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O estado de perigo e a lesão na nova sistemática civilista de 2002

Agenda 03/04/2013 às 10:38

Na lesão, que é objetiva, ocorre a usura real, não sendo necessário que a outra parte saiba da inexperiência do contratante. O estado de perigo, que é subjetivo, vicia a própria oferta, sendo necessário o conhecimento do perigo da outra parte que se aproveita da situação para firmar obrigação vantajosa.

O estado de perigo e a lesão estão classificados no Código Civil de 2002 como defeitos do negócio jurídico, nos arts. 156 e 157, respectivamente. São classificados dessa forma, pois atingem a vontade livre e espontânea do agente, o defeito está na formação da vontade, considerados como vícios do consentimento.

Seguindo a “Escada Ponteana” tais vícios repercutem na validade do negócio jurídico celebrado, sendo passiveis de anulação, pois as imperfeições que podem surgir provocam uma manifestação de vontade não correspondente como o íntimo e querer do agente, prejudicando um dos contratantes.

Conceitua o art. 156 do CC/02, o estado de perigo como: “configura-se o estado de perigo quando alguém, premido de necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa”, continua o paragrafo único “tratando-se de pessoa não pertencente afamília do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias.”

Estado de perigo é uma situação extrema em que uma pessoa temerosa de sofrer grave dano ou prejuízo celebra negócio jurídico desproporcional, assumindo obrigação exorbitante, cuja onerosidade é excessiva. Afeta a declaração de vontade do contratante, diminuindo a sua liberdade por temor de dano à sua pessoa ou à sua família.

Constituem exemplos a pessoa que efetua depósito ou presta garantia excessiva a hospital para conseguir internação ou atendimento de urgência de parente em perigo de vida, ou em caso de sequestro de pessoa da família em que um terceiro aproveita-se do sequestro e compra bem valioso por valor equivalente ao solicitado.

Para constituir o estado de perigo necessário estar presente os elementos estruturais, quais sejam: a) situação de necessidade; b) iminência de dano atual e grave; c) nexo de causalidade entre a declaração e o perigo de grave dano, ou seja, para caracterizar o estado de perigo, basta que o declarante pense está em perigo; d) ameaça de dano a pessoa ou de sua família; e) conhecimento de perigo pela outra parte, também conhecido como elemento subjetivo, o qual difere o estado de perigo da coação e da lesão; e f) onerosidade excessiva, elemento objetivo, o qual as condições são desproporcionais, capaz de provocar desequilíbrio contratual.

O principal efeito do negócio jurídico celebrado sobre estado de perigo é a declaração de anulabilidade do negócio, preceito do art. 178,II do CC/02, sendo o prazo decadencial de quatro anos, a contar da data da celebração do ato, para o ajuizamento da ação anulatória.

Em virtude do princípio da conservação contratual, da boa-fé e da função social do contrato, poderá, o juiz, analisando o caso concreto, utilizar-se da revisão do negócio jurídico aplicando, por analogia, o art. 157, § 2º do CC/02. Nas palavras do ilustre doutrinador Calor Roberto Gonçalves:

“Contudo, os casos em que o prestador de serviços esteja de boa-fé, por não pretender tirar proveito do perigo de dano, ou não tê-lo provocado, como o da pessoa que, atendendo aos gritos de socorro do náufrago, arrisca a vida saltando na água para salvá-lo, quase que instintivamente, malgrado a elevada oferta feita, não se enquadram no tipo descrito no aludido art. 156, que pressupõe o conhecimento do perigo no sentido de aproveitamento da extrema necessidade do declarante.”[1]

Havendo a boa-fé, sem o agente ter conhecimento da situação de perigo da outra parte, e não provocando, nesses casos o negócio jurídico poderá ser revisado, conservando o negócio celebrado, reduzindo o excesso contido na obrigação assumida, equilibrando-se as posições das partes, prestigiando a conservação negocial e a função social dos contratos, evitando o enriquecimento sem causa, como bem preceitua o Enunciado n. 148 da III Jornada de Direito do CJF/STJ, in verbis:

Enunciado nº. 148- Art. 156: Ao “estado de perigo” (art. 156) aplica-se, por analogia, o disposto no § 2º do art. 157.

A lesão, por sua vez, é o vicio do consentimento caracterizado pelo prejuízo resultante da enorme desproporção entre as prestações de um contrato, no momento de sua celebração determinado pela premente necessidade ou inexperiência de uma das partes.

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Conceitua o art. 157 do CC/02, a lesão da seguinte forma: “Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta”. Ocorre um negócio defeituoso, não observando o princípio da igualdade, tampouco há intenção de liberalidade provocando um desequilíbrio nas relações contratuais.

A lesão é um vicio de formação sendo apreciada no tempo em que o negócio jurídico foi celebrado. Visa ajustar o contrato aos seus devidos termos, afastando a distorção provocada pelo aproveitamento da necessidade e da inexperiência da outra parte. O objetivo principal da lesão é evitar o enriquecimento sem causa, a exploração usuária de um contratante por outro, nos contratos bilaterais, fundado em negócio totalmente desproporcional.

A caracterização da lesão é feita por dois elementos estruturantes, objetivo e subjetivo. O elemento objetivo é a onerosidade excessiva, consistente na desproporção das prestações, gerando lucro exagerado, ocasionando prejuízo a uma das partes, podendo estar estabelecida na lei, ou ser um conceito aberto, sendo definido pelo juiz no caso concreto. Segundo o novo Código Civil de 2002, cabe ao juiz averiguar, diante do caso concreto, a desproporção entre as prestações devidas pelos contratantes sempre no momento da celebração do negócio jurídico celebrado. Já o elemento subjetivo é a premente necessidade ou inexperiência do contratante relacionado àquele determinado contrato. No caso de premente necessidade, conceito genérico, que depende de apreciação pelo aplicador da norma, ela não está relacionada com as condições econômicas do contratante, nem a miséria ou alternativa entre o negócio e insuficiência de prover à própria subsistência, mas na necessidade contratual, isto é, está relacionada à impossibilidade de evitar o contrato, por isso não é necessário o induzimento da contraparte à pratica do ato, aproveita-se da situação especial, qual seja a necessidade contratual.

A inexperiência está elencada na lei civilcomo a inexperiência contratual ou técnica, daquele negócio jurídico específico, e não relacionado a falta de cultura. A inexperiência é a falta de conhecimento técnicos ou habilidades relativos à natureza da transação quanto à pessoa da outra parte.

Exemplo da premente necessidade e da inexperiência, na atualidade jurídica, é a compra de um imóvel, uma vez que o direito de moradia está previsto no art. 6º da CF/88 como direito social e fundamental, ou seja, a pessoa ao adquirir imóvel novo, geralmente não conhece as regras mercadológicas imobiliárias, se obrigando a prestações desproporcionais e excessivamente onerosas levadas pela necessidade social de aquisição da casa própria. Ademais o próprio conhecimento da atitude maliciosa do favorecido é indiferente para configuração da lesão fundada em premente necessidade e a falta de conhecimentos técnicos e habilidades relativa a natureza da transação configura a inexperiência contratual elencada na logística civil.

Conclui o doutrinador Carlos Roberto Gonçalves:

“Enfim, em qualquer negócio bilateral e oneroso em que o agente se sentir pressionado em razão da premente necessidade de realizar um negócio, assumindo obrigação manifestamente desproporcional à prestação oposta, configurar-se-á a lesão, até mesmo em negócios simples e de pequeno valor. Caracteriza-se a necessidade, por exemplo, numa época de seca, quando o lesionado paga preço exorbitante pelo fornecimento de água.”[2]

O efeito da lesão é a anulabilidade do negócio jurídico celebrado, conforme preceito do art. 178, II do CC/02. Entretanto, como bem explanado anteriormente, na lesão aplica-se a revisão do contrato, com base nos princípios da conservação do contrato, boa-fé e função social do contrato, mantendo a vontade manifestada pelas partes. Postula o ilustre doutrinador Flávio Tartuce, in verbis:

“Eventualmente, em vez do caminho da anulabilidade do negócio jurídico, conforme prevê o art. 178, II, do CC atual, o art. 157, § 2º, do diploma civil em vigor determina que a invalidade negocial poderá ser afastada ‘se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito’. Esse oferecimento pelo réu se dá por meio de pedido contraposto na contestação. Esse comando está possibilitando a revisão extrajudicial ou judicial do negócio, constituindo a consagração do princípio da conservação contratual e também da função social do contrato.”[3]

Tal entendimento está consubstanciado no Enunciado n. 149 do CJF/STJ, abaixo transcrito:

Enunciado 149 - Art. 157: Em atenção ao princípio da conservação dos contratos, a verificação da lesão deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial do negócio jurídico e não à sua anulação, sendo dever do magistrado incitar os contratantes a seguir as regras do art. 157, § 2º, do Código Civil de 2002.

O lesionado, poderá, desse modo optar pela anulação do negócio jurídico celebrado ou pela sua revisão, formulando pedido alternativo, cabendo ao juiz, na análise do caso concreto, optar pela revisão pelos motivos supracitados. Na lesão a regra é a revisão dos contratos e não a anulação, sendo plenamente possível que o lesionado ingresse diretamente com uma ação revisional fundado na lesão, conforme Enunciado n. 291 do CJF/STJ, in verbis:

Enunciado n. 291- Art. 157: Nas hipóteses de lesão previstas no art. 157 do Código Civil, pode o lesionado optar por não pleitear a anulação do negócio jurídico, deduzindo, desde logo, pretensão com vista à revisão judicial do negócio por meio da redução do proveito do lesionador ou do complemento do preço.

Superado a análise do dois institutos, passaremos a analisar a diferença entre eles conforme preceitos supracitados. Inicialmente os dois institutos não se confundem, no estado de perigo alguém se encontra em perigo e por isso assume obrigação excessivamente onerosa, na lesão não existe perigo, ocorre a necessidade contratual, gerando prestações desproporcionais, ocasionando onerosidade excessiva. Por isso, na lesão não é preciso que a outra parte saiba da necessidade ou da inexperiência da contraparte, ela é objetiva. Já no estado de perigo é preciso que a parte beneficiada sabia que assume obrigação vantajosa pelo grave dano sofrido pela contraparte, levando em conta o elemento subjetivo.

As principais diferenças entre os institutos são:

a) Na lesão ocorre a usura real, não sendo necessário que a outra parte saiba da inexperiência do contratante, é objetiva. O estado de perigo vicia a própria oferta, sendo necessário o conhecimento do perigo da outra parte que se aproveita da situação para firmar obrigação vantajosa, é subjetiva;

b) No estado de perigo o contratante se encontra em situação de grave dano, optando por sofrer as consequências do “perigo” ou pagar quantia exorbitante, proporcionando perda do patrimônio. Na lesão o declarante participa de um negócio desvantajoso, pela necessidade contratual, gerando o desequilíbrio das prestações excessivamente onerosas.

Ademais, pelos princípios elencados há similaridade entre a lesão e o estado de perigo, nos casos da revisão do negócio jurídico, baseado no art. 157, § 2º do CC/02 e os enunciados do CJF/STJ citados.

Conclui-se, portanto, que a existência dos dois institutos é necessária, pois as hipóteses de incidência são enormes para ambos, sendo que o estado de perigo tutela os direitos da personalidade, devido ao alto grau de subjetivismo aplicado ao vício, e a lesão tutela os direitos patrimoniais, devido a objetividade aplicada aos casos concretos, caracterizado pela necessidade contratual, ambos apreciados no momento do nascimento do negócio jurídico celebrado.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http:www.planalto.gov.br>. Acesso em: 12 de setembro de 2012.

____. Lei nº. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http:www.planalto.gov.br>. Acesso em: 12 de setembro de 2012.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Parte Geral. 10º ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

TARTUCE, Flávio. Trecho do livro: Manual de Direito Civil. Volume Único. São Paulo: GEN/Método, 2011. Material da 2ª aula da Disciplina Direito Civil. Teoria Geral do Negócio Jurídico, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Civil, Negocial e Imobiliário-Universidade Anhanguera-Uniderp-Rede LFG, 2012.


Notas

[1] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Parte Geral. 10º ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pág. 441.

[2]Carlos RobertoGonçalves, Direito Civil Brasileiro. Parte Geral. Cit., pág. 450.

[3] TARTUCE, Flávio. Trecho do livro: Manual de Direito Civil. Volume Único. São Paulo: GEN/Método, 2011. Material da 2ª aula da Disciplina Direito Civil. Teoria Geral do Negócio Jurídico, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Civil, Negocial e Imobiliário-Universidade Anhanguera-Uniderp-Rede LFG, 2012.

Sobre o autor
Luciano Bonfim Hellstrom

Advogado. Pos-Graduando Lato Sensu em Direito Civil, Negocial e Imobiliário pela Universidade Anhanguera-Uniderp-Rede LFG. Graduação em Direito pela FRB/BA. Sócio do escritório Hellstrom Advocacia e Consultória Jurídica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HELLSTROM, Luciano Bonfim. O estado de perigo e a lesão na nova sistemática civilista de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3563, 3 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24088. Acesso em: 27 dez. 2024.

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