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A face processual do devido processo legal

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Agenda 14/03/2013 às 08:15

CAPÍTULO III - DA FACE PROCESSUAL DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

Embora esteja expressamente garantido na Constituição Federal de 1988, o devido processo legal não foi ali definido. De fato, é a letra do artigo 5º., LIV:

“art. 5º. – (...)

LIV – Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Como se percebe, o devido processo legal é o único meio constitucionalmente possível para que se prive a pessoa (física ou jurídica, pois o conceito de personalidade aplicável é aquele dado pelo ordenamento jurídico) de seus bens.

Assinale-se o defeito de redação consolidado pelo constituinte: ao divisar “liberdade” e “bens”, o dispositivo parece considerá-los coisas totalmente distintas. Se é verdadeiro que os significados não são coincidentes, também não se pode negar que a “liberdade” é um “bem”. Há sim relação entre os vocábulos, no sentido gênero-espécie. Não bastasse tal incorreção, ela possibilita que o mau intérprete cometa outro erro: compreender que o texto constitucional se refere unicamente à liberdade e aos bens patrimoniais. Diferentemente, a melhor exegese é que se tratam de todos os bens juridicamente tutelados.

Superada esta primeira discussão, ainda resta outra: a definição do devido processo legal na ordem jurídica brasileira.

A dicção constitucional indica que ele é um ente eminentemente instrumental, meio legítimo para o esbulho de bens jurídicos.

Com esta idéia em mente é que se encontra a maior gama de definições, doutrinas e delimitações.

Cretella Júnior assinala:

“DEVIDO PROCESSO LEGAL é aquele em que todas as formalidades são observadas, em que a autoridade competente ouve o réu e lhe permite a ampla defesa, incluindo-e  contraditório e a produção de todo tipo de prova – desde que obtida por meio lícito –, prova que entenda seu advogado dever produzir, em juízo. Sem processo e sem sentença, ou prolatada esta pó magistrado incompetente, ninguém será privado da liberdade ou de seus bens”[11] (grifos originais).

Pinto Ferreira confunde o direito ao devido processo legal com o próprio devido processo legal. De fato, manifesta que:

“O devido processo legal significa o direito a regular curso de administração da justiça pelos juízes e tribunais. A cláusula constitucional do devido processo legal abrange, de forma compreensiva: a) o direito à citação (...); b) o direito de arrolamento de testemunhas (...); c) o direito ao procedimento contraditório; d) o direito de não ser processado por leis ex post facto; e) o direito de igualdade com a acusação; f) o direito de ser julgado mediante provas e evidência legal e legitimamente obtida (sic); g) o direito ao juiz natural; h) o privilégio contra a auto-incriminação; i) a indeclinabilidade da prestação jurisdicional quando solicitada; j) o direito aos recursos; l) o direito à decisão com eficácia de coisa julgada”[12]. (grifos originais)

Já Maria Helena Diniz extrema os dois entes:

“DEVIDO PROCESSO LEGAL. Direito constitucional. Princípio constitucional que assegura ao indivíduo o direito de ser processado nos termos legais, garantindo o contraditório, a ampla defesa e um julgamento imparcial”[13] (grifos originais).

Com efeito, a identificação do devido processo legal pelas suas implicações no processo (penal ou civil) é tamanha que Nelson Nery Júnior chega a afirmar que a sua consagração explícita pela Constituição Federal tornaria despicienda “qualquer outra dogmatização principiológica” [14].

Nas linhas seguintes serão analisadas algumas das principais luzes doutrinárias lançadas sobre os princípios que identificam o devido processo legal como garantia processual.

III.I. Princípio da Isonomia

Por este postulado se indica que as partes devem receber igual tratamento por parte do órgão judicante e de seus auxiliares.

O comando constitucional ressoa já no artigo 125, I do Código de Processo Civil (CPC). Note-se que o Codex é cronologicamente anterior à Carta Magna, tendo surgido num contexto jurídico cujas bases sociológicas eram totalmente distintas.

Assim, deve-se perscrutar a evolução semântica do artigo 125, I do CPC ao longo das duas ordens constitucionais em que vigorou.

Antes da Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro ainda era um Estado de Direito,  simplesmente. Falecia ao ordenamento jurídico a atenção ao Princípio Democrático e, em face da ditadura implantada, a máquina estatal se agigantava. Nesse quadro, as formas jurídicas eram – várias vezes – vestes de legalidade a procedimentos arbitrários. Conseqüentemente, a isonomia em que se expressava o comando do artigo 125, I do CPC era meramente formal: tratar-se as partes igualmente, não levando em consideração eventual inferioridade de recursos materiais (sobretudo, financeiros) entre elas.

Atualmente, o Princípio do Estado Democrático de Direito matiza a isonomia diferentemente. Não se fala mais no critério formal, mas material. Segundo Nelson Nery Júnior o postulado é assim traduzido:

“Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”[15].

Tal argumento é de grande relevo e aplicabilidade prática, sobretudo quando se analisam os benefícios de que goza a Fazenda Pública. Embora se insurjam diversos juristas contra a constitucionalidade de referidos dispositivos, mais numerosas vozes a defendem. O argumento que lhes dá razão é a relevância do interesse em juízo: o interesse público.

III.II. Princípio do Juiz Natural e do Promotor Natural

Embora o Princípio do Juiz Natural seja mais lembrado em associação à seara penal é de se reconhecer sua exigência implícita no Estado Democrático de Direito. Dessa forma, é garantia do processo, seja ele judicial ou administrativo, cível ou penal.

O mesmo não ocorre com o Princípio do Promotor Natural. Este, de fato encontra eco na atuação do parquet no processo penal.

A Constituição Federal estabelece no artigo 5º., LIII, assim vazado:

“art. 5º. – (...)

LIII – Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.

A garantia expressa na Constituição Federal visa assegurar ao cidadão o julgamento por autoridade regularmente investida (seja o juízo monocrático ou colegiado) e que detenha competência jurisdicional para tanto. Esta competência, ademais, deve-lhe estar cometida por norma processual (anterior ou posterior) que seja abstrata e objetivamente enunciada. Não é outro o comando do artigo 5º., XXXVII:

“Art. 5º. – (...)

XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção”.

A proibição de se instalarem órgãos judicantes para a apreciação de apenas um, ou alguns casos em concreto, encontra respaldo no mesmo dispositivo supramencionado. Há consonância entre eles, de tal sorte que expressam quase a mesma norma: a lei processual, a par da lei material, não pode ser dirigida a apenas um fato ou cidadão.

Mencionou-se, linhas acima, que a garantia processual é inafastável do matiz constitucional do Estado Democrático de Direito. De fato, este conceito expressa que a organização política se assenta sobre a edição de normas jurídicas, descritas de forma abstrata, cuja legitimidade é fundada no mandato outorgado pelos cidadãos aos seus criadores. Nada mais consentâneo que o órgão incumbido da jurisdição também se sujeite ao raciocínio. Lembre-se que o órgão, nas modernas teorias administrativistas, encontra elemento identificador nas atividades compreendidas pela esfera de competências que lhe é peculiar. Em abono da conclusão vem o ensinamento de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

“Órgão público é uma unidade que congrega atribuições exercidas pelos agentes públicos que o integram com o objetivo de expressar a vontade do Estado (...), feixes de poderes funcionais (...) exercidos pelos agentes providos...”[16].

Assim, o juiz natural é aquele competente para todos os casos em que se encontrarem os requisitos eleitos pelo legislador como balizadores. Estes elementos podem ser livremente escolhidos, desde que não restrinjam a competência a apenas alguns casos concretamente identificáveis.

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Em complemento aos postulados acima, verifica-se a garantia de que também o órgão processante esteja investido de competência para tanto. Com tal assertiva, preservam-se duas situações jurídicas.

Primeiramente, observa-se a distinção entre órgão processante e órgão judiciante. Infere-se que este não pode tomar a posição de parte processual, garantindo-se o Princípio da Inércia do Juiz. Em regra, o órgão judiciário só pode agir se (e na forma que) for provocado.

Em acréscimo, o mandamento constitucional preserva a legitimidade das partes. Assim, a teor da Carta, apenas aquele a quem a lei confere legitimidade ad causam pode litigar em juízo. Há uma preservação da vontade da parte para movimentar a máquina estatal – é inconstitucional que alguém que o ordenamento jurídico não reconhece como interessado postule em juízo.

Esta garantia não se aplica apenas ao processo penal, a despeito do que se costuma afirmar.

A esmagadora maioria dos doutrinadores, ao analisarem a questão acima, confinam a discussão ao processo penal, afirmando que a Carta Política sufragou o Princípio do Promotor Natural. Assim encontramos Nelson Nery Júnior, que estabelece, depois de analisar a evolução histórica da proibição da arbitrária designação de promotores pelos procuradores-gerais de justiça:

“A grande novidade da constituição federal (sic) no que toca ao princípio aqui analisado é a regra do promotor natural. O art. 129, n. I, da CF (sic) confere ao Ministério Público a titularidade exclusiva da ação penal pública. Logo, estão suprimidos os procedimentos criminais ex officio que existiam no sistema anterior, onde (sic) o juiz e o delegado de polícia podiam iniciar ação penal mediante portaria.

Em face disso, extrai-se da locução ´processar`, que vem no art. 5º., n. LIII, da CF (sic), o sentido de que é a atribuição que se confere ao Ministério Público para mover ação judicial, pois somente ele pode ´processar` alguém: não mais o juiz, a quem se aplica o vocábulo ´sentenciar` constante da mesma norma processual em exame”[17].

Data maxima venia, não se afigura escorreito o entendimento do douto Procurador de Justiça paulista. É fato que a doutrina e os próprios órgãos do Ministério Público se insurgiam contra designações puras e simples decorrentes de atos dos procuradores-gerais de justiça. E com razão, pois tal expediente feria a independência funcional tanto do promotor designado, quanto daquele por ele substituído. Também é verdadeiro que a Constituição Federal colocou o Ministério Público como legitimado da ação penal pública, abolindo os procedimentos judicialiformes – como eram (quase jocosamente) chamados aqueles que se iniciavam por iniciativa do delegado de polícia ou do juiz.

Entretanto, o mandamento constitucional em comento é mais abrangente. Conforme mencionado, a Carta Constitucional, a um só tempo, preservou a inércia do órgão judicante e a dispositividade das ações judiciais. O chamado Princípio do Promotor Natural não é senão uma fórmula que condensa as garantias constitucionais de que somente a parte legítima pode manejar a ação judicial, e de que o titular da ação penal pública é o Ministério Público.

Dizer que  artigo 5º, LIII (parte inicial) se aplica apenas ao promotor de justiça, e somente no processo penal, é restringir garantia constitucional de eficácia plena e aplicabilidade imediata.

Assim, a Princípio do Promotor Natural tem conteúdo correto, aplica-se essencialmente à atuação do parquet no processo penal, mas não encerra todo o sentido teleológico da garantia de ser processado por autoridade competente.

III.III. Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional

Outro princípio lembrado quando se trata do devido processo legal é a Inafastabilidade do Controle Jurisdicional. Também é ligado ao conceito de Estado Democrático de Direito, no sentido de que as instituições regularmente constituídas – órgãos judiciários – têm o poder-dever de apreciar toda e qualquer questão que o jurisdicionado venha-lhe suscitar. O motivo de tal obrigação é a estatização do Direito referida linhas acima: se o Estado reserva para si o monopólio da utilização legítima da força (coerção que é exercida nos limites legais) não pode se eximir da obrigação de responder à provocação da parte interessada. Obviamente, o exercício do poder implica em responsabilidade.

Os processualistas traduzem este postulado no termo direito de ação, extremando-o do direito de petição. A este reconhecem o caráter eminentemente político, dispensando o interesse processual:

“... não é preciso que o peticionário tenha sofrido gravame pessoal ou lesão em seu direito, porque se caracteriza como direito de participação política, onde está presente o interesse geral no cumprimento da ordem jurídica”[18] (grifos originais).

Outra questão importante quanto ao acesso à justiça é a temática das custas judiciais. Se estas têm a natureza jurídica de taxas – ou seja, contraprestação pela utilização de serviço prestado pelo Estado – não se pode olvidar que o serviço público em questão tem grande relevo. O direito à tutela jurisdicional está intimamente ligado aos direitos de cidadania, e em última análise, à dignidade da pessoa humana. Assim, negar a jurisdição àquele de parcas posses seria afrontar a gênese do Estado Democrático de Direito, retornando-se ao conceito burguês de democracia.

Há que se buscar o equilíbrio entre a necessária arrecadação dos serviços judiciários e a preservação do acesso à justiça.

Adicione-se a isto a extra-fiscalidade também presente nestes tributos. Sua imposição visa também desestimular o patrocínio de lides temerárias ou totalmente infundadas. O ajuizamento destas causas, de igual sorte, prejudica o andamento das demais, além de se converter em flagrante abuso de direito e expediente de desrespeito à dignidade da justiça.

III.IV. Princípio da Proibição da Prova Ilícita

O processo tem como finalidade primeira a busca da justiça no Estado Democrático de Direito. Como pressuposto lógico, deve-se ocupar também da busca da verdade. De fato, sem que se tenha razoável nível de segurança sobre a efetiva ocorrência dos fatos discutidos, bem como das circunstâncias em que eles se deram, fica impossível descobrir quem tem razão.

Adicione-se a isto a adoção pelos sistemas processuais brasileiros do Princípio da Convicção Motivada do Juiz. Em perfeita consonância com a vedação à arbitrariedade (proibição fundamental ao Estado Democrático de Direito), o princípio propugna que a decisão do órgão judicante deve se basear em premissas fáticas devidamente comprovadas na fase instrutória.

De tal sorte, afigura-se crucial o papel das provas no processo brasileiro, o que revela a importância da limitação de sua admissibilidade. O artigo 5º., inciso LVI, traz regra proibitiva:

“art. 5º. – (...)

LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.

A leitura fria do texto constitucional faz concluir pela inflexibilidade da regra, bem como de sua extensão aos processos civis, criminais e administrativos. Embora a segunda conclusão se afigure correta, o mesmo não ocorre com a primeira.

Não obstante a doutrina estabeleça diferenciação entre prova ilícita, prova ilegítima e prova obtida por meios ilícitos (conforme anotam Nelson Nery Júnior[19], Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra da Silva Martins[20]) parece que a vedação constitucional se aplica a todas elas.

A restrição constitucional, para que se justifique no Estado Democrático de Direito, há que ter relevante fundamento – também constitucional. Assim, encontramos a proteção aos direitos da pessoa, em sentido amplo, abrangendo, entre outros, a dignidade da pessoa humana e a intimidade.

Destaque-se que a intenção do constituinte não é negar efeitos à prova obtida. Esta inadmissibilidade é, em verdade, uma reprimenda, pois o que se estima é que a ilegalidade não seja cometida. Trata-se de uma norma cujo caráter é, eminentemente, de garantia de direito.

Para melhor compreender tal assertiva, aponte-se a confissão obtida mediante tortura. O que o ordenamento jurídico visa é que a coerção ilegítima não ocorra, sendo a imprestabilidade da prova uma forma sancionatória contra o agressor. Não obstante o resultado ilícito ter-se consumado em prejuízo do bem juridicamente tutelado, o torturador (ou, mais freqüentemente, aquele que o ordenou) não se aproveitará das conseqüências jurídicas da prova produzida.

Nesse sentido, a proibição se dá para garantir a observação de direitos fundamentais da pessoa. Com base nessa constatação, é forçoso admitir que a aplicação do Princípio exige temperança. No magistério de Celso Bastos e Ives Gandra:

“Na medida que o propósito constitucional é prestigiar e defender certos direitos fundamentais, é preciso reconhecer que o comando contido no parágrafo (sic) sob comento deve ceder naquelas hipóteses em que a sua inobservância intransigente levaria à lesão de um direito fundamental ainda mais valorado” [21].

A questão merece ser resolvida pelo Princípio da Proporcionalidade. Este, note-se, também é próprio do Estado Democrático de Direito, no sentido de que a própria noção de democracia evidencia a impossibilidade de se atenderem a todos os interesses jurídicos a um só tempo. De fato, a democracia encerra um paradoxo: governar-se pela vontade da maioria, sem permitir a aniquilação da minoria vencida.

Nesse sentido, deve o exegeta identificar e ponderar os bens jurídicos (direitos fundamentais) em confronto para, então, concluir pela admissibilidade da prova somente quando esta tutelar o direito mais valioso.

III.V. Princípios da Publicidade, da Motivação e do Contraditório

Os três princípios epigrafados se encontram garantidos por diferentes dispositivos constitucionais. No entanto, dada a sua interdependência, serão tratados em conjunto, respeitando-se seus elementos singularizadores.

O Princípio da Publicidade está explicitamente tratado em dois tópicos constitucionais, a saber:

“art. 5º. – (...)

LX – a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;

(...)

art. 93 – (...)

IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos...”

A parte final do mesmo inciso IX do art. 93 determina que todas as decisões dos órgãos judiciários sejam fundamentadas. A negligência do julgador acarreta a nulidade do pronunciamento.

Por derradeiro, encontramos o Princípio do Contraditório insculpido no art. 5º., LV da Constituição Federal. In verbis:

“art. 5º. – (...)

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Os três dogmas constitucionais encerram a garantia constitucional do direito de defesa, contraponto do direito de ação. Mais uma vez a Carta Política enuncia um direito (agora, implicitamente) garantindo-o. Justifica-se a opção do legislador constituinte originário por razões pragmáticas.

O Estado Democrático de Direito, recorde-se, tem com antinômio o Estado Absolutista. Se neste o Poder advinha do monarca, que o exercia diretamente ou mediante seus representantes, naquele, deriva do povo. Desta sorte, com ele não se coadunam quaisquer dispositivos arbitrários, no sentido de que o exercício da força não esteja legitimamente justificado.

Alie-se a isto o conceito weberiano de dominação legal: este é o estágio mais racional de ordenação social, já desprendido das teorias teocráticas e da dominação carismática.

Nesse sentido, o conteúdo do direito de defesa no Estado Democrático de Direito brasileiro passa pela compreensão do trinômio publicidade-motivação-contraditório. A análise dos conceitos revela que há características instrumentais, o que justifica a sobredita interação, bem como significados próprios, estes, mais intimamente ligados ao conteúdo do Estado Democrático de Direito.

O Princípio da Publicidade tem dupla finalidade. Tomado sob a ótica das partes, sua importância é a de possibilitar a defesa. Inconcebível seria a imposição de qualquer medida contra a parte sem que esta dela tomasse ciência. Usando uma ilustração, seria como lutar contra um inimigo invisível.

Por outro lado, tomando como referência a justificativa social da obrigatoriedade da Publicidade, encontramos a legitimação do exercício da jurisdição. Repugna ao Estado Democrático de Direito a instituição de processos sigilosos – a não ser quando um interesse igualmente protegido o recomende (intimidade ou interesse social, conforme o texto constitucional). É totalmente antijurídica a instauração de procedimentos inquisitoriais, a exemplo dos tempos medievais, em que não havia acusação formalmente elaborada, a prova era produzida apenas por uma das partes (quando não era dispensada) e sem a participação da outra. Nessas hipóteses, conceder-se prazo para defesa era disfarçar a ilegalidade, pois não havia como o acusado produzir elementos de convicção em seu favor.

Desta sorte, a publicidade é garantia para a própria sociedade, instituída em atenção ao coletivo interesse pela realização do direito e confinamento do exercício do poder (coerção) aos liames estritamente necessários.

O Princípio da Motivação caminha na mesma senda. À parte interessa saber os elementos de convicção em que o órgão judicante se escorou para prolatar sua decisão. Os litigantes se defendem de argumentos e não de conclusões geradas espontaneamente a partir do nada absoluto. A motivação dos atos judiciais é, por assim dizer, a publicidade dos pensamentos do julgador.

Analogamente ao Princípio da Publicidade, justifica-se aqui o legítimo exercício da jurisdição. A ordem social se resguarda da arbitrariedade do julgador pois este, sujeitando-se à falibilidade de sua premissas, assenta a autoridade de seu pronunciamento no raciocínio desempenhado. O substrato fático e legal utilizado garante à sociedade que a ingerência estatal (coerção legítima) está sendo efetivada nos exatos limites legais.

Chega-se agora ao Princípio do Contraditório. Quando foi dito que a interação entre os conceitos se dava em termos de instrumentalidade, referiu-se à indispensável observância das garantias da publicidade e da motivação para a eficácia do contraditório. Com efeito, restou comprovado linhas acima que às partes interessa a transparência (do processo como um todo e da ratio decidendi, em específico) para possibilitar a defesa.

Ora, o contraditório não é senão a fórmula prática em que se convencionou traduzir o direito de defesa. Nesse sentido, pontifica Nelson Nery Júnior:

“Por contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar-se conhecimento da existência de ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhe (sic) sejam desfavoráveis. Os contendores têm o direito de deduzir suas pretensões e defesas, realizarem as provas que requereram para demonstrar a existência de seu direito, em suma, direito de serem ouvidos paritariamente no processo em todos os seus termos”[22].

Destaque-se que, em face da sistemática processual vigente, é falho referir-se exclusivamente a um direito de defesa, como se ele fosse mera faculdade da parte. O processo contemporâneo não é mero instrumento, produto do encadeado desenrolar de atos jurídicos. Fala-se modernamente  em relação jurídica processual. Relação entre sujeitos, caracteriza-se pelo seu dinamismo, pela constante alteração da situação jurídica das partes depois de praticado determinado ato. É assim que se fala em defesa não só como direito (que inegavelmente é), mas como ônus.

O Princípio do Contraditório expressa que à parte deve ser garantida a oportunidade de defesa. Também não há a obrigação legal de se defender. Assim, figure-se hipótese em que A ajuíza ação de indenização em face de B, alegando ter este abalroado o seu automóvel. B é devidamente citado, abrindo-se prazo para defesa. Imagine-se que tenha transcorrido in albis tal prazo e o juiz oficiante, considerando incontroversos os fatos articulados na inicial, julga procedente o pleito indenizatório. Não terá ocorrido ofensa ao contraditório, mas mera imposição de conseqüência jurídica processual ao litigante desidioso. Conforme já ressaltado, é conforme o Estado Democrático de Direito a atribuição de responsabilidade correspondente e proporcional ao poder concedido.

III.VI. Princípio do Duplo Grau de Jurisdição

Diferentemente dos princípios até agora tratados, o Princípio do Duplo Grau de Jurisdição não foi expressamente consagrado pela Constituição Cidadã. Por este motivo, há dissensão doutrinária sobre sua caracterização como garantia constitucional, então, implícita.

Nelson Nery Júnior anota que na história constitucional brasileira apenas a Carta Imperial (de 1824) enunciou o Princípio explicitamente, consagrando-o como garantia absoluta. Prossegue, mencionando que as constituições subseqüentes, inclusive a de 1988, suprimiram aquele dispositivo, limitando-se a instituírem tribunais com competência recursal. Por fim, pondera:

“A diferença é sutil, reconheçamos, mas de grande importância prática. Com isto queremos dizer que, não havendo garantia constitucional do duplo grau, mas mera previsão, o legislador infraconstitucional pode limitar o direito ao recurso...”[23].

Djanira Maria Radamés de Sá relata a existência de doutrinas ainda mais radicais:

“Corrente hoje minoritária, talvez pouco afeiçoada à moderna doutrina das garantias processuais constitucionais, nega ao duplo grau de jurisdição caráter de garantia constitucional, ao argumento de que se trata de mera regra de organização judiciária, não contingente e não dependente da cláusula do devido processo legal, da qual não é elemento essencial, mas acidental”[24].

Não obstante a envergadura dos adeptos de corrente doutrinária oposta, mais sólidas razões estão em abono do duplo grau de jurisdição como garantia constitucional.

Assente-se, inicialmente, a íntima conexão deste princípio com o do Devido Processo Legal, melhor explicitada por Djanira Maria Radamés de Sá[25]. A pedra angular do raciocínio é a definição do Devido Processo Legal como “garantia da regularidade e justiça da elaboração judicial”.

Nesse sentido, a (já destacada) função instrumental do Devido Processo Legal é proporcionar que a discussão judicial acerca de determinado bem da vida seja informada por princípios superiores de justiça. Além disso, tomados os contornos atuais do conceito de bem da vida (compreendendo a vida, a liberdade, a igualdade, o patrimônio, o meio ambiente equilibrado e outros) pode-se concluir que aí também se encarta o direito a uma decisão judicial favorável. De fato, é imperioso reconhecer que os mandamentos judiciais são destinados a gerar efeitos no mundo social e, conseqüentemente, alteram o complexo de bens do jurisdicionado – conferindo-lhe direito de crédito ou lhe entregando o produto da alienação judicial de bens do devedor para satisfazê-lo, por exemplo.

Outro argumento relevante está ligado à própria finalidade do Estado Democrático de Direito: construir uma sociedade livre e justa (art. 3º, I da Constituição Federal). Assim, o duplo grau de jurisdição é garantia de controle dos órgãos judiciais e exigência lógica para que se tenha a indispensável segurança dos pronunciamentos judiciais.

A respeito da necessidade de instrumentos de controle sobre o Poder Judiciário, aponte-se a lição de J. J. Calmon de Passos[26]:

“É da essência do Estado de Direito existirem controles para os atos dos órgãos detentores do poder, colocando-se os da Administração pública sob o crivo da fiscalização do Legislativo, do Judiciário e da opinião pública, mediante o processo eleitoral, num sistema de representatividade e participação; também submetido a controles políticos e jurisdicionais está o Poder Legislativo; o Judiciário, entretanto, apresenta-se quase imune a controles políticos que resultem do processo eleitoral e revelam-se (sic) bem frágeis os que sobre ele são efetiváveis pelo Legislativo e pelo Executivo. Desarte, a existência, no mínimo, de controles internos ao próprio Judiciário se mostra como indeclinável, sob pena de se desnaturar uma característica básica do Estado de direito (sic), privilegiando-se, no seu bojo, agentes públicos que pairam acima de qualquer espécie de fiscalização ou disciplina quanto a atos concretos de exercício de poder por eles praticados”.

Quanto à segurança, lembre-se que é um objetivo próprio do Direito enquanto instrumento de pacificação social. Esta não pode ser atingida sem que se garanta a estabilidade das relações jurídicas criadas (ou reconhecidas) pelo pronunciamento judicial. Entretanto, esta estabilidade pressupõe um mínimo de certeza de que aquela decisão está escoimada de irregularidades e de injustiças. Nesse sentido, o duplo grau de jurisdição é imperativo que garante a verificação de que o produto da jurisdição é aquele que mais se afeiçoa à idéia de Justiça.

Assim, embora não expresso no texto da Constituição da República é de se reconhecer a consagração da garantia ao Duplo Grau de Jurisdição no ordenamento jurídico pátrio.

Sobre o autor
Alexandre Magno Borges Pereira Santos

Mestre em Direito Público, Pós-graduado em Direito Processual Civil, Procurador Federal (AGU)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Alexandre Magno Borges Pereira. A face processual do devido processo legal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3543, 14 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23946. Acesso em: 22 dez. 2024.

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