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O Direito ante os povos e comunidades tradicionais: uma visão antropológica da Constituição Federal Brasileira

É simbólica a composição da comissão responsável pela execução da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais: seringueiros, fundos de pasto, quilombolas, faxinais, pescadores, ciganos, pomeranos, índios e caiçaras, quebradeiras de babaçu etc.

A Constituição de 1988 veio a encerrar as discussões quanto à natureza multicultural e pluriétnica do Estado brasileiro. O Direito não mais pode afastar a existência daqueles grupos portadores de identidades próprias, integrantes natos da comunidade nacional. Ademais, o país aderiu à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, e recentemente à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Em suma, reforçou-se o ordenamento jurídico interno para proteger aqueles que são considerados, em termos constitucionais, como patrimônio imaterial da cultura brasileira. 

A ideia de que numa mesma comunidade nacional estão imiscuídas diversas culturas fez caber ao direito assegurar-lhes o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas entidades, línguas e religiões dentro do âmbito dos Estados onde moram2. Destarte, a proteção da diversidade cultural se torna, para os Estados, um imperativo ético, indistinguível do respeito à dignidade da pessoa humana. Atualmente, o direito, que por um ângulo abandona a visão atomista dos indivíduos e os reconhece como dotados de identidades diferenciadas e abrangentes, por outro recupera o espaço comum em que são vividas as relações essenciais dos homens.  

A Constituição de 1988 diz não apenas de interesses coletivos, mas também de espaços de pertencimento, em territórios, embora estes em muito se diferenciem do conceito de propriedade privada. Esta, de cunho individual, com o viés da apropriação econômica. Aqueles, como locus étnico e cultural. O artigo 216 do texto constitucional, ainda que de maneira implícita, delineia-os como espaços onde os diversos grupos formadores da sociedade nacional têm modos particulares de expressão e de criar, fazer e viver (incisos I e II).

Paralelamente, a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural faz constar, em seu preâmbulo, que:

(…)a cultura deve ser considerada como o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças; a cultura se encontra no centro dos debates contemporâneos sobre a identidade, a coesão social e o desenvolvimento de uma cultura fundada no saber.

Nesse contexto, a CF/1988 preceitua expressamente direitos particulares a índios e quilombolas, e também a seus territórios. No entanto, estende-se a além deles. Igualmente são receptores de direitos específicos as demais comunidades humanas que possuam formas próprias de expressão e de viver, criar e fazer.

Baseado em tais entendimentos, vem o Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, estabelecer a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável  dos Povos e Comunidades Tradicionais. Interessante notar o quão simbólica é a composição da Comissão Nacional responsável pela execução desta política: seringueiros, fundos de pasto, quilombolas, faxinais, pescadores, ciganos, pomeranos, índios e caiçaras, quebradeiras de babaçu etc. Porém, anteriormente a esse decreto, a Convenção 169 da OIT já apresentava um conjunto de direitos destinados a todos os grupos cujas condições sociais, econômicas e culturais os distinguissem de outros setores da coletividade nacional.

E, diante da nova realidade legal, emergem alguns problemas. O primeiro corresponde à aplicação do direito infraconstitucional a tais indivíduos e seus grupos. Falso seria afirmar que o ordenamento anterior à Constituição de 1988 os englobou. Pelo contrário, nem mesmo os consideravam sujeitos perante a lei. Contudo, por evoluções no plano jurídico internacional, o Brasil incorporou tratados que asseverassem o mesmo gozo de direitos que a legislação nacional existente destinava à maioria da população.

Nas palavras de Deborah Duprat:

 (...) aplicar esse direito sem levar em conta as suas especificidades, seria perpetuar o quadro de exclusão e lançar por terra as conquistas constitucionais. De outro giro, colocá-los à margem do direito à espera da elaboração de leis que os contemplem especificadamente é um desatino.

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E por estarem fortemente ligados os direitos culturais e étnicos à esfera dos direitos fundamentais, revestir-se-ão de uma natureza autoexecutória, isto é, seus dispositivos deverão gozar de imediata aplicabilidade, atendendo à vontade do legislador constituinte quanto à garantia da dignidade dos cidadãos brasileiros, universalmente tratados como pessoas humanas, vedadas quaisquer discriminações.

Necessário se faz considerar, primeiro, que todo esse aparelho jurídico vigente possa e deva mobilizar-se para garantir o gozo pleno e imediato dos supramencionados direitos. Em segundo lugar, escolher o instrumento mais eficaz e adaptá-lo às especificidades desses direitos.

O segundo grande problema está na aplicação do direito pré-existente. As universidades agregaram ao nosso patrimônio jurídico os critérios interpretativos de Savigny, sendo gramatical, lógico, sistemático e o histórico. Mas, sobretudo pelo pluralismo sugerido pela Constituição, faz-se essencial estabelecer com a lei uma relação que não seja de mera interpretação, livrando-nos do etnocentrismo do interpretador-julgador que põe a norma sob o ângulo que mais lhe apetece. 

A antropologia nos fornece um dado a se pensar, qual seja, as ações possessórias tão comumente movidas contra índios e quilombolas. É preciso que o avaliador raciocine quanto ao ponto-chave do embate que é a diferente concepção de posse entre as partes contrapostas. Ocorre uma espécie de conflito entre escritura legitimadora de posse e relação histórico-social para com a terra.

Tal visão apresentada, emblemática de todas as outras de natureza semelhante, não pode ser ignorada, a título de não se afrontar a Constituição e os tantos pactos internacionais que a acompanham, não negando as concepções de verdade do outro em nome das nossas próprias.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Vade Mecum. 12. ed. Editora Saraiva: São Paulo, 2011.

DUPRAT, Deborah. Pareceres jurídicos – Direitos dos povos e das comunidades tradicionais. 5. ed. Editora Saraiva: Manaus, 2007.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

Sobre os autores
Diógenes de Paula e Monteiro

Acadêmico do curso de Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), em Minas Gerais.

Kênnia Suelen da Silva

Acadêmica do curso de Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), em Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTEIRO, Diógenes Paula; SILVA, Kênnia Suelen. O Direito ante os povos e comunidades tradicionais: uma visão antropológica da Constituição Federal Brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3513, 12 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23667. Acesso em: 23 dez. 2024.

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