algoz neste processo. Cabe aqui perguntar se é este o tipo de educação que queremos fomentar em nossas escolas, com o dinheiro dos nossos impostos. Caso o meritíssimo juiz esteja discordando da validade jurídica deste tipo de contrato de adesão, ao se referir ao ato licitatório do edital da Anatel como o de aquisição de um bem, proclamando assim a nulidade da clausula que retém a posse do software pelo licenciador, teria aí um motivo para conceder a liminar que negou, pois o edital não se contrapõe a priori a nenhuma cláusula dos contratos EULA normalmente praticados pela empresa favorecida com a inexigibilidade de concorrência. Porém, outros motivos também teria o meritíssimo, em tese mais graves, como os pincelados acima.
1.3 Sobre a relação entre licenciador e licenciado de sistemas operacionais
A competição que deveria haver entre licitantes, de que trata o meritíssimo juiz no seu despacho, será, sob um olhar mais cauteloso, muito mais dramática do que aparenta ser. Segundo este despacho, esta competição deve ser condicionada ao interesse público, cuja manifestação neste edital ainda não foi questionada. Esta competição é, antes de tudo, entre ideologias. É também uma competição entre modelos de negócio, entre interesses políticos, e entre filosofias de ensino. Apenas na sua superfície será uma competição entre softwares. O presidente da Anatel parece buscar restringir o debate a isto, quando classifica de "discussões surrealistas" a abordagem das demais dimensões desta competição, considerando-as "no fundo ideológicas", em aparente intenção de desmerecê-las, conforme matéria do jornal "Valor on-line" em 3/9/01. Entretanto, não haveriam razões de princípio para se desabonar a abordagem ideológica da dimensão ideológica de um ato da administração pública, em críticas construtivas ou em ajuizamentos deste ato. Se há ou não uma dimensão ideológica no ato de publicação deste edital, suspendemos a questão até o final da sessão 2.
Nos critérios postos a metro para se medir o interesse público em potenciais softwares licitáveis estarão, para o leitor atento, as escolhas anteriores e principais que direcionaram este edital. Faz-se mister observar, neste ponto, que o direcionamento da licitação só poderá se configurar isento de vícios se, após o exame da escolha das escalas de medida para aferição do interesse público, implícitos nos termos do edital, a isenção desta escolha possa ser sustentada. Nesta escolha de escalas para medir o interesse público, que até o acionamento da Justiça vinha ocorrendo nos bastidores, está a verdadeira competição do edital. Tanto mais porque esta escolha será decisiva para os rumos que tomará nossa nação frente aos desafios da globalização, motivos pelos quais sobre ela não deveria se furtar a voz da Justiça, que, nos dizeres do meritíssimo ministro do STF Dr. Marco Aurélio de Melo, é o último bastião da cidadania.
A acusação de que a interpelação judicial sobre a lisura do edital é manobra política que só atrasa a educação brasileira, oferecida à imprensa por quem conduziu de forma obscura a escolha de escalas para medição do interesse público no licitável, como se pretende mostrar na sessão seguinte, e por quem teria pressa de ir às compras com o dinheiro do contribuinte, como dito por exemplo em http://oglobo.globo.com/arquivo/colunas/20010901/panpol.htm, não contribui para a boa condução deste exame. Para contribuir para sua boa condução propomos, nesta subseção, oferecer elementos para o exame dos dois primeiros tipos de escala para esta medida. A saber, para as escolhas de natureza ideológica e mercadológica subjazendo a aferição do interesse público na especificação licitatória para os computadores de tipo A e B, no referido edital. Na sessão seguinte, abordaremos a escolha dos dois outros tipos de escala de medida subjacentes a esta especificação licitatória, de naturezas política e pedagógica.
Como contraponto para o exame proposto, temos o modelo de negócio predominante nas licenças sob as quais é distribuída a maioria dos softwares livres, como o GNU-Linux, alternativa ao Windows para o que se licita no edital em tela. Trata-se do modelo GPL. Na licença GPL, o que se contrata é o direito de uso e de contribuição para a evolução do software, em troca da responsabilidade pela preservação deste direito. Este modelo busca restaurar a relevância do caráter semiológico no negócio do software, contrabalançando seu caráter mercadológico, hoje exacerbado pelo fundamentalismo de mercado que dirige a globalização. Não pode haver modelo de negócio mais simples e mais coerente com o espírito de uma educação pública contemporânea de qualidade. Entretanto, o fundamentalismo de mercado causa perversidades, como explica o presidente Fernando Henrique, em artigo no JB de 12/8/01 "Gênova e nós". (em http://www.jb.com.br/jb/papel/brasil/2001/08/11/jorbra20010811003.html). Sob a óptica deste fundamentalismo, expresso na postura da Microsoft comentada acima, só o negócio tecnológico é que importa, sendo irrelevante o processo semiológico na intermediação da inteligência e vontade alheias, o verdadeiro motivo do negócio. Dominante, esta óptica torna-se pródiga na criação e imposição de necessidades artificiais, abundantes na defesa deste edital.
A opção individual pelo software livre é fruto de uma reação natural da inteligência humana, contra o déficit de controle social na esfera virtual, déficit que permitiu ao Windows e sua proprietária desenvolverem tendências absolutistas, ameaçando a liberdade de escolha para esta intermediação. Não da escolha de softwares per se, mas de formatos e protocolos pelos quais softwares podem ser úteis e evoluir, em direção à confiabilidade. A asfixia desta escolha se reflete comprovadamente na precária e crescente insegurança da navegação na rede global, enquanto a alternativa de se investir no software livre tem comprovados ganhos indiretos em robustez, confiabilidade e TCO (Total Cost of Ownership), através do seu processo evolutivo. O movimento do software livre sinergiza o auto-controle social sobre a intermediação que o software opera, monopolizando a liberdade humana no seu comércio. Enquanto este movimento retoma mais um de seus ciclos, as conseqüências nefastas da falta de controle social sobre o comércio do software se acumulam de forma cada vez mais dramática.
Vários especialistas em segurança computacional, em vários idiomas e em várias oportunidades, têm alertado sobre este impasse, e sobre a ineficácia das medidas que têm sido preferidas para tentar resolvê-lo, tomadas a partir da ocupação deste vácuo de controle social pelos interesses do segmento absolutista da indústria de software. A saber, investimentos crescentes em tecnologia e infra-estrutura para segurança computacional, cada vez mais complexos, e leis draconianas sobre o virtual, cada vez mais cerceadoras da liberdade humana. O último passo nesta direção começa a ser discutido no Congresso americano, o Security Systems Standards and Certification Act. Complexidades e radicalismos não são, entretanto, aliados confiáveis no processo da segurança. Copiosas e acachapantes evidências de que déficits crescentes de confiabilidade no software proprietário decorrem logicamente da consolidação do monopolismo neste modelo de negócio, são analisadas nos meus artigos "A Lanterna de Diógenes", "Aspectos Legais da Segurança em Informática e E-comércio", "O Problema das Patentes de Software", entre outros, em http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/segdadtop.htm.
O investimento em tecnologia para a defesa integrada de modelos de negócio, de arquiteturas e processos virtuais indefensáveis é caro e ineficiente, um luxo que não pode ser pago por uma nação que mal consegue pagar os juros de suas dívidas. Temos um exemplo disto no próprio edital, na especificação licitatória de software antivirus para o Windows, com seus custos diretos e indiretos embutidos, porquanto esta especificação seria desnecessária numa escolha alternativa pelo Linux. Tentar compensar tal desequilíbrio com leis draconianas e desequilibradas, como o DMCA, o UCITA e o SSSCA, é insistir num caminho de complicações, instabilidades e custos crescentes, e tentar universalizá-las em busca de eficácia é um ato desesperado que só agrava as conseqüências desta persistência dogmática, em direção à profecia Orwelliana.
Se temos que optar, de uma forma ou de outra, por um monopólio em torno do software, a cuja submissão estaremos considerando um bem, seria mais sensato que investíssemos no monopólio da liberdade humana. Em autonomia para o controle do processo evolutivo da inteligência coletiva intermediada pelo software, em favor dos interesses da sociedade brasileira, sempre que opostos aos do segmento absolutista desta indústria, que abraça o fundamentalismo do mercado com fanatismo crescente. Se incluirmos o princípio da economicidade e o da soberania do Estado, ou mesmo o da sensatez, como escalas mercadológica e ideológica de medida para a escolha do monopólio a ser abraçado, a opção pelo software livre será apontada, quando e onde possível. Não só na educação pública, mas em todas as instâncias dos poderes públicos. Há, porém, quem confunda a escolha que privilegia a liberdade no processo semiológico com o controle estatal de mercados, um pecado imperdoável no fundamentalismo de mercado. Apontam, como sentença condenatória deste pecado, erros pretéritos já cometidos nesta direção.
O governo de fato errou ao calibrar, nos anos 80, a indústria do hardware com a sua soberania. Entretanto, a indústria do software é fundamentalmente diferente da de hardware, apesar do que propala em contrário a máquina publicitária absolutista, explorando ingenuidades digitais. Bits não são átomos, como gosta de lembrar o prof. Nicholas Negroponte, diretor do MediaLab do MIT. A luta ideológica entre dois tipos de liberdade -- a do homem e a do mercado --, que tem na industria do software o seu mais importante campo de batalha, é uma luta darwiniana pela sobrevivência de espécies de negócio na esfera virtual. É uma luta pra valer, que deixa economistas e investidores atônitos, por ser tanto real quanto surreal. Ela não é apenas surreal, como insinua o presidente da Anatel, e o Brasil não pode fingir que não tem nada a ver com ela. Se fingir vai errar de novo, mas desta vez por omissão, tornando-se mais uma de suas ingênuas vítimas, engessado na sua vocação de colônia.
Nesta luta, travada no epicentro da globalização, o país terá que escolher entre exercer sua soberania ou perpetuar sua subserviência na esfera virtual, que tenderá a se arraigar com decisões como a deste edital. Padrões e formatos proprietários com pretensões absolutistas não atingem seus objetivos convivendo com concorrentes livres e abertos. Sem limites para o exercício do poder econômico que canalizam, vão querer se alimentar dos padrões livres, para transformá-los em mais um braço de seu absoluto poder de produzir dependências mercantis. Exemplos deste apetite na Microsoft abundam, inclusive na sentença que a condena por práticas monopolistas, e em slogans de camisetas usadas pelos programadores da empresa (no artigo "The truth, the whole truth and nothing but the truth in the Microsoft case", revista "Wired", novembro 2000). Quem duvidar da importância desta luta pode verificar como anda o seu front no Congresso norte-americano, na data da nossa independência neste ano de 2001, em http://www.politechbot.com/p-02483.html. Já por aqui, conseqüências da estratégia mercadológica absolutista, para o projeto que pretende plugar os alunos da rede pública de ensino, serão abordadas na sessão seguinte.
Para lá chegarmos, começamos com um breve olhar sobre a trajetória do Brasil na globalização. Vemos que monopólios econômicos estatais foram quebrados, como foi a Embratel, por decisão política e com o aval da Justiça, ao final de uma guerra de liminares, na qual argumentos da lógica de mercado pela eficácia econômica venceram. Mas, quando o monopólio é uma multinacional, vemos que, ao invés, quem antes argumentava pela quebra quer agora a perpetuação, invocando a mesma lógica do mercado para justificar inexigibilidades em concorrências, como no edital da Anatel. Seria este o tipo de perversão na globalização que FHC diz querer corrigir? Ao final veremos, após examinarmos as perversidades possíveis. A Microsoft divulgou nota na capa do Correio Braziliense de 4/9/01 classificando de covarde e desesperada a atitude das empresas que discordam da pretensa lisura do edital. Trata-se da opinião de uma empresa aguardando apenação, por práticas lesivas à sociedade, condenada num dos julgamentos mais caros e dramáticos da Justiça, em toda a história da nossa civilização. O fato de sua condenação, por práticas monopolistas, não ter ainda transitado em julgado não anula sua condenação, como quer nos empulhar sua máquina publicitária, num embrulho aceito por muitos. Por outra via, sua ficha criminal mancha o viés de suas opiniões, das quais esta sobre covardia e desespero alheios será aqui examinada.
A arrogância com que a máquina publicitária da empresa se refere à Justiça do seu país de origem, arvorando-se sua juíza através da mídia, é sinal claro de suas pretensões absolutistas e do temor que inspira nos editores, que preferem não comentar o ângulo ético destas bravatas, e do convite que mesmo assim daqui recebe, para subir a rampa do Planalto e para uma licitação sem concorrências. Todos temem se opor a uma conta bancária com 30 bilhões de dólares de saldo, principalmente quem está pendurado nos bancos. A seu favor, esta máquina explora o perigoso fascínio do homem contemporâneo com o casal 20 da hora, o fundamentalismo de mercado e a tecnologia da informação, depositários de ingênuas esperanças para que se mostrem panacéias das mazelas morais do ser humano. A perplexidade coletiva diante das torres da catedral da avareza em chamas, é vivo exemplo deste fascínio. Mas a utilidade do medo tem limites, e a covardia não cabe em quem o rompe. Pelo motivo de ser a Justiça o último bastião da cidadania, quem rompe este limite sustenta a esperança de que nem este temor, nem este fascínio, venham a contagiar o espírito dos magistrados brasileiros que honram suas togas.