3. A QUESTÃO DA PRESCRIÇÃO.
A temeridade em relação à prescrição, em se tratando de crimes de ordem tributária, sempre foi aspecto que preocupou os juristas envolvidos no tema, especialmente quando as correntes jurisprudenciais e doutrinárias que defendiam a necessidade do término do processo administrativo-fiscal antes da instauração da ação penal passaram a configurar maioria no cenário jurídico nacional. Isto porque, tendo em vista que não existe prazo peremptório para o fim do procedimento fiscal, era comum que os crimes já estivessem prescritos quando da emissão das inscrições da dívida ativa aos membros do Ministério Público, que ficavam de mãos atadas ainda que o contribuinte tivesse sido condenado na esfera administrativa. Tal contexto gerava um clima de impunidade generalizada, que mais parecia um convite à sonegação. Por esse motivo, os juristas que se posicionavam a favor da necessidade do exaurimento da via fiscal passaram a buscar soluções jurídicas que não contrariassem o ordenamento nacional a fim de resolver o dilema da prescrição.
Os juristas partidários do posicionamento segundo o qual o contencioso administrativo constituiria uma condição objetiva de punibilidade encontraram dificuldades sistemáticas para resolver o mérito da prescrição. Afinal, não há expressa previsão legal no sentido de permitir a suspensão ou interrupção da prescrição (cujas hipóteses são previstas taxativamente no Código Penal) nos casos de verificação de uma condição objetiva de punibilidade. Para aqueles defensores de que constituiria o procedimento fiscal uma questão prejudicial ao mérito da ação penal, a solução mais razoável encontrada foi a suspensão do Processo criminal enquanto não decidida a questão tributária, conforme previa o artigo 93 do Código de Processo Penal. Sendo assim, paralelamente à suspensão do processo, seria lógica a suspensão da prescrição, nos termos do artigo 116 do Código Penal[40].
Em contrapartida, em relação aos defensores da tese que considera a ação penal relativa a crimes de ordem tributária eivada de falta de justa causa se não precedida pelo processo fiscal correlato, há entendimento no sentido de que, em virtude de a decisão condenatória na esfera fiscal configurar verdadeiro elemento do tipo, simplesmente não se poderia, ainda, falar em crime antes de findo o contencioso administrativo, ou seja, o crime não se teria consumado. Automaticamente, conclui-se que não seria possível falar-se em decurso de prazo prescricional, afinal, se não existe crime, também não existe prescrição[41].
Esta última posição ganhou espaço nas decisões do STF nos últimos anos por parecer ser a mais razoável e a mais eficiente para evitar prescrições prejudiciais ao erário público. Afinal, sendo recorrente a prescrição de crimes cujos agentes foram condenados na esfera administrativa, tinha-se diminuído o poder repressivo, preventivo e retributivo da norma penal. Graças a esse entendimento, consolidado pela Súmula Vinculante nº 24, não foi ao menos necessário fazer-se menção a hipóteses de suspensão processual, uma vez que o prazo prescricional deixa de correr não por atendimento a requisitos meramente processuais e sim por questão de materialidade do crime. Além disso, consolidou-se interpretação do polêmico artigo 83 da Lei 9.430, definindo-se que não se trataria de norma com escopo meramente processual e sim penal, ou seja, relaciona-se ao direito de punir do Estado, instituto este de direito material e, consequentemente, aplicável retroativamente, por ser mais benéfica aos acusados.
Todavia, cumpre realizar outras indagações. Afinal, não se deve olvidar que após a decisão definitiva na esfera fiscal é permitido ao contribuinte discutir referida decisão por meio de uma ação cível encaminhada ao Poder Judiciário, normalmente, requerendo-se a anulação do débito fiscal. O primeiro problema referente a esta questão é justamente o aspecto da prescrição. Há intenso debate sobre a possibilidade de uma ação anulatória poder suspender o prazo de prescrição de um crime. Para Eduardo Fagundes, subprocurador-geral do Contencioso Tributário-Fiscal do estado de São Paulo, por exemplo, uma ação anulatória não poderia suspender a ação criminal porque o débito tributário já estaria definitivamente constituído[42]. Isto posto, na prática, a Súmula Vinculante nº 24 teria trazido uma solução prática rala para o mérito da prescrição. Afinal, basta que eventual autor de um crime de ordem tributária mova uma ação anulatória de débito fiscal para que tenha significativas chances de sair penalmente impune, ainda que condenado em âmbito civil, sem que o processo criminal tenha, ao menos, início.
Posto isso, é, ainda, fundamental verificar se não se estaria diante de um flagrante desrespeito a princípios como os da celeridade, previsto constitucionalmente a partir da Emenda Constitucional 45 no artigo 5º, inciso LXXVIII, e da economia processual. Afinal, exigir-se o término prévio de um processo administrativo sem prazo peremptório para, então, constituir-se a materialidade de um crime que, a partir disto, poderá configurar como objeto em uma ação penal pública incondicionada, que ainda poderá ser suspensa até o término de uma ação civil, não é o que se pode denominar célere nem econômico. Significa movimentar paralelamente três órgãos relevantes da máquina estatal por anos para, muitas vezes, chegar-se à exata mesma conclusão por meio das mesmas provas, conclusão esta a qual se poderia ter chegado concomitantemente, sem a necessidade de dispêndio de tanto tempo bem como recursos financeiros e humanos do Estado. Adicionalmente, não é tarefa árdua concluir que, na prática, muitos serão os que pretendem beneficiar-se indevidamente com o retardo das decisões administrativas, agindo de maneira procrastinatória a fim de impedir a remessa dos documentos relativos ao lançamento definitivo ao Ministério Público, além de intentarem ações civis visando unicamente a suspensão do processo criminal[43]. Quanto a este aspecto, bem observa a Ministra Ellen Gracie ao afirmar que não seria razoável imaginar que o legislador, que ampliou a penalidade para os delitos em questão, tivesse, ao mesmo tempo, inviabilizado sua persecução criminal[44].
4. O LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO E OS DIREITOS DO CONTRIBUINTE EM FACE DOS DIREITOS DA COLETIVIDADE.
Questão relevante também elucidada pela Súmula Vinculante nº 24 foi estabelecer, finalmente, o papel desempenhado pelo lançamento fiscal nos crimes de ordem tributária. Definiu-se que será a ciência do Direito Tributário que dará elementos para a verificação da existência do pressuposto fático fundamental à caracterização dos crimes previstos no artigo 1º, inciso I a IV, da Lei 8.137/90, já que passou a ser obrigatório entendimento segundo o qual, sem que haja tributo devido, o que só ocorrerá com o lançamento, não se pode cogitar crime que consista na redução ou supressão de tributos[45]. Sem o lançamento, falta o objeto do crime. Sendo assim, o lançamento, em relação aos crimes de ordem tributária, passou a ter suma relevância e, ao contrário do que ocorria anteriormente, quando o lançamento constituía mero indício que tinha como utilidade embasar a denúncia junto a outras provas, passou a ser fundamental para a configuração da própria conduta típica.[46].
Cumpre, ainda, apontar outras observações. A obrigação tributária nasce com a verificação de um fato gerador, nos termos do artigo 114 do Código Tributário Nacional. Tal obrigação não se confunde com o crédito tributário, que é a revelação da obrigação para o universo administrativo, o que apenas ocorre com o ato do lançamento, que não apenas declara a obrigação tributária como também constitui o crédito tributário. O lançamento é de competência privativa da autoridade fiscal, conforme disposição expressa do artigo 142 do Código Tributário Nacional. Nesse sentido, a Súmula Vinculante nº 24 preservou a competência privativa da autoridade administrativa para a constituição do crédito tributário como também o direito de o contribuinte ter o crédito constituído por autoridade legalmente competente[47]. Sendo assim, ao determinar que o crime apenas se tipifica com o lançamento definitivo, a Súmula elidiu que houvesse decisões na esfera judiciária que exercessem a mesma função do lançamento, o que poderia constituir invasão em esfera de competência do Poder Executivo.
Com a referida Súmula, resguardou-se, ainda, o direito constitucional e infraconstitucional assegurado ao contribuinte de defender-se administrativamente, alegando a inexistência de tributo devido, sem o qual não se há de falar em crime (nos termos do Decreto 70.235/72, alterado pela Lei 8.748/93, que regula o processo administrativo-fiscal, bem como do artigo 147, parágrafos 1º e 2º, do Código Tributário Nacional)[48]. Mesmo porque a impugnação suspende a exigibilidade do crédito tributário, que não pode ser inscrito definitivamente na dívida ativa nem ser objeto de execução fiscal sem o término do processo administrativo e, com mais razão, não se pode mover ação penal. Além disso, a Súmula Vinculante nº 24 reforçou o direito do contribuinte às garantias constitucionais da ampla defesa e contraditório junto ao Fisco, asseguradas pelo artigo 5º, inciso LV. Reforçou, ainda, o direito ao devido processo legal, previsto constitucionalmente, no artigo 5º, inciso LIV. De fato, não seria justo sujeitar o contribuinte no exercício regular de suas garantias constitucionais a uma persecução criminal sobre o mesmo tema. Agir de maneira diversa, significa utilizar um instrumento de coação para compelir o contribuinte a pagamentos que não deve realizar[49].
A garantia dos direitos do contribuinte bem como a preservação da competência administrativa para efetuar o lançamento tributário ganham relevo, sobretudo, ao tratar-se das hipóteses previstas na legislação vigente que admitem a extinção da punibilidade com o pagamento e/ou parcelamento da dívida tributária. Afinal, é com o lançamento que ocorre a certeza e a liquidação do tributo devido. Portanto, somente há exigibilidade definitiva do crédito tributário quando esgotadas todas as instâncias administrativas e todos os meios de recurso cabíveis para discutir a sua cobrança.
Ocorre que, muitas vezes, o oferecimento da denúncia antes do “trânsito em julgado” no contencioso administrativo vinha a ferir seriamente direitos legítimos do contribuinte que, inclusive, via prejudicado seu direito à extinção da punibilidade nos casos de pagamento e parcelamento previstos em lei. É fato que, atualmente, é possível a extinção da punibilidade com o parcelamento ou mesmo com o pagamento realizado após a denúncia, tendo em vista a lacuna legal sobre este último aspecto. Ainda assim, não eram raros os casos em que contribuintes preocupados com sua moral arcavam com montantes correspondentes a dívidas tributárias indevidas, sem discuti-los na esfera fiscal, somente com o intuito de evitar os malefícios de configurar no pólo passivo de uma ação penal[50]. Para um empresário, tal circunstância poderia ser fatal, uma vez que não mais teria certos direitos como direito ao Refis, ao parcelamento do INSS, à exportação e ao crédito de exportação[51]. Após a aprovação da Súmula Vinculante nº 24, situações como estas, possivelmente, não se haverão mais de repetir. Isto porque a ação penal apenas poderá ser intentada após o lançamento definitivo do crédito, o que significa que, ainda que o contribuinte opte pelo pagamento ou pelo parcelamento, arcará, se decidir aguardar o término do procedimento fiscal, com montante líquido e certo, constituído por autoridade competente. Não haverá, nesse sentido, qualquer meio de constrangimento ilegal, sendo assegurados os direitos legais do contribuinte.
Por outro lado, as causas de extinção de punibilidade previstas na legislação especial adicionadas à disposição da Súmula também podem apresentar resultados indesejados no que se refere à impunibilidade dos agentes criminosos. Inclusive, de acordo com o advogado Eduardo Reale, o pagamento dos tributos com a finalidade de extinguir a punibilidade tem sido a mais nova estratégia de sucesso para suspender inquéritos policiais e ações criminais. O autor do crime, após intentar todos os meios admitidos em lei para evitar o processo-crime, quando percebe que será condenado na esfera civil, efetua o pagamento do tributo devido. O problema desta conduta é que ela ocorre somente depois de anos de discussão no Poder Judiciário e Executivo. O prejuízo de ocorrências como esta é evidente: custos públicos elevadíssimos e muito trabalho desperdiçado. Mais que isso, esvazia-se completamente o caráter preventivo da lei penal, posto que os empresários não mais temem pela sanção penal, uma vez que a mesma é deveras improvável[52].
Adicionalmente, explica o Promotor de Justiça Fernando Arruda que, na prática, o que ocorre é que os grandes sonegadores são habituais, isto é, incidem correntemente nas mesmas práticas delitivas. Nesse sentido, é costumeiro que o Fisco identifique somente alguns dos delitos, deixando de verificar outros que fariam com que se constituísse a habitualidade delitiva. Caso este contribuinte tenha extinta a sua punibilidade pelo pagamento em relação a um dos delitos, perde-se o liame com os outros crimes e o autor do crime poderá ver-se livre de todas as demais infrações. Ocorre um verdadeiro prejuízo à investigação e à instrução criminal. Tal situação pode configurar-se em real incentivo à prática do crime[53]. Outra situação que tem se verificado é a aderência dos contribuintes a programas de parcelamento somente com o intuito de terem suspensa a pretensão punitiva do Estado. Afinal, muitas vezes, é por meio do parcelamento que agentes criminosos alcançam a liberdade, bastando, para isso, petição ao juiz com comprovação de que o empresário aderiu ao Refis e que está pagando as parcelas. Pouco tempo depois, não possuem mais condições de quitar as parcelas e, ainda assim, continuam livres. Por exemplo, com as regras estabelecidas pelo “Refis da Crise”, a partir do pagamento da primeira parcela pelo contribuinte, o procedimento criminal fica suspenso até o final do parcelamento[54].
Indagação também relevante é se não se estaria colocando as garantias asseguradas aos contribuintes, eventualmente coagidos, acima de direitos assegurados constitucionalmente a todos, tal como o princípio da igualdade. Afinal, o acusado de cometimento de crime de ordem tributária seria agraciado com uma espécie de privilégio em relação aos agentes de condutas delitivas não previstas na mesma lei tendo em vista que não podem ter ação penal impetrada contra si sem o exaurimento dos intermináveis procedimentos administrativos correspondentes. Seria, assim, possível que infratores da lei de trânsito, amparados justamente pelo princípio da isonomia, viessem a exigir, por exemplo, que eventuais ações criminais pertinentes a delitos dessa natureza apenas viessem a ser instauradas com a decisão final da autoridade de trânsito competente. Tal significaria conferir poder à Administração muito acima do que a CF prevê efetivamente.
Outro princípio que talvez esteja sendo considerado abaixo das garantias constitucionais do contribuinte é o princípio da moralidade administrativa, expressamente previsto no artigo 37 da CF. Segundo este princípio, todo agente público deve buscar com seus atos o bem comum. Não se deve olvidar que o tributo é a principal fonte de arrecadação do Estado e, sendo assim, o prejuízo à arrecadação significa prejuízo à sociedade. Nesse sentido, é inegável que a exigência do término do procedimento fiscal para início da persecução penal pode vir a gerar consequências muito negativas para o erário público, uma vez que, dessa maneira, afasta-se o principal meio coercitivo de que dispõe o Estado para reprimir e prevenir a sonegação dos tributos, qual seja a aplicação de uma sanção penal sobre o autor do fato criminoso. É certo que há quem afirme que a finalidade primeira da criminalização dos delitos tributários é que os tributos sejam pagos. Contudo, também é verdade que não basta que os tributos sejam pagos, é preciso que essa penalização tenha força tal que faça com que os infratores não mais queiram cometer o crime, ou seja, a função preventiva é, também, fundamental. Dificuldades à imposição de sanção penal aos autores dos delitos acima mencionados esvaziam a razão de ser de sua criminalização, uma vez que a punição dos criminosos fica obstaculizada pela burocratização dos serviços públicos, que tornam infindáveis os procedimentos fiscais. Todo este contexto torna a possibilidade de sancionamento penal muito remota. Claro está que tal situação, definitivamente, não corresponde às verdadeiras aspirações da sociedade como um todo. Principalmente porque, ao final, é a própria coletividade que sustenta os rombos no erário público causados pelos grandes sonegadores.