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Direito Internacional e política externa.

Uma análise dos discursos brasileiros nas Sessões Ordinárias da Assembleia Geral da ONU – de FHC à Lula

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Agenda 27/01/2013 às 14:48

4. Características específicas dos discursos do governo Lula

Logo no primeiro discurso, Lula trata do diálogo como força diplomática, e que nas conversações com vários líderes mundiais o multilateralismo tem sido e deveria continuar sendo a vontade de todos. Diz, ainda, que os problemas no Iraque e no Afeganistão deveriam ser resolvidas com o apoio da ONU. Ressalta as mudanças no mundo e a emergência de países em desenvolvimento. Destaca a valorização do Conselho Econômico e Social (ECOSOC), pedindo que ele colabore com o Conselho de Segurança na prevenção de conflitos e nos processos de reconstrução nacional. Além disso, Lula fala claramente sobre a manutenção das relevantes e tradicionais parcerias brasileiras na América do Norte e Europa, mas salienta a intenção de ampliar e diversificar nossa presença internacional - isso implicou na valorização da África e da América do Sul, além da aproximação com o mundo árabe. Ou seja, nossa política exterior deveria valorizar as cooperações Sul-Sul, objetivo que, no fim do governo, foi alcançado com êxito.

A respeito das cooperações Sul-Sul, é verdade que a sua busca pelos países emergentes tem sido facilitada pelo fato de compartilharem uma série de características e desafios comuns. Nos últimos anos verificou-se uma explosão da participação de Estados em desenvolvimentos (também chamados de PEDs) em organismos internacionais, apesar desses países ainda enfrentarem diversos constrangimentos nos foros de debate, decorrentes das assimetrias de poder e da distribuição desigual de benefícios (OLIVEIRA, 2007).

Importantes iniciativas desta cooperação são as ações do país no compartilhamento de conhecimentos e experiências nacionais bem sucedidas na área de políticas e tecnologias sociais, agrícolas, de saúde, educação, etc. Essas iniciativas vem despertando, sobretudo, o interesse de países em desenvolvimento (muitos deles na África), que enfrentam problemas similares, mas também de organismos internacionais, que buscam aumentar a eficácia de seus projetos de ajuda ao desenvolvimento por meio da cooperação triangular com o Brasil. Para se ter uma ideia, o volume de recursos que destinamos à cooperação internacional Sul-Sul quase dobrou em cinco anos, passando de R$384 milhões, em 2005, para R$724 milhões, em 2009 (IPEA, 2010). No Brasil, a agência que regula esse tipo de cooperação é a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), que integra o Ministério de Relações Exteriores. Necessário ressaltar que esta cooperação abarca apenas investimentos 100% a fundo perdido, feitos em governos de outros países, em estrangeiros residentes no Brasil ou em organizações internacionais.

Retomando a análise do discurso inicial do governo Lula na Abertura da AGNU, apareceu na fala do ex-presidente o orgulho do Brasil em ter a segunda população negra do mundo - atrás apenas da Nigéria. Fala, ainda das visitas que faria aos países da África Austral: “Somos, com muito orgulho, o país com a segunda maior população negra do mundo. Em novembro, deverei visitar cinco países da África Austral, para dinamizar nossa cooperação econômica, política, social e cultural” (LULA, 2007, p. 706). Isso implicaria numa série de ações do Brasil rumo à África durando o período Lula, envolvendo a abertura de embaixadas naquele continente e a abertura de embaixadas de países africanos no Brasil[9], além da considerável expansão comercial[10] e da multiplicação de negociações políticas.

Fala, ainda, do acordo trilateral IBSA (acordos econômicos, políticos e culturais) e aproximação com a Liga Árabe; do G-20 formado para o encontro da OMC em Cancún (2003), e na luta por abertura de mercados.

Como se vê, é um discurso bastante diversificado, cujo objetivo era apresentar as pretensões brasileiras no novo governo. Nesse sentido, não poderia faltar a fala da chamada Guerra contra a Fome e a miséria no Brasil e no mundo:

“Nada é tão absurdo e inaceitável quanto à persistência da fome em pleno século XXI, a idade de ouro da ciência e da tecnologia. A cada dia a inteligência humana amplia o horizonte do possível, realizando prodigiosas invenções. E, no entanto, a fome continua e, o que é mais grave, se alastra em várias regiões do planeta. Quanto mais a humanidade parece aproximar-se de Deus pela capacidade de criar, mais o renega pela incapacidade de respeitar e proteger suas criaturas” (LULA, 2007, p. 707).

Já em 2004, mas ainda na mesma temática, Lula diz: “Na África, 200 milhões de seres humanos estão enredados num cotidiano de fome, doença e desamparo, ao qual o mundo se acostuma, anestesiado pela rotina do sofrimento alheio e longínquo” (LULA, 2007, p. 716). Em relação a questão da pobreza via comércio, o discurso é de defesa da Rodada de Doha para livrar da pobreza mais de 500 milhões de pessoas. Contudo a rodada fracassaria em 2008, em Genebra. Também aborda-se a temática econômica, dizendo que seu governo recuperou a estabilidade e criou condições para um novo crescimento sustentado; defende que o Brasil estava trabalhando para manter o vigor das contas públicas e reduzir a vulnerabilidade externa. Mas, na verdade, o que vemos, é a permanência do modelo econômico - exitoso, diga-se de passagem - do governo FHC.

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Assim como Fernando Henrique havia salientado em seus discursos, Lula volta a falar do tema HIV-AIDS, pregando sua luta tanto no plano doméstico como em outros países. Neste discurso de 2004 também reitera o fato de o Brasil ter atendido à convocação da ONU para contribuir na estabilização do Haiti – de modo que está lá até hoje.

Acerca do plano regional, fala da Comunidade Sul-Americana de Nações, iniciativa para o que se tornaria a UNASUL, tratado assinado em 2008 – dizendo refletir o sonho da integração física, econômica, comercial, social e cultural.

Em 2005, no discurso delegado ao Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, fala-se pela primeira vez sobre as ameaças derivadas das mudanças climáticas, de maneira que nos discursos seguintes o tema sempre retornaria. Volta-se a tratar da expansão do comércio e da cooperação entre o Brasil e a África, tanto no que se refere à ajuda na consolidação da paz e da democracia em países como Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, como no que tange ao combate à fome e a luta contra a AIDS.

Quanto aos anos seguintes, em 2006, o então Presidente Lula destaca que a diplomacia brasileira esteve no Oriente Médio, havendo o Brasil promovido a retirada de milhares de refugiados do teatro de operações e buscado, via o Ministro Celso Amorim, estimular soluções negociadas para a crise na região. Destaca, ainda, a seguida presença brasileira no Haiti. No plano multilateral, ressalta o fato de o Brasil ter promovido a  primeira cúpula de Fórum de Diálogo IBAS (Índia, Brasil, África do Sul). Em propaganda do governo, o Presidente disse que o Brasil entrou no rumo de aliar crescimento e estabilidade econômica a políticas de inclusão social, apontando que destinar recursos para a área social não seria um gasto, mas um investimento.

Salienta a contribuição do Brasil para a superação da pobreza e das desigualdades, principalmente pelo viés das discussões promovidas a respeito da necessidade de maior equilíbrio e justiça no comércio internacional. Fato importante aqui é que o governo Lula conseguiu reduzir pobreza no Brasil, mas a redução da desigualdade interna foi apenas razoável diante de seu enorme tamanho histórico, de modo que ainda hoje somos uns dos países mais desiguais do planeta. Reitera, por fim, a prioridade brasileira pela América do Sul e pela África.

Em 2007, Lula chama a atenção para os problemas climáticos do planeta, alegando que se o modelo de desenvolvimento global não for repensado, cresceriam os riscos de uma catástrofe ambiental e humana. Uma das formas de se fazer isso seria que todos os países aplicassem o Tratado de Kyoto. Defendendo o Brasil, pronuncia que o país tem feito esforços notáveis para diminuir os efeitos da mudança do clima, e cita como exemplo a redução, à época, do desmatamento da Amazônia. E faz propaganda do etanol, como energia limpa, e critica aqueles que dizem que ela prejudica a produção de alimentos.

Em 2008, ano do epicentro da crise internacional, o discurso de Lula traz a defesa do Estado intervencionista em contrariedade aos fundamentos do mercado puramente.

“Somente a ação determinada dos governantes, em especial naqueles países que estão no centro da crise, será capaz de combater a desordem que se instalou nas finanças internacionais, com efeitos perversos na vida cotidiana de milhões de pessoas. A ausência de regras favorece os aventureiros e oportunistas, em prejuízo das verdadeiras empresas e dos trabalhadores. É inadmissível, dizia o grande economista brasileiro Celso Furtado, que os lucros dos especuladores sejam sempre privatizados e suas perdas, invariavelmente socializadas.  O ônus da cobiça desenfreada de alguns não pode recair impunemente sobre os ombros de todos. A economia é séria demais para ficar nas mãos dos especuladores. A ética deve valer também na economia. Uma crise de tais proporções não será superada com medidas paliativas. São necessários mecanismos de prevenção e controle, e total transparência das atividades financeiras”. (LULA, 2008, p. 01).

Ainda em 2008, defende a UNASUL, que havia sido criada oficialmente em maio daquele ano. A perspectiva, no entanto, de que esta organização articularia os países da região em termos de infra-estrutura, energia, políticas sociais, complementaridade produtiva, finanças e defesa ainda não avançou muito. Por fim, o então Presidente aproveitou o discurso para fazer uma propaganda do seu governo, apontando que o Brasil havia criado quase 10 milhões de empregos formais, distribuído renda e riqueza, melhorado os serviços públicos, tirado 9 milhões de pessoas da miséria e outras 20 milhões tinham ascendido à classe média. E defendeu que tudo isso havia sido feito num ambiente de forte crescimento, estabilidade econômica, redução da vulnerabilidade externa e fortalecimento da democracia, com participação popular.

Já em 2009 Lula volta a criticar o mercado auto-regulável por conta de ter gerado a crise internacional, e critica o fato de os efeitos da crise se espalharam por todo o mundo, atingindo sobretudo os países que há anos vinham reconstruindo suas economias, de maneira que não seria justo que o custo da aventura especulativa fosse assumido por trabalhadores e nações pobres ou em desenvolvimento. Defende, ainda as medidas tomadas pelo Brasil, alegando que o país foi um dos primeiros a sair da crise. Sobre isso argumentou:

“Não fizemos nenhuma mágica. Simplesmente havíamos preservado nosso sistema financeiro do vírus da especulação. Havíamos reduzido nossa vulnerabilidade externa, passando da condição de devedores à de credores internacionais. Decidimos, junto com outros países, aportar recursos para que o FMI empreste dinheiro aos países mais pobres sem os condicionamentos inaceitáveis do passado. Mas, sobretudo, desenvolvemos antes da crise, e depois que ela eclodiu, políticas anticíclicas. Aprofundamos nossos programas sociais, especialmente os de transferência de renda. Aumentamos os salários acima da inflação. Estimulamos, por meio de medidas fiscais, o consumo para impedir que se detivesse a roda da economia” (LULA, 2009, p. 01).

No último discurso do seu governo, Lula voltou a indicar a função ao seu ministro dos dois mandatos, Celso Amorim. O rumo do discurso seguiu a defesa do que foi feito ao longo do período que chegara ao fim, salientando-se que políticas públicas firmes e transparentes reduziram as desigualdades de renda, de acesso e de oportunidades, de maneira que milhões de brasileiros teriam conquistado dignidade e cidadania. Segundo Amorim, o mercado interno foi fortalecido, o que preservou o país dos piores efeitos da crise internacional.

Mais uma vez defendendo a cooperação Sul-Sul levada à frente no período Lula, diz:

“O Fundo de Alívio à Pobreza do IBAS, foro que congrega Índia, Brasil e África do Sul, financia projetos no Haiti, Guiné Bissau, Cabo Verde, Palestina, Camboja, Burundi, Laos e Serra Leoa. O Brasil aumentou substancialmente sua ajuda humanitária e multiplicou os projetos de cooperação com países mais pobres. A África ocupa um lugar muito especial na diplomacia brasileira. Desde a sua posse, o Presidente Lula foi à África onze vezes. Visitou mais de duas dezenas de países. Implantamos um escritório de pesquisas agrícolas em Gana; uma fazenda-modelo de algodão no Mali; uma fábrica de medicamentos anti-retrovirais em Moçambique; e centros de formação profissional em cinco países africanos. Com comércio e investimento, estamos ajudando o continente africano a desenvolver sua enorme potencialidade e a diminuir sua dependência de uns poucos centros de poder político e econômico” (AMORIM, 2010, p. 01).

Também fala do apoio brasileiro ao Haiti, que na época enfrentava os efeitos imediatos do terremoto que afligiu dramaticamente o país, colocando o Brasil a continuar ajudando àquele país.

Por fim, Celso Amorim destaca o tipo de diplomacia desenvolvida pelo governo Lula, a qual ele chama de “diplomacia independente”, e defende que seria sem subserviências e respeitosa de seus vizinhos e parceiros, uma diplomacia inovadora mas que não se afastou dos valores brasileiros fundamentais - a paz, o pluralismo, a tolerância e a solidariedade. Salienta que, assim como o Brasil e o mundo mudou, faz-se preciso aprofundar e acelerar essas mudanças, de modo que com os avanços tecnológicos e a riqueza acumulada não haja mais lugar para a fome, a pobreza e epidemias que podem ser evitadas. E ressalta que não podemos mais conviver com a discriminação, a injustiça e o autoritarismo, devendo todo o mundo enfrentar os desafios do desarmamento nuclear, do desenvolvimento sustentável e de um comércio mais livre e mais justo.


5. Diferenças e similitudes entre os discursos dos dois governos

Vê-se que o governo FHC já enunciava a defesa de um mundo multilateral, expressando a lógica pós-Guerra Fria e se preocupando em inserir o Brasil nesse cenário:

“O surgimento de novas potências e de um número de países em desenvolvimento com projeção global alterou significativamente a dinâmica da política mundial. Esses atores chegaram ao primeiro plano do cenário internacional e devem estar presentes no núcleo de membros permanentes, de modo que a composição do Conselho se torne mais equilibrada e reflita melhor a diversidade de visões de mundo” (LAMPREIA, 2007, p. 603).

O governo FHC também já criticava, em 1995, a especulação financeira e a volatilidade dos fluxos internacionais de capitais, que ameaçavam os mercados em escala global. Essa posição, assim como a defesa pelo multilateralismo, se manteria e até mesmo ganharia mais expressão com Lula. Essa maior expressão aparece quando o presidente petista defendia que o Estado não poderia deixar a economia de lado como se ela se auto-organizasse, principalmente no momento de crise.

O governo FHC também já falava em pobreza e violência no mundo como problemas a serem enfrentados, mas não com a intensidade com que aparece nos discursos de Lula, que vai dar mais destaque a estas temáticas. Por outro lado, Lampreia falava em 1996 que os eixos Norte-Sul e Leste-Oeste, predominantes nos últimos 50 anos, estavam dando lugar a agrupamentos de países unidos em torno do objetivo da integração econômica e da concertação de políticas macro-econômicas, financeiras e comerciais – valorizando, portanto, o multilateralismo. Lula, sequencialmente, valorizaria o multilateralismo, mas daria um novo enfoque à posição brasileira, defendendo especialmente as cooperações Sul-Sul.

Lampreia, no discurso de 1999, enunciava a frustração acerca da distância entre “discurso” e “realidade”: “À medida que passa o tempo, no entanto, e que aumentam as exigências de nossas sociedades, vemos ampliar-se a percepção de que entre as palavras e as ações existe uma permanente distância, que alimenta o ceticismo e o pessimismo dos outros” (LAMPREIA, 2007, p. 654); Lula falava da mesma forma, em 2003, ao defender: “é preciso praticar o que pregamos” (LULA, 2007, p. 709). A diferença é que vimos, na prática, mais ações do governo Lula em torno de ações contra os problemas domésticos – e até internacionais - do que o governo FHC, o que, no entanto, poderia ser justificado pelos defensores do governo do PSDB por conta dos benefícios e empecilhos que cada contexto ensejou às administrações.

Em 2002, com Celso Lafer a frente do Ministério das Relações Exteriores da gestão de  FHC, o discurso deste Ministro trata de vários objetivos da política externa brasileira do momento, objetivos que também aparecerão nos discursos de Lula. Tratam-se de aspectos como democratizar as instâncias decisórias, superar o déficit de governança existente no plano internacional; estabelecer uma nova arquitetura financeira e dar resposta eficaz à volatilidade dos fluxos de capital; defender um sistema multilateral de comércio que seja justo e equilibrado; corrigir as distorções que surgem de uma economia que se globaliza, ao lado de processos políticos e institucionais que não se globalizam; afirmar os valores dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentável.

Sobre o autor
Walace Ferreira

Professor de Sociologia da UERJ. Pesquisador. Doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Walace. Direito Internacional e política externa.: Uma análise dos discursos brasileiros nas Sessões Ordinárias da Assembleia Geral da ONU – de FHC à Lula. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3497, 27 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23553. Acesso em: 20 dez. 2024.

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