1. A Constituição Federal de 1988 prevê nos arts. 131 e 132 a obrigatoriedade de formação de advocacia pública no âmbito do poder executivo da União, estados-membros e Distrito Federal para o desempenho da representação judicial e extrajudicial, consultoria e assessoria jurídica.
Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.
§ 1º - A Advocacia-Geral da União tem por chefe o Advogado-Geral da União, de livre nomeação pelo Presidente da República dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada.
§ 2º - O ingresso nas classes iniciais das carreiras da instituição de que trata este artigo far-se-á mediante concurso público de provas e títulos.
§ 3º - Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observado o disposto em lei.
Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Parágrafo único. Aos procuradores referidos neste artigo é assegurada estabilidade após três anos de efetivo exercício, mediante avaliação de desempenho perante os órgãos próprios, após relatório circunstanciado das corregedorias. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
A contrario sensu, essa obrigatoriedade não se estende aos municípios, que a depender de suas necessidades institucionais e administrativas podem constituir um corpo de advogados públicos municipais. Na praxe, observa-se que a grande maioria das municipalidades, talvez em razão de suas necessidades de representação judicial e extrajudicial, consultoria e assessoria jurídica minúsculas, detêm um advogado contratado diretamente – leia-se sem certame público – pelo prefeito municipal. Aliás, o legislador constituinte conscientemente não estendeu essa obrigatoriedade para os municípios, conforme os anais da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88.
2. A advocacia pública, consoante dicção constitucional (capítulo IV, título III), é uma das funções essenciais à administração da justiça, ao realizar a representação judicial e extrajudicial, consultoria e assessoria jurídica das entidades políticas: União, estados-membros, Distrito Federal e dos municípios, e das entidades administrativas: autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista.
Não se olvide que a Constituição da República de 1988 promoveu uma grande alteração no que respeita à representação, consultoria e assessoria jurídica das entidades políticas e administrativas, pois antes de 1988 quem estava incumbido deste mister era o Ministério Público, conjugado à defesa e promoção dos direitos coletivos e individuais indisponíveis e do interesse público. Não raras vezes se vislumbrava um conflito de identidade dessa instituição quando se chocavam o interesse do órgão ou entidade pública com o dos cidadãos-administrados. Hodiernamente, há clara distinção entre os misteres da advocacia pública e do Ministério Público. A propósito, o art. 129, IX da CF/1988 preceitua que é vedado ao parquet a representação judicial e consultoria jurídica de entidades públicas, justamente porque essas atribuições competem à advocacia pública, além de se assegurar a independência funcional-administrativa da indigitada instituição, que deve se ater a salvaguardar a integridade da ordem jurídica, do regime democrático, dos direitos coletivos e individuais indisponíveis (CF, art. 127, caput).
3. O interesse público, nas preciosas lições de Celso Antônio Bandeira de MELLO (2008, p. 61) “deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem.” Noutras palavras, o interesse público é a síntese, condensação dos interesses das pessoas enquanto partícipes de uma coletividade, quer dizer, é a dimensão, lado público dos interesses de cada indivíduo.
Nesse sentido, verbi gratia, uma pessoa, guiada por interesse na dimensão individual, pode ser contrária à desapropriação de um imóvel que lhe pertence, mas na dimensão pública desse mesmo interesse, sabe que essa desapropriação será importante em razão da destinação a ser dado ao imóvel: construção de um hospital, instalação de uma escola ou creche, abertura de uma via pública para a melhoria da fluidez do trânsito...
A doutrina italiana costuma dividir o interesse público em primário e secundário. O interesse público primário consiste no interesse da coletividade relativo ao atendimento de suas necessidades e anseios, à consecução do bem comum. Já o interesse público secundário concerne ao interesse do Estado enquanto sujeito com personalidade jurídica, isto é, sujeito de direitos e deveres na ordem jurídica. Necessariamente, o interesse público secundário deve se fundar e se legitimar no interesse público primário, pois, ao revés, apresenta-se como espúrio, maculado, ilegítimo (MELLO, 2008; BARROS, 2012; CUNHA JR, 2012).
A defesa e promoção do interesse público, destarte, compete também à advocacia pública. Mesmo quando essa defesa e promoção, à primeira vista, refira-se ao interesse público secundário, sempre se estará salvaguardando o interesse público primário. Quando o Estado, enquanto sujeito com personalidade jurídica, ingressa em juízo para a cobrança de dívida ativa – créditos tributários e não-tributários –, com ações de reparação e restituição ao erário, ou contestando uma ação movida por particular – interesse público secundário –, os valores pecuniários eventualmente arrecadados com a cobrança ou não despendidos com pagamento de indenização serão vertidos para a satisfação das necessidades e anseios da coletividade em relação à saúde, educação, segurança, geração de emprego, moradia, transporte, lazer, assistência social, previdência social... interesse público primário.
Não raras vezes, o advogado público, em virtude de orientação equivocada de autoridade superior ou dele mesmo, extrapola o múnus público que lhe é conferido pela Constituição da República ao defender interesses públicos secundários do Estado que verdadeiramente afrontam o interesse público primário, quando, verbi gratia, busca a todo custo elidir reparação pecuniária devida a particular em razão de alguma conduta estatal lesiva, quando não paga o justo valor pela desapropriação realizada, quando se nega a fornecer medicamento imprescindível e insubstituível à sobrevida de pessoa enferma.
Nessa perspectiva, o dever do advogado público não é de postular a irresponsabilidade do Estado, há muito refutada pelo ordenamento jurídico pátrio (CF, art. 37, §6º), mas de zelar pela legitimidade e regularidade da responsabilização objetiva por conduta comissiva ou responsabilização subjetiva por conduta omissiva (MELLO, 2008), pugnando os interesses constitucionalmente e legalmente protegidos do Poder Público, os quais, ao fim e a cabo, devem se confundir com os interesses da coletividade, uma vez que a razão de existir do Estado não é outra senão a de atender as necessidades do ser humano e de viabilizar a coexistência pacífica em sociedade.
O regime jurídico-administrativo pode ser sintetizado em duas vigas-mestras, a saber, a supremacia do interesse público sobre o privado e a indisponibilidade do interesse público.
A supremacia do interesse público sobre o privado elucida a ideia de que o interesse da coletividade deve preponderar diante do interesse particular, respeitando e se conformando, contudo, a limites impostos pelo ordenamento jurídico, ou seja, verbi gratia, o interesse da coletividade na desapropriação (CF, art. 5º, XXIV) prevalece sobre o interesse do particular desapropriado, contanto que, observando-se o direito fundamental de propriedade (CF, art. 5º, XXII) desse particular, haja indenização segundo o valor venal atualizado do imóvel desapropriado.
A indisponibilidade do interesse público revela que o interesse da coletividade não se submete ao bel-prazer, aos caprichos, à disponibilidade e conveniências pessoais do gestor público, pois não lhe pertence, não é de seu domínio, apenas detém a posse em face da função administrativa ou política desempenhada, a qual sempre deve ser voltada a uma finalidade pública. Neste passo, os poderes que são conferidos ao agente público pela ordem jurídico-administrativa são instrumentais ao dever de sempre atender e almejar a consecução do bem comum, razão por que Celso Antônio Bandeira de MELLO (2008) prefere cunhar o termo dever-poder ao invés do clássico poder-dever.
À luz dos princípios-mestres da supremacia e indisponibilidade do interesse público é que se legitima e se lastreia as prerrogativas outorgadas ao Poder Público, verbi gratia, de extinguir ou alterar unilateralmente contrato administrativo, de retomar a execução de serviço público que esteja nas mãos de particular, de desapropriar, de realizar limitações e restrições na liberdade e propriedade particular, de ter juízo privativo, de ter procedimento especial de execução de seus créditos e débitos pecuniários, de ter prazo diferenciado para se manifestar em juízo, de possuir citação e intimação pessoais, de possuir reexame necessário das decisões judiciais desfavoráveis etc, não sendo, pois, reputadas inconstitucionais (BARROS, 2012), justamente porque o interesse público exige tratamento diferenciado na medida em que se cuida dos bens jurídicos e bem-estar da coletividade.
4. A advocacia pública detém enorme relevância – segundo Luiz Flávio Borges D`URSO (2012, p. 66) – na defesa e promoção da incolumidade do erário, uma vez que de acordo com dados do Ministério da Justiça divulgados em dezembro de 2011, entre os anos de 2007 e 2009 foram economizados ou arrecadados ao cofre público federal a impressionante cifra de R$ 2,026 trilhões em razão de execuções fiscais e ações judiciais de reparação e restituição.
Conjugado a isso, o Jornal Hoje da Rede Globo do dia 23/08/2012 noticiou que, conforme a advocacia-geral da União, realizar-se-á a maior recuperação de dinheiro público desviado por corrupção, relativo aos R$ 468 milhões que o ex-senador Luís Estevão terá que devolver ao erário em virtude dos desvios promovidos na construção do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. Os bens de Estevão estão bloqueados até a integral devolução do indigitado valor.
Outrossim, a advocacia pública federal está autorizada a cobrar dos causadores de acidente de trânsito, que agiram com dolo ou culpa, os valores pecuniários despendidos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) com a prestação de serviços e benefícios às vítimas-segurados e seus dependentes, em ordem a reduzir e evitar o déficit financeiro de que há tempos padece a autarquia federal, sem se esquecer que a medida poderá inibir as infrações de trânsito. De acordo com notícia veiculada no site http://www.agu.gov.br em 3/11/2011, o INSS despende R$ 8 bilhões por ano apenas para atender esses casos, e continua informando que o advogado-geral da União substituto – Fernando Luiz Albuquerque Faria – explicou “que é dever da AGU buscar reaver o prejuízo que o particular confere ao Estado brasileiro por ato ilícito”. Essas ações regressivas, não se olvide, fundam-se numa interpretação extensiva dada ao art. 120 da Lei 8.213/1991, segundo o qual “Nos casos de negligência quanto às normas padrão de segurança e higiene do trabalho indicados para a proteção individual e coletiva, a Previdência Social proporá ação regressiva contra os responsáveis”.
Essas informações revelam, insofismavelmente a meu sentir, a imensa importância, algumas vezes não reconhecidas ou não divulgadas, do profissional da advocacia pública na defesa e promoção da incolumidade do erário e, ipso facto, na salvaguarda do interesse da coletividade, porquanto ao lograr êxito na recuperação de dinheiro público desviado, na reparação do erário em razão de alguma dilapidação ou na cobrança e arrecadação de valores pecuniários, contribui decisivamente para a capacidade financeira do Estado em atender as necessidades e anseios da coletividade por escolas, hospitais, segurança, geração de emprego, transporte, saneamento básico, moradia, previdência social, assistência social etc.
Referências
ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO. AGU e INSS protocolam em Brasília 1ª Ação Regressiva contra causador de acidente de trânsito que gerou indenização da Previdência Social. Disponível em http://www.agu.gov.br.
BARROS, Guilherme Freire de Melo. Poder Público em juízo – para concursos. 2ª ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2012.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br
CUNHA JR, Dirley da. Curso de direito administrativo. 11ª ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2012.
D`URSO. Luiz Flávio Borges. Advocacia Pública: pilar da democracia. In Revista Prática Jurídica. Brasília: Ed. Consulex, ano XI, nº 123, junho/2012.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 24ª ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2008.
REDE GLOBO DE TELEVISÃO. Jornal Hoje. Edição 23/08/2012. Disponível em http://g1.globo.com
SENADO FEDERAL. Anais da Assembleia Nacional Constituinte. Disponível em http://www.senado.gov.br