Direito, ética, moral e o comportamento brasileiro frente aos comandos normativos eleitorais
A propedêutica jurídica leciona que o direito, bem como a moral, são instrumentos de controle da sociedade, que existem, num conceito durkheimiano, para manter a ordem (NADER, 2010, p. 53). Todavia, para muitos doutrinadores, direito e moral não se confundem, estabelecendo-se entre estes, algumas diferenças a serem enfrentadas.
O professor Paulo Nader leciona que existem as normas jurídicas e não jurídicas. Estas, do campo moral, e aquelas relativas ao Direito, produto de uma atividade legislativa, e positiva do Estado. Estabelecendo as diferenças entre Direito e Moral, o magistério supracitado pugna que o Direito é objetivo; a moral subjetiva; o Direito subordina-se ao comando estatal; a Moral subordina-se tão somente à coletividade e às convicções das pessoas; o Direito, se violado, contrai sanções efetivas a serem impostas pelas instituições públicas; a Moral, se atropelada, pode vir a ser submetida a uma reprimenda social, que não aquelas oriundas da atividade do Estado; o Direito é norma bilateral; a Moral é regra unilateral; O Direito é norma que sucede fenômeno exterior; a Moral não é cogente e não dispõe de punição; o Direito é sancionado ou promulgado; a Moral é elemento formado a partir de uma cultura, de uma axiologia intersubjetiva das comunidades (2010, p. 53).Por outro lado, o jurisfilósofoEduardo Carlos Bianca Bittar, professor da tradicional Faculdade do Largo do São Francisco da Universidade de São Paulo(USP), enfatiza que há, nesse paralelo entre Direito e Moral quase uma antinomia, um paradoxo, uma ampla antítese:
[...] o Direito possui como características: a heteronomia; a coercibilidade; a bilateralidade [...] Unilateralidade, incoercibilidade e autonomia seriam as notas essenciais da moral, significando exatamente o oposto do indicado anteriormente como características do Direito. [...] (2011, p. 519-520).
Destarte, o grande perigo que existe em delinear, destrinchar, esmiuçar e, por fim, diferenciar Direito e Moral insurge da hipótese dessa separação solver um Direito imoral, enquanto a moral não seria, por si só, objeto essencial, predecessor, requisito, e constitutivo do Direito.Tão logo, o Doutor Eduardo Bittar insiste na intensa intimidade do Direito com a Moral, obstando a argumentação nazista proferida em quase todos os julgamentos do Tribunal de Nuremberg que ousou alegar a licitude e, portanto, moralidade do genocídio de judeus, por haver previsão legal que todo o serviço público nacional alemão devia hierarquia e obediência, atendo-se somente à tarefa do cumprimento de ordens, não importando quais fossem elas e que objetivos tivessem, vez que decorriam da presunção de legitimidade da própria lei alemã (2011, p. 521).
No artigo O Neoconstitucionalismo no Brasil: Riscos e possibilidades, de Daniel Sarmento, há a acertadíssima observância de que até mesmo os positivistas, na atual conjuntura jurídica, reconhecem a imbricação da moral e do Direito como fenômeno inarredável:
[...] Ao reconhecer a força normativa de princípios revestidos de elevada carga axiológica, como dignidade da pessoa humana, igualdade, Estado Democrático deDireito e solidariedade social, o neoconstitucionalismo abre as portas do Direito para o debate moral. É certo que aqui reside uma das maiores divergências internas nasfileiras do neoconstitucionalismo.
De um lado, figuram os positivistas, como LuigiFerrajoli, LuizPrietroSanchís, Ricardo Guastini e Suzana Pozzolo, que não aceitam a existência de uma conexão necessária entre Direito e Moral, mas reconhecem que pode haver uma ligação contingente entre estas esferas, sempre que as autoridades competentes, dentre as quais se inclui o poder constituinte originário, positivem valores morais, conferindo-lhes força jurídica. Do outro, alinham-se os não-positivistas, como Ronald Dworkin, Robert Alexy, Carlos Santiago Nino e seus seguidores, que afirmam que Moral e Direito têm uma conexão necessária, e aderem à famosa tese de Gustav Radbruch, de que normas terrivelmente injustas não têm validade jurídica, independentemente do que digam asfontes autorizadas do ordenamento. Dentre estes autores, há quem insista na idéia de que o Direito possui uma ‘pretensão de correção’, pois de alguma maneira é da sua essência aspirar à realização da justiça. [...] (2013, online, grifos do autor).
Sobre esta intersecção entre Direito e Moral, Eduardo Bittar compila situações exemplificativas de estreita ligação e expressa previsão no Ordenamento Jurídico brasileiro, que dão um fundo jusnaturalista para o sistema em vigor: (i) a dívida de jogo, que por ter um objeto ilícito, não encontra na escada ponteana o plano de validade consolidado, sendo juridicamente inexigível, restando somente uma obrigação moral; (ii) o incesto não é tipificado como crime no Código Penal pátrio, mas é altamente expurgável pela moral coletiva; (iii) a boa fé objetiva, da qual é erigida uma série de presunções nas relações civis, na teoria geral dos negócios jurídicos; (iv) a perda do poder familiar dos pais, caso procedam ao arrepio da moral, mormente o exarado no art. 1.638 do Código Civil brasileiro, Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002; (v) o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Decreto Lei nº 4.657 de 04 de setembro de 1942, que permite à judicatura a aplicação dos princípios gerais do direito, quando a norma for omissa, tendo aqueles implicação ética: neminemlaedere, do latim, a ninguém lesar, suum cuique tribuere, melhor dizendo, dar a cada um o que é seu, honeste vivere, viver honestamente; (vi) no mesmo artigo do diploma supracitado, insta que o magistrado pode aplicar os costumes para solucionar a demanda; e, (vii) o princípio da moralidade pública, insculpido no caput do art. 37 da Constituição Federal de 1988. Para o jusfilósofosupra evocado:
[...] Aqui se comprova a relevância do princípio moral para a própria organização, manutenção e credibilidade cívica dos serviços públicos. O que é moralmente recomendável tornou-se juridicamente exigível do funcionalismo público. [...] (2011, p. 521).
Dando continuidade à análise proposta, o termo ética, por seu turno, origina do grego ethos, e implica uma tradução do sentido de pele (2013, online). Portanto, ético é aquilo que está na pele, ou que se traz nesse tecido protetor e elástico do organismo humano. Por esta ótica, o conceito de ética está ligado ao hábito, ao comportamento, à repetitiva, reiterada ação humana, a ponto de determinar o modo de agir do indivíduo, sua cor, sua textura (BITTAR, 2011, p. 542).
Pelo que se percebe, a LC nº 135/2010 é fruto de uma crise ética na coisa pública brasileira, algo sucedido das fundamentações dos votos de alguns ministros do Supremo, em especial, Luiz Fux e Ayres Britto (2012, online). Todavia, vinculado ao conceito comportamental da ética, convém anotar que apesar da existência de uma moral comum, uma reação esperável do homem médio a situações adversas do moralmente recomendável, incide um comportamento cultural do brasileiro que repisa os versos de Chico Buarque: “[...] Não existe pecado do lado debaixo do equador [...]” (2013, online).
Neste esteio, para enrobustecer o perfil pacifista, desinteressado, passivo, controvertido e estranho do brasileiro, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo(FIESP) (2013, online), em pesquisa publicada em agosto de 2011, aponta que nos últimos dez anos foram desviados cerca de 720 bilhões de reais dos cofres públicos do Brasil. Isto representa um desperdício oscilando entre 50 e 85 bilhões de reais anualmente, o que é muito maior do que as previsões orçamentárias de vários entes federativos, como, exemplificativamente, o Estado de Goiás. Os dados levantados pela FIESP não auferiram quanto custou, na última década, ao erário, a manutenção dos órgãos técnicos de fiscalização como os Tribunais de Contas, quer da União, dos Estados ou dos Municípios. Ora bem, mesmo com todo esse aparato fiscalizador, não há na coisa pública brasileira uma segurança mínima da destinação dos recursos públicos, haja vista que todo esse dinheiro resvalou-se pelo tempo, e, a própria Controladoria Geral da União publica gráficos mostruários da probabilidade de um funcionário corrupto ser condenado: de menos de 5% (HERNANDES, 2013, online). Não obstante, a possibilidade desse mesmo agente cumprir pena de prisão é quase zero. Por último, dos recursos desviados, apenas 8% deles retornam aos cofres públicos.
Por esta esteira, é assustador que, no Brasil, ainda haja tanta discussão quando há singelos apelos, acenos, gestos populares pela moralização da coisa pública. Em sua defesa no fatídico RE nº 631.102, o senador Jader Barbalho, até então banido pela LC nº 135/2010, chegou a questionar a legitimidade democrática do referido diploma (2012, online). Para o senador, a taxada lei ficha limpa precisaria de apenas um milhão e quatrocentas mil assinaturas. Numericamente, tal norma estaria aquém de si, haja vista que foi endossado por um milhão setecentos e noventa e nove mil, setecentos e sessenta e dois votos. Tal famigerada comparação seria ainda mais procedente se considerados os números do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar(DIAP), que, sobre o produto das eleições de 2010, a 52ª legislatura da Câmara dos Deputados, aponta a verdadeira dificuldade que o eleitor brasileiro tem de renovar os seus representantes. A despeito da insatisfação geral com as políticas públicas, e com os escândalos cada vez mais latentes, 54% dos parlamentares foram reeleitos para mais um mandato na referida Casa dos representantes do povo (2013, online).
A título de reflexão, as palavras de Thomas Jefferson poderiam fazer algum sentido para o fechamento deste trabalho: “[...] Se os homens são puros, as leis são desnecessárias; se os homens são corruptos, as leis são inúteis! [...]” (2012, online). Tão logo, é impossível constatar se a LC nº 135/2010, suas implicações, seus debates, sua incidência, suas pesquisas tenham alguma serventia para o contexto histórico, político, social e cultural do Brasil, no invólucro da cultura moral tão controvertida da cosmologia axiológica nacional.
Tais conclusões são conforme o estudo do antropólogo Roberto Damatta, em “O que faz o brasilBrasil?”, pinçando abaixo, elementos da identidade cultural brasileira:
[...] Por tudo isso, somos um país onde a lei sempre significa o ‘não pode!’formal, capaz de tirar todos os prazeres e desmanchar todos os projetos e iniciativas. De fato, é alarmante constatar que a legislação diária do Brasil é uma regulamentação do ‘não pode’, a palavra ‘não’ que submete o cidadão ao Estado sendo usada de forma geral e constante. Ora, é precisamente por tudo isso que conseguimos descobrir e aperfeiçoar um modo, um jeito, um estilo de
navegação social que passa sempre nas entrelinhas desses peremptórios e autoritários ‘não pode!’. Assim, entre o ‘pode’ e o ‘não pode’, escolhemos, de modo chocantemente antilógico, mas singularmente brasileiro, a junção do ‘pode’ com o ‘não pode’. Pois bem, é essa junção que produz todos os tipos de ‘jeitinhos’ e arranjos que fazem com que possamos operar um sistema legal que quase sempre nada tem a ver com a realidade social [...].(1986, p.82, grifos do autor).
Enrobustecendo, Ironildes Bueno e Rogério Lustosa, já falando sobre o grande problema que a LC nº 135/2010 buscou combater (a corrupção), já apontam que:
“[...] Se apenas o Estado fosse corrupto, a engrenagem da corrupção não marcharia: é preciso que os políticos encontrem parceiros na sociedade civil. [...] Na verdade, como costumeiramente se diz na também corrompida vizinha Argentina, a corrupção é como o tango: é preciso mais de um para dançá-lo. [...]” (2011, p. 20).
Eis ai a suposta necessidade do resguardo, da tutela normativa estatal cuidando de proteger o povo e o Estado inclusive de si mesmos, impondo uma carga de valores muito mais complexa e historicamente conquistada, fitando preservar o decoro, a decência, o pudor, a educação, a formação, a segurança jurídica e, sobretudo, a dignidade, buscando eliminar esta fusão bagunçada do “não pode” com o “pode”, adequando à realidade social pátria o mínimo esperável e recomendável de seus representantes, uma vida pregressa compatível com probidade com a qual deveriam, em tese, exercer os cargos eletivos a que se propuserem ocupar.
Conclusão
A Lei Complementar nº 135/2010 vem ao encontro da avidez e do clamor popular pela moralização da coisa pública no Brasil, em um momento peculiar da história da democracia brasileira. Acrescendo cláusulas de inelegibilidade no ordenamento jurídico pátrio, nos termos do art. 14, § 9º da Carta da República de 1988, tal norma inovou nos requisitos do exercício dos direitos políticos passivos.
No tocante à suas fontes, ou origens, a referida norma encontra arrimo no próprio espírito democrático, que é traduzido pela participação popular nas decisões do organismo social politicamente estruturado (o Estado), também através de atos de publicidade, transparência e, sobretudo, garantindo-se a todos a presunção da honestidade dos governantes.
Muito bem intencionada, portanto, no escopo de moralizar a coisa pública e enrijecer os requisitos para a ocupação de cargos eletivos, a reforma que a lei em estudo trouxe ao Ordenamento foi altamente rebatida por divergências de todos os lados: doutrina ou jurisprudência. De modo que levantou-se uma série de aparentes contradições das normas e preceitos constitucionais parâmetros, face à LC nº 135/2010. Tendo que solver estas incompatibilidades hipotéticas, à luz da segurança jurídica e, pelo prisma teórico do princípio da unidade da Constituição e do Sistema Normativo, os intérpretes maiores do Estatuto Político Brasileiro de 1988 apreciaram a matéria tanto em sede de controle abstrato (por meio da ADI 4578 e ADCs 29 e 30), quanto também em controle difuso (ao exemplo dos REs nº 630.146/DF; e nº 631.102/PA). Na oportunidade, o Supremo assentouà constitucionalidade a LC nº 135/2010, asseverando sua presunção vertical de compatibilidade com a Constituição Federal de 1988, com as ressalvas de sua aplicação somente a partir das eleições de 2012, nos termos do art. 16 da Lei Mãe.
Muito embora seja pacífico que a democracia materializa-se pelo respeito à vontade popular, é importante destacar que, por outro lado, o espírito democrático se assevera quando as leis, já positivadas, não passam pelo esvaziamento de eficácia, ainda que contrariem os interesses da maioria. Nesta toada, por mais que a vontade do povo seja pela eleição de um candidato obstado por cláusula de inelegibilidade, a pretensão popular pode abster-se, pois inexiste um direito adquirido à candidatura. Para propor-se ao exercício do comando do Estado (o governo), deve o cidadão que pretende passar pelo crivo das urnas, adequar-se ao sistema eleitoral, ajustando-se às exigências de valores e galhardos constitucionais embutidos nas cláusulas de inelegibilidade da recém reformada LC nº 64/1990.
Considerando a mutabilidade constante do direito, é através dos embates desenvolvidos pelos escritores contemplados neste trabalho que caminha-se para encontrar a forma mais justa e confiável que, por hora, consideram a LC nº 135/2010 plenamente constitucional, por decisão do Supremo Tribunal Federal, passível de revisão pela própria Corte.
Sucede que, por fim, o Direito, a ética e a moral são institutos diferentes, mas, estreitamente correlacionados. De modo que a ética pode ser determinante ao conteúdo positivado pelo Estado (o Direito), principalmente porque esta se refere ao comportamento, à conduta dos indivíduos. Assim, é de se concluir que o Direito é produto ético de conteúdo moral, não importando se esta moral está ou não coadunada a pressupostos sensíveis de humanidade. Logo, sob as lentes do neoconstitucionalismo e do neopositivismo, a moral e o Direito não podem ser dissociados, razão pela qual a LC nº 135/2010 é mais um ponto de intersecção entre eles: o que se recomenda moralmente passa a ser exigido juridicamente.
Na mesma linha, ocorre que, o comportamento do brasileiro não é tão simples e adequado à fria negativa da interpretação das leis. Por se tratar de um povo cuja cosmologia axiológica é altamente vulnerável e isto se reflete em simples hábitos/práticas do cotidiano, a aplicação da LC nº 135/2010 fica a mercê de cada caso concreto, com suas peculiaridades subjetivas que suplantam a objetividade da norma. Tanto que a própria lei faculta a um magistrado a possibilidade de flexibilização das regras de inelegibilidade, sob a conveniência e oportunidade da discricionariedade deste dispositivo que, em tese, deve ser utilizado como objeto de transformação política, social e cultural.
Espera-se que os contornos definidos por esta pesquisa possam contribuir ao desenvolvimento das relações humanas em sociedade.