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As possíveis consequencias trazidas pela Súmula Vinculante nº 24

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Agenda 01/04/2013 às 23:44

5. A QUESTÃO DA INDEPENDÊNCIA DA ESFERA ADMINISTRATIVA E JUDICIÁRIA.

Muito já se indagou se a necessidade de esgotamento do processo fiscal antes da instauração do processo crime configuraria uma vinculação indevida entre a esfera administrativa e judicial, desrespeitando os princípios constitucionais da separação de poderes e da independência funcional do Ministério Público, que teria direito a formar livremente a opinio delictis e de exercer o jus persequendi, sobretudo, em se tratando de ação penal pública incondicionada, como nos delitos descritos na Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo[55].

O posicionamento anterior era no sentido de considerar as esferas judicial e administrativa autônomas entre si. Sendo assim, a instância administrativa não poderia constituir óbice para o oferecimento da denúncia por parte do Ministério Público[56]. Além disso, alegava-se infração ao princípio da inafastabilidade da apreciação do Poder Judiciário de lesão ou ameaça a direito, previsto expressamente no artigo 5º, inciso XXXV, da CF. Afinal, afirmava-se que, com tal dispositivo, buscou o legislador garantir o livre acesso das pessoas ao Poder Judiciário e a imposição de exigência quanto ao final do procedimento fiscal bem como à condenação do acusado nesse âmbito significaria obstaculização à referida garantia.

Com a Súmula Vinculante nº 24 consolidou-se interpretação segundo a qual não haveria qualquer restrição ao direito de ação do Ministério Público ao exigir-se o fim do processo administrativo-fiscal antes do início da ação penal. Segundo tal posicionamento o que ocorre, na verdade, é que o Ministério Público apenas possui condições de verificar a tipicidade da conduta com o término desse processo, uma vez que somente por meio desse é possível concluir pela existência de crédito tributário determinado e imutável[57]. Portanto, não existiria uma condição para o exercício funcional do Ministério Público, haveria, sim, uma condição para a própria configuração do crime[58]. Nesse sentido foi o voto do Ex-Ministro Paulo Brossard proferido na decisão do Habeas Corpus nº 71.755-1[59].

Além disso, o respeito à referida Súmula pode vir a pôr fim ao inoportuno risco à segurança jurídica causada em virtude de decisões conflitantes proferidas por diferentes órgãos do Poder. Afinal, se não fosse consolidado entendimento no sentido de ser obrigatório o exaurimento da discussão sobre o crédito tributário na esfera administrativa, seria possível deparar-se com julgamentos contraditórios em que o Poder Executivo poderia entender que não existe tributo devido, enquanto o Poder Judiciário condenaria o agente a uma pena por deixar de pagar o mesmo tributo. Tal tipo de contradição traria para a sociedade uma insegurança jurídica imensurável e de difícil resolução. 

Entretanto, ainda que adotado todo o entendimento acima exposto neste capítulo, é inevitável que sejam feitos questionamentos relativos aos argumentos elencados nos parágrafos anteriores deste capítulo. Afinal, é de se indagar se realmente prevalecem os  princípios da separação dos poderes e da liberdade funcional do Ministério Público quando o Poder Judiciário somente poderá agir se houver entendimento do Fisco no sentido da existência do tributo e, consequentemente, do crime[60]. Estar-se-ia transferindo ao Poder Executivo a função de dizer se uma conduta determinada configura crime ou não, o que, na verdade, seria função exclusiva do Poder Judiciário[61]. Além disso, a decisão administrativa pode ser rediscutida na esfera cível, conforme já se demonstrou anteriormente. Portanto, o que se pode concluir é que a decisão resultante do processo administrativo-fiscal também não reuniria o atributo da certeza em relação ao quantum do tributo. Sendo assim, é possível colocar em pauta se o condicionamento da ação penal ao final do processo fiscal não daria às decisões administrativas efeito vinculante para o Poder Judiciário. Adicionalmente cumpre questionar se não se atribuiria capacitação ao Fisco para interpretar a matéria tributária podendo este produzir “coisa julgada”, o que repercutiria imediatamente na prerrogativa judicial de livre apreciação das provas na persecução da verdade real.

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Além disso, conforme esclarece o Promotor de Justiça Fernando Arruda, é comum que a polícia fazendária e a civil consigam resolver apenas casos mais simples. Isto porque os grandes sonegadores utilizam-se de fraudes de difícil vislumbramento, muitas vezes, amparadas por grandes juristas atuantes no campo de direito tributário. A conseqüência disto é que deixam de pagar tributos sob argumentação jurídica que apenas parece razoável. Sendo assim, ainda que os agentes fiscais iniciem a investigação, não possuem condições para chegar a um bom termo para propiciar a denúncia. Enfatiza o Promotor que seria fundamental que os fiscais, além de terem conhecimento significativo na área tributária, deveriam também conhecer melhor a área penal[62]. Caso contrário, cria-se mais um obstáculo para a condenação na esfera penal, tornando-a ainda mais remota mesmo quando em relação a grandes sonegadores que causam prejuízos de milhões de reais ao erário público.


6. A QUESTÃO DAS PROVAS

A adoção, pelo STF, da tese que defende que a materialidade dos crimes previstos no artigo 1º da Lei 8.137/90 apenas se verifica com o lançamento inibiu não apenas a ação penal, mas também a instauração de inquérito policial para investigação do possível crime. Alguns doutrinadores consideraram este posicionamento benéfico também no que diz respeito à produção de provas. Afirmaram que, se os membros do Ministério Público não aguardassem que as provas fossem produzidas primeiramente na esfera administrativa, surgiria a necessidade de que as mesmas fossem realizadas duplamente, um ônus demasiadamente grande para o Estado e para todos aqueles chamados a contribuir com a justiça[63].

Entretanto, as posições que contradizem tais argumentos não devem ser desconsideradas posto que trazem apontamentos de relevância prática. O Promotor de Justiça Fernando Arruda compartilha a sua experiência afirmando que não raro os processos administrativos arrastavam-se por tanto tempo que a conseqüência óbvia era o desaparecimento de provas materiais e testemunhas indispensáveis à instrução da ação penal correspondente. Afirmou, ainda, que há provas que não podem ser ou, muitas vezes, não são produzidas na esfera administrativa[64]. O resultado disto é o flagrante prejuízo ao princípio penal da persecução da verdade real e a consequente impunidade dos agentes criminosos. Afinal, se existem provas que não podem ser produzidas em âmbito fiscal e estas seriam conclusivas para a condenação, tanto na esfera administrativa quanto na penal, é ilógico elidir a atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público ou, ao menos, a atuação conjunta de membros do Ministério Público e do Fisco. Um caso prático que deixou evidente que existem circunstâncias em que a presença do Ministério Público é fundamental para perquirir provas constitutivas da materialidade do delito foi o Habeas Corpus nº 95443[65]. Naquela ocasião, argumentou a Ministra Ellen Gracie que, diante da recusa do autor do delito em oferecer documentos indispensáveis à fiscalização da Fazenda, tornar-se-ia indispensável a instauração do procedimento inquisitorial para formalizar e instrumentalizar o pedido de quebra de sigilo bancário, diligência que considerou imprescindível para a conclusão da fiscalização e, consequentemente, para apuração de eventual débito tributário. Afirmou que não ser este o entendimento equivaleria a assegurar a impunidade. Por fim, julgou possível a instauração do inquérito policial para apuração de crime contra a ordem tributária, antes do encerramento do processo administrativo-fiscal, quando imprescindível para viabilizar a fiscalização.   

Nesse sentido, conforme se observa, o disposto na Súmula gera, muitas vezes, situações absurdas. Especialmente quando existem, sim, meios idôneos para demonstrar que efetivamente houve a configuração do crime sem a necessidade do lançamento definitivo. Exemplo disso é o consumidor que vê seu direito ofendido ao lhe ser negada uma nota fiscal pelo empresário. Mesmo diante de uma situação como esta, a nova interpretação dada pela Súmula descarta completamente a possibilidade de uma autuação em flagrante, uma vez que, até o lançamento, não estará constituído o crime. O resultado disto é que restaria ao consumidor acionar um Posto Fiscal para as devidas providências. 

De acordo com a Ministra Ellen Gracie, caso seja ineficiente ou insuficiente o serviço público do Fisco para evitar que alguns membros da sociedade se furtem a suas obrigações, seria ilógico que o Ministério Público não pudesse ter justa causa para a ação penal, independentemente da fixação exata do quantum debeatur[66]. Para a Ministra, admitir situações como esta significaria a paralização do órgão acusador diante de condutas altamente lesivas à sociedade, como as que resultam em evasão de tributos necessários ao desenvolvimento das políticas públicas.

Além disso, ainda que não haja efetivamente a sonegação do tributo, é possível que o denunciado tenha praticado outras condutas ilícitas que podem ser elucidadas pelo processo penal. Com isso, o autor do crime poderia ser condenado por esses outros crimes integrantes dos fatos narrados na denúncia. Isto porque é permitido ao juiz dar aos fatos capitulação diversa da descrita na denúncia. Poder-se-ia, com entendimento diverso, estar imunizando outras categorias criminosas similares.


CONCLUSÃO

Com a presente obra, pretendeu-se fazer- uma análise relativa aos efeitos derivados da Súmula Vinculante nº 24 do STF. Conforme demonstrado, a aludida Súmula foi editada com o escopo de dar uma solução definitiva a inúmeras discussões que rodeavam a questão da exigência do processo administrativo-fiscal para a instauração de processo crime em relação a crimes de ordem tributária desde a década de 70 e que, com a edição de novas normas, apenas se agravaram, gerando latente insegurança jurídica ao ordenamento

Nesse sentido, a primeira conclusão que se pode chegar é que, de fato, a Súmula em pauta trouxe, enfim, uma diretriz uniforme ao comportamento dos membros do Poder Executivo e Judiciário, evitando-se, dessa maneira, decisões conflitantes e incongruentes entre si. Além disso, trouxe definições teóricas lógicas com relevantes impactos práticos correlacionados. Afinal, estabeleceu, em definitivo, que os crimes previstos nos incisos I a IV do artigo 1º da Lei 8.137/90 devem ser interpretados em concomitância com o caput e que, por isso, são crimes materiais. Em vista disso, a materialidade do fato apenas dá-se com a efetiva supressão ou redução dolosa do tributo, o que só pode vir a ser demonstrado pelo lançamento definitivo após o término do processo administrativo. Preservou, ainda, relevantes direitos do contribuinte assegurados constitucional e infraconstitucionalmente, tais como o direito de defender-se administrativamente, sendo assegurado o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal e o direito de ter extinta a sua punibilidade pelo parcelamento e/ou pagamento do tributo devido sem haver constrangimento ilegal. Também graças à Sumula Vinculante nº 24 chegou-se ao final do dilema referente à prescrição dos crimes dessa natureza durante o processo administrativo. Afinal, considerando-se que o crime apenas se consuma com o lançamento definitivo, antes deste não se há de falar em crime e, consequentemente, não se há de falar em prescrição ou suspensão do prazo prescricional. Findou-se, ainda, a discussão quanto ao problema da autonomia das instâncias e da preservação da competência privativa do Ministério Público, uma vez que se entendeu que não se trataria de uma forma de limitação ao exercício de função exclusiva dos membros do Ministério Público e sim um condicionamento ao próprio momento e forma da configuração do delito que, uma vez constituído, será passível de constituir objeto da ação penal correspondente.

Todavia, também é possível concluir que nem todas as conseqüências do entendimento firmado na Súmula são positivas ou trouxeram efetivas soluções para os problemas que sempre permearam o tema e que, graças à força coercitiva da referida Súmula, continuarão a perpetuar-se e a causar efeitos negativos à sociedade. É o que ocorre no que se refere ao tema da prescrição, que não foi inteiramente resolvido. Afinal, mesmo que a prescrição não corra antes do lançamento do tributo, ainda existe a possibilidade de haver uma ação cível com o escopo de discutir o crédito tributário mesmo após findo o processo administrativo, não havendo qualquer posicionamento pacífico quanto à possibilidade de escoamento do prazo prescricional enquanto pendente a ação anulatória, o que significa que a prescrição continua sendo fator pendente de grande preocupação. Em se tratando de observância a princípios constitucionais e infraconstitucionais, tais como o princípio da economia processual e da celeridade, também há dúvida se a Súmula Vinculante nº 24 foi satisfatória. Não se pode dizer que exigir-se o término de três processos (um administrativo, um cível e um penal) para que um criminoso receba a sanção penal devida em um país conhecido pela mora na resolução de questões judiciais e pela burocratização administrativa é célere ou econômico. As consequências disso são catastróficas. Pode-se citar desde o dispêndio de recursos humanos e financeiros do Estado até o esvaziamento completo das funções retributiva e preventiva da norma penal. As vastas possibilidades de extinção da punibilidade com o pagamento e/ou parcelamento do tributo em qualquer fase do processo penal, o que dá ensejo a adoção de uma série de estratagemas procrastinatórias por parte de eminentes juristas, apenas esvaziam ainda mais a força inibitória das normas previstas na Lei 8.137/90. Além disso, não se pode negar o flagrante prejuízo à instrução criminal. Primeiro porque o pagamento de tributos concernentes a crimes menores extingue a sua punibilidade, o que inviabiliza a continuidade e a configuração da habitualidade atrelada a crimes maiores dessa natureza. Segundo porque impossibilita que esses crimes menores sejam utilizados para chegar-se aos de grande monta. Todo esse contexto gera flagrante ofensa ao princípio da moralidade administrativa, uma vez que ocorre efetivo prejuízo ao interesse da coletividade como um todo. É de se questionar se não estaria havendo ofensa, inclusive, aos princípio da separação dos poderes, da inafastabilidade da apreciação de lesão ou ameaça de lesão do Poder Judiciário bem como à competência do Ministério Público, já que ocorre nítida transferência ao Poder Executivo para determinar o que é crime e o que não é, competência esta exclusiva do Poder Judiciário. A conseqüência disto é, mais uma vez, prejuízo à instrução criminal, tendo em vista que os agentes fiscais não são profundos conhecedores do direito e, sendo assim, não possuem plena capacidade de chegar a um bom termo para propiciar a denúncia. Por fim, há provas que se perdem com o decurso do tempo, provas estas fundamentais à condenação do acusado em esfera criminal, principalmente em se tratando de provas testemunhais. Mais que isso, há provas conclusivas que não podem ser produzidas em âmbito administrativo, o que prejudica a persecução da verdade real sobre eventuais delitos. Isso tudo sem ser mencionado o risco de serem imunizados delitos relacionados aos crimes de ordem tributária. Afinal é possível que o juiz dê aos fatos narrados na denúncia capitulação diversa, uma vez que os indiciados defendem-se dos fatos e não dos crimes a eles imputados. Com isso, pode ser que o membro do Ministério Público entenda que eventual conduta configure crime de ordem tributária, enquanto, na verdade, trate-se de crime diverso, que restará imunizado em virtude do recente entendimento do STF.

Ao final, a conclusão a que se pode chegar é que, se é verdade que a Súmula Vinculante nº 24 consolidou posicionamento capaz de trazer, sem dúvidas, conseqüências positivas para o direito e para a sociedade, também é verdade que conferir obrigatoriedade e inflexibilidade a este posicionamento pode ser perigoso, uma vez que, com isso, inibe-se a verificação da necessidade de intervenção do Ministério Público considerando-se as peculiaridades de cada caso. A falta de maleabilidade auferida à questão pelo STF pode vir a gerar a perpetuação e, quiçá, o agravamento de consequências muito indesejáveis para o todo social, tais como impunidade e injustiça sem que seja possível buscar outras alternativas que poderiam vir a ser mais satisfatórias que esta. Com isso, inibe-se, por exemplo, a cooperação entre o Fisco e membros do Ministério Público, o que, indubitavelmente, seria proveitoso no que se refere à persecução da verdade real e na busca imediata por elementos indispensáveis à condenação de grandes sonegadores fiscais. Inibe-se, ainda, a apreciação da necessidade do final do processo fiscal em cada caso, sendo que, muitas vezes, há provas irrefutáveis e conclusivas de que houve crime de ordem tributária mesmo antes do lançamento definitivo. O resultado de todas essas circunstâncias são óbices cada vez maiores à efetiva punição de condutas delituosas graves o que gera cada vez mais certeza quanto à impunidade. .

Sobre a autora
Erika Nicodemos

Advogada atuante na área cível, sócia do escritório Erika Nicodemos Advocacia, graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito da Propriedade Intelectual pelo Centro de Extensão Universitária, em convênio com a Universidad Austral de Buenos Aires. Pós-graduada em Direito Empresarial e especialista em Direito Digital e Planejamento Sucessório pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Mestre em Direito Internacional Privado pela Università degli Studi di Roma – La Sapienza. Mestranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Membro efetivo da Comissão de Direito de Família e das Sucessões da Ordem dos Advogados do Brasil, São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NICODEMOS, Erika. As possíveis consequencias trazidas pela Súmula Vinculante nº 24 . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3561, 1 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24081. Acesso em: 22 nov. 2024.

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