A conferência mundial sobre segregação racial que realizar-se-á na África do Sul nos próximos dias reacende a discussão sobre o tema em todo o mundo. Entre nós, muito se comenta e se debate a respeito de uma proposta que tem por objetivo criar uma reserva de vagas nas instituições de ensino superior públicas destinadas exclusivamente a cidadãos da raça negra.
Toda e qualquer proposta no sentido de restringir as desigualdades sociais são sempre elogiáveis. No entanto, creio que a iniciativa parte de premissas equivocadas e certamente terá consequências indesejadas, caso venha a ser realmente implementada.
Inicialmente, é necessário salientar que iniciativa neste sentido faria letra morta do artigo quinto da Carta Magna que preconiza a igualdade de direitos entre os cidadãos. O texto constitucional é taxativo ao afirmar que "...todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...".
É fato que o princípio constitucional não traduz a realidade que vivemos. A população negra encontra-se, em muitas circunstâncias, privada de oportunidades e prerrogativas, o que é de todo lamentável. Mas tal fato é consequência de fatores históricos e sociais, do preconceito velado, e não de uma efetiva distinção entre a raças. Pensar de modo diverso equivaleria a admitir-se a superioridade de uma raça sobre outra.
Os defensores da idéia afirmam que o precedente para a aplicação do modelo encontra-se na Lei Federal 8.213, que estaria a excepcionar o princípio da igualdade de direitos entre os cidadãos, instituído pela Carta Magna, ao impor às empresas que possuam mais de 100 empregados a obrigação de manterem em seus quadros deficientes físicos. A meu ver, tal proposição está dissociada da lógica.
Seria por demais absurdo, chegando mesmo ao despropósito de inferiorizar-se uma raça, colocá-la em situação de igualdade com pessoas portadoras de deficiências físicas. A limitação dos cidadãos portadores de deficiência faz-se em razão de fatores biológicos que redundam na dificuldade de locomoção, de expressão e de adequação e interação ao ambiente de trabalho, em suma, de fatores físicos.
A lei, sabiamente, serviu como meio para demonstrar que deficiência não equivale inaptidão ao trabalho. Aliás, a experiência como advogado trabalhista oportuniza-me observar que portadores de deficiência apresentam rendimento superior ao demais empregados, tanto do ponto de vista qualitativo quanto do ponto de vista quantitativo, sejam eles brancos ou negros, quando exercem funções compatíveis com a sua deficiência.
Como se vê, o exemplo não se presta como parâmetro ao modelo que se pretende instituir. Equivaler as duas situações seria subestimar a capacidade da raça negra.
Outro equívoco da proposição assenta-se sobre o fato da mesma ter sua inspiração em um modelo estrangeiro, implantado nos Estados Unidos da América. Há muito já se demonstrou que nem tudo que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil. A estrutura do sistema educacional americano é extremamente diversa do modelo brasileiro. Lá, aquilo que aqui se nomina de ensino médio e fundamental, é garantia efetiva a todos os cidadãos. O ingresso de negros ou brancos em instituições de ensino superior se deve, quase sempre, a fatores econômicos, e não sociais.
A diferença elementar entre o sistema ensino americano e o brasileiro é que, na maioria dos casos, brancos e negros têm as mesmas oportunidades do ponto de vista de qualidade de ensino. Entrar ou não, na faculdade depende, muito mais, da possibilidade de custeá-la.
No Brasil, em razão de fatores históricos e sociais, a maioria da população negra se submete ao ensino público, enquanto a população branca tem uma maior possibilidade de acesso ao ensino particular que, por razões óbvias, oferece maiores condições de acesso às instituições de ensino superior público, gerando uma situação inversa: quem pode pagar por um bom ensino fundamental alcança as vagas das universidades públicas e gratuitas, enquanto que os que precisam se sujeitar às escolas públicas, mesmo que logrem êxito em alcançar uma vaga em instituições particulares, certamente não terão como custeá-las. A divergência entre os sistemas é gritante, restando claro que o modelo americano não pode ser usado como parâmetro.
Não há como negar que a origem do problema encontra-se, predominantemente, na má distribuição da renda, entre outros fatores de ordem social, que não será minimizado pela medida proposta.
Neste compasso, o modelo implantado no Estado do Rio de Janeiro onde metade das vagas das instituições de ensino superior públicas são reservadas a alunos egressos de escolas públicas, aparenta ser menos demagógico.
A premissa aqui utilizada parece ser mais sensata, em primeiro lugar, por não fazer distinção entre raças, o que será sempre fato gerador de preconceitos e de mais segregação. Do mesmo modo, busca equalizar a situação de desigualdade gerada pelo deficiente padrão do ensino público, utilizado, pela população de baixa renda.
Ainda que o princípio da igualdade entre os cidadãos instituído pela Carta Magna não seja uma realidade prática, não vejo como adotar uma política que dele se distancie, como a pretendida, sob pena de jamais se alcançá-la de fato.
O certo é que a efetiva igualdade entre os cidadãos não advirá de medidas paliativas, mas sim de mudanças sociais profundas que, ainda que necessitem de um longo prazo para a sua implementação, sejam revertidas de solidez inabalável e representem o ideal do estado democrático de direito, que provê aos cidadãos as mesmas oportunidades.
Enfim, propiciar o acesso da população negra às instituições de ensino superior mediante o modelo proposto é combater as consequências de um problema e não as suas causas, fazendo com que ele permaneça latente. Além disso, a medida iria subtrair de seus destinatários o mérito pelas suas próprias conquistas criando, ao mesmo passo, uma situação ilusória que serviria de máscara à realidade social.