PROVENTOS E BENS ADQUIRIDOS INDIVIDUALMENTE
A melhor interpretação dos incisos VI e VII deve levar em consideração o fato de que existe diferença entre os proventos, pensões e rendas (que representam moeda corrente, pecúnia) e os bens materiais que são adquiridos onerosamente, com esses proventos e rendas, por apenas um dos cônjuges e que, por tal motivo, têm a aparência de bens particulares.
Sendo repetitivo: proventos e rendas não têm a mesma natureza dos bens particulares a que os incisos I e II se referem.
Enquanto os proventos e rendas, de modo geral, se repetem de tempos em tempos, em um benefício continuado que é expresso em moeda corrente, o bem particular se define em um momento específico, determinando-se como tal por um único fato jurídico que pode perfeitamente ser definido por seu momento e forma de aquisição bem como pelo pagamento do preço ou valor, pela forma e momento da assunção do ônus ou encargos etc.
Na constância de casamento regido pela comunhão parcial de bens, em havendo a aquisição de bens por título oneroso, regra geral, haverá a comunicabilidade de sua propriedade, exceção feita, de forma pacífica e absoluta, apenas nas situações descritas no inciso II do artigo 1659. As exceções descritas nos incisos V, VI e VII do referido artigo, por outro lado, devem ser interpretadas com maior cuidado.
Na vigência do casamento, todos os valores recebidos por quaisquer dos cônjuges, a título de proventos de trabalho pessoal, pensões, meios-soldos e outras rendas semelhantes deverão ser aplicados no sustento da família e na educação dos filhos, conforme impõe a regra expressa do artigo 1568 do Código Civil e os princípios contidos nos artigos 1565 e 1511. Quando convertidos tais valores em bens materiais, necessariamente ocorrerá a comunicabilidade de sua propriedade.
Se, por outro lado, estes proventos e rendas forem ocultamente entesourados por qualquer um dos cônjuges, findo o casamento, sua partilha em meações seria de rigor e de justiça, no entanto, pleitear direito à essa meação pode representar maior dificuldade para o cônjuge preterido, que incontestavelmente foi vítima da falta de companheirismo e de quebra dos deveres conjugais impostos pelo Código Civil Brasileiro.
Exemplificando, para maior clareza e compreensão: se alguém casado em comunhão parcial de bens usa parte de seu salário para adquirir jóias de alto valor, em havendo a dissolução do casamento, tais bens deverão ser objeto de divisão, pois foram adquiridos a título oneroso na constância do casamento. Se, por outro lado, essa pessoa utilizar parte de seu salário para fazer aplicações financeiras em nome próprio, em havendo a dissolução do casamento, não existe claramente um fundamento legal para exigir a divisão igualitária desse patrimônio acumulado (embora exista farta doutrina e jurisprudência que defende a divisão igualitária); no caso, trata-se evidentemente apenas de proventos do trabalho pessoal daquele cônjuge e tais haveres estarão excluídos da comunhão por expressa determinação do inciso VI do artigo 1659 do Código Civil.
Nesse exemplo mesquinho, onde facilmente se vislumbra a desobediência ao preceito legal que determina para o casamento a comunhão plena de vida, resta para consolo do cônjuge preterido o fato de que, no falecimento do outro, na constância do casamento, será ele herdeiro em concorrência com outros eventuais herdeiros existentes, de tais bens particulares. É possível ainda, no caso de considerar-se tão mesquinha atitude como insuportável, pleitear a separação com fundamento na quebra dos deveres conjugais de companheirismo, solidariedade e assistência mútua e, em tese, é viável pleitear separação litigiosa imputando culpa ao cônjuge faltoso.
Se, diferentemente do exposto, fosse considerado possível que proventos do trabalho e outras rendas de um cônjuge, recebidos na constância do casamento, sejam passíveis de conversão e sub-rogação em bens particulares do cônjuge por eles beneficiado, estaria configurada, em grande parte dos casamentos existentes, a negação absoluta da comunhão de vida que deve existir entre os cônjuges, comunhão esta que, independentemente do regime de bens adotado, deve ser plena. Mais ainda, representaria grave ofensa ao dever de consórcio, companheirismo e responsabilidade que deve existir entre os membros da família (art. 1565 do Código Civil) podendo, eventualmente ainda, significar a negação da obrigação de concorrência para o sustento da família e a educação dos filhos (artigo 1568).
É PRECISO MUDAR A LEI ?
Já se criticou, não sem razão, o disposto em alguns incisos do artigo 1659 e pleiteou-se sua alteração. Contudo, apesar de sua plena vigência, prevalecendo o bom senso e a justiça, não se verificam maiores problemas causados por tal comando legal.
Sólida doutrina e jurisprudência, surgidas nas últimas décadas (a grande maioria na vigência do Código de 1916), principalmente para acompanhar a superação da discriminação e diminuição do papel da mulher na sociedade conjugal e ainda em obediência ao disposto na Lei Fundamental (Artigo 226, § 8º da Constituição Federal), visando garantir as relações familiares, preservando-a da violência e injustiça, sempre se impõem e, assim fundamentados, quando provocados, os juízes têm feito justiça e corrigido eventual abuso do direito do cônjuge mais favorecido em detrimento do cônjuge econômica ou moralmente menos favorecido.
Em uma quantidade muito significativa de casais, existem enorme diferenças entre os cônjuges e, em casais assim desequilibrados, é comum que a mulher ou o homem (em verdade, no mais das vezes, a mulher) por causa de diferenças de ordem econômica, desconhecimento da lei ou pura ignorância (ainda existem milhões de analfabetos em nosso país), encontra-se em posição de fragilidade e dependência em relação ao outro.
Existindo desigualdades, é papel do Estado prover o equilíbrio na relação. Nas novas gerações de direito esse princípio sempre é considerado; como paradigma cite-se o Código de Defesa do Consumidor, que sempre considera o consumidor a parte mais frágil da relação e que, por tal motivo, merece proteção especial.
Tratar de forma absolutamente igual aqueles que são essencialmente desiguais mostrou-se nas últimas décadas de nossa história um erro a ser evitado. Não por outro motivo editaram-se leis e estatutos que claramente determinam formas de tratamento desigual entre os desiguais, na medida de suas diferenças.
Sobre o tema, escreveu a desembargadora e vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Dra. Maria Berenice Dias, interessantíssimo artigo denominado “Regime de bens e algumas absurdas incomunicabilidades” (3).
Nesse artigo após discorrer sobre algumas formas de incomunicabilidade de bens que, embora previstas expressamente em texto de lei, mostram-se de aplicação absurda e francamente injustas, a renomada desembargadora conclui, em magistral arremate adiante reproduzido em sua íntegra: “Os juízes não são meros aplicadores da lei de maneira automática e impensada. Têm sempre de atentar para o efeito concreto que o julgado vai produzir. Uma decisão que não se afine com o princípio da igualdade, não encontre um meio de repelir o enriquecimento sem causa ou deixe de impedir o favorecimento indevido não pode ser chamada de sentença: ato emanado por quem tem o dever de adequar a norma legal ao primado da Justiça.”
A correta interpretação dos preceitos constitucionais somada aos princípios gerais que regem os diferentes regimes de bens, a interpretação dos dispositivos específicos sobre o tema aliada ao bom senso e a intervenção efetiva do poder judiciário parecem ser suficientes para dispensar a necessidade de alterações legislativas. Contudo, como outros aspectos igualmente tormentosos de alguns novos institutos do Direito de Família reclamam alterações, no bojo das discussões e deliberações que necessariamente deverão ocorrer, uma nova redação para o artigo 1659 do Código Civil pode mostrar-se uma boa opção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ATITUDE DO TABELIÃO DE NOTAS EM FACE DA LEI.
Respeitadas as opiniões divergentes, entende este autor que, mesmo diante da anuência do cônjuge prejudicado, não se deve lavrar escritura de aquisição em que se atribua propriedade exclusiva de bens imóveis para apenas um dos cônjuges sob a alegação da aquisição em sub-rogação dos proventos do trabalho pessoal desse cônjuge.
Embora seja inegável a existência de autonomia de vontade das partes, nesse caso, em nome da segurança jurídica, o ato deve ser negado. O tabelião, por dever de ofício, deve negar-se a lavrar tal escritura, fundamentando sua recusa na insegurança jurídica que esse título traz.
É oportuno repetir: a prevenção de litígios e a garantia da segurança jurídica são as principais virtudes da atividade notarial.
Se o tabelião, agente público atuando em nome do Estado, a pedido de pessoas motivadas por interesses outros que não a justiça, atua ao arrepio desses princípios norteadores de sua atividade e imprime sua fé pública em atos de legalidade duvidosa e passíveis de anulação, ele estará relegando a um plano inferior as maiores virtudes de seu ofício.
Realizado o ato notarial que indevidamente excluiu da comunhão o que deveria dela fazer parte, em havendo a dissolução do casamento, certamente haverá determinação judicial no sentido de prevalecer a regra geral da comunicabilidade de bens adquiridos onerosamente na vigência do casamento. Quaisquer declarações ou consentimento havidos, ainda que aparentemente livres de vício ou coação moral, não poderão prevalecer sobre a regra impositiva da lei e os princípios que regem o casamento e a família, instituição que, por sua relevância social, merece especial proteção do Estado (cf. art. 226 da Constituição Federal).
Como é dever profissional do tabelião orientar as partes, ele pode indicar aos eventuais interessados a solução judicial da alteração do regime de bens que rege seu casamento, conforme prevê, em grande novidade legislativa, o artigo 1.639 do Código Civil.
Somente com o devido processo legal e a alteração do regime de bens, para Separação Convencional, ou uma forma de regime híbrido, poder-se-á conceber a existência de patrimônio próprio, adquirido onerosamente na constância do casamento, ainda que exclusivamente com os frutos do trabalho individual de um dos cônjuges. Do contrário, estariam as partes fraudando os dispositivos legais, com o agravante de, obtida uma escritura pública e seu registro junto ao Oficial de Registro de Imóveis, adquirir a fraude perpetrada ares de legalidade, o que, entretanto, não poderá se sustentar diante da ação jurisdicional.
O tabelião, quando chamado a intervir na realização de escrituras de inventário, separação e partilha, atos que, por expressa determinação da Lei Processual (alterada pela Lei 11.441/2007) deverão contar com a participação e assistência de um advogado habilitado, corretamente indicará os bens objetos da comunicabilidade e aqueles particulares, sob pena de ferir a legítima ou a meação, atribuindo herança ou direito indevidamente a quem, de fato, não o possui. Ou ainda, com a realização de partilha discrepante do direito individual, fazer incidir Imposto de Transmissão onde ele, a rigor, não seria devido.
De tudo quanto foi exposto, conclui-se que a atuação do tabelião de notas, valorizada ainda mais pela recente lei 11.441/2007, fundamental para a prevenção de litígios e segurança jurídica, deve ser exercida com grande cautela, buscando evitar interpretações apressadas dos dispositivos legais, especialmente aqueles referentes à comunicabilidade dos bens nos diversos regimes de casamentos, mas principalmente no regime legal da comunhão parcial.
O tabelião, respeitando a vontade das partes, não deve se furtar a praticar os atos que lhe forem solicitados; trata-se de um direito de seus usuários, que inegavelmente podem e, em muitos casos, por força de lei são obrigados a tanto, exigir a intervenção do poder público para a formalização e a realização de seus negócio jurídicos; intervenção esta que, no caso dos serviços notariais, é delegada a um particular, profissional de direito, a quem é conferida a fé pública e a competência para sua realização. Contudo, em sua atuação, o tabelião deve interpretar a licitude das intenções declaradas pelos interessados e, caso estejam presentes elementos causadores de insegurança jurídica e potencial fonte de litígio, deve recusar-se a praticar atos passíveis de anulabilidade, pois a garantia de que sua atuação sempre favorecerá a prevenção de litígios e a realização da segurança jurídica não pode ser ignorada, ainda que a pedido motivado de seus usuários.
Se é fato que o tabelião não pode agir como juiz, é igualmente correto que ele não pode agir com irresponsabilidade tal a ponto de utilizar sua fé pública para praticar atos que, para ter eficácia e validade plena, dependam necessariamente de sentença judicial ou de uma distante e incerta decadência do direito solenemente ignorado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
(1) LEAL, Jose Hildor. Anulabilidade e validade de alienação sem anuência conjugal e venda de ascendente a descendente. Revista de Direito Imobiliário, n. 60. São Paulo: RT, 2006, p.144
(2) PASSARELLI, Luciano Lopes. Alteração do regime de bens e o registro de imóveis. www.irib.org.br/notas_noti/boletimel2879.asp IRIB - Boletim Eletrônico n° 2879. Acesso em 26 de abril de 2007
(3) DIAS, Maria Berenice. Regime de bens e algumas absurdas incomunicabilidades . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1100, 6 jul. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/8603>. Acesso em: 26 abr. 2007.