Resumo: Buscou-se pelo presente trabalho analisar o tema da comunicabilidade entre os cônjuges dos bens adquiridos onerosamente na vigência do casamento regido pelas normas legais da comunhão parcial de bens. O objetivo desta obra limita-se a realizar um alerta aos tabeliães de notas e seus prepostos e, indiretamente, aos oficiais registradores, advogados e operadores de direito em geral, de que é necessário um cuidado maior na interpretação de alguns dispositivos presentes no novo Código Civil, especialmente quando se pretenda relacionar o disposto no inciso II com o disposto no inciso VI do artigo 1659 do Código Civil Brasileiro. Como o assunto, que inegavelmente tem fundamental importância no momento da aquisição ou alienação de bens móveis e imóveis por pessoas casadas, adquire ainda maior relevância no momento da separação do casal, seja por disposição voluntária ou causa mortis, a novidade representada pela Lei n° 11.441, de 04 de janeiro de 2007, que possibilitou a realização de escrituras de separação, divórcio e partilha por escritura pública, também foi levada em consideração no presente trabalho.
INTRODUÇÃO
O tema da comunicabilidade de bens nos diversos regimes de casamento é de grande interesse e tem sido objeto de inúmeros e valiosos trabalhos doutrinários elaborados por juristas de reconhecida capacidade e competência. Em comparação com tais obras, esta pequena monografia, redigida por um tabelião de notas, ainda iniciante na função, para participação no I Concurso Nacional de Monografias sobre Direito Notarial, promovido paralelamente ao 14° Congresso Notarial Brasileiro, mostra indisfarçavelmente sua limitação; contudo sempre será possível, com uma pequena dose de generosidade, característica dos verdadeiros sábios, extrair de qualquer obra do pensamento humano, ainda que limitada, algum valor e proveito. Se esse ideal, de algum modo, realizar-se, este autor estará devidamente recompensado.
Buscou-se pelo, presente trabalho, analisar o tema da comunicabilidade de bens entre cônjuges adquiridos onerosamente na vigência do casamento regido pelas normas legais da comunhão parcial de bens e, como não se pretendeu, em momento algum, esgotar o tema, ignorou-se a ocorrência do fato nos demais regimes de casamento regulados pela atual legislação civil brasileira.
O objetivo é alertar os tabeliães de notas e seus prepostos de que é necessário tomar um cuidado maior quando se buscar, na atividade prática do tabelionato, a interpretação de alguns dispositivos presentes no novo Código Civil que regulam a questão da comunicabilidade de bens entre os cônjuges casados sob o regime da comunhão parcial de bens. Especialmente preocupante é a correta interpretação da possibilidade de relacionar-se o disposto nos incisos II e VI do artigo 1659 do Código Civil Brasileiro.
O assunto, que inegavelmente tem fundamental importância no momento da aquisição ou alienação de bens móveis e imóveis por pessoas casadas, adquire ainda maior relevância no momento da separação do casal, seja por disposição voluntária ou causa mortis.
A grande novidade surgida na prática notarial nesse início do ano de 2007 com a entrada em vigor da Lei n°11.441, de 04 de janeiro de 2007, que inegavelmente representa uma revolução na atividade dos tabelionatos, foi levada em consideração no presente trabalho. O tema proposto indubitavelmente tangencia a novidade legal, pois é justamente no momento do término do casamento que a questão da comunicabilidade dos bens será considerada em toda sua plenitude. No momento de formalizar o término do casamento por vontade das partes, quando da separação ou do divórcio, ou pela ocorrência da morte de um dos cônjuges, quando se realiza a partilha dos bens, a correta determinação dos bens particulares do falecido, dos comuns ao casal e dos particulares do sobrevivente será fundamental.
A possibilidade de se realizar, por escritura pública, separações, divórcios e partilhas consensuais entre herdeiros maiores e capazes certamente irá resultar em grande benefício para a sociedade como um todo e para o poder judiciário em especial. Por outro lado essa nova competência conferida pela lei aumenta consideravelmente a responsabilidade profissional e social do tabelião de notas, esse operador de direito dotado de fé pública e investido por delegação em um serviço público essencialmente voltado à segurança jurídica e à prevenção de litígios.
Neste momento importante para a história do notariado brasileiro, quando a novidade representada pelas escrituras públicas de separação, divórcio e partilha é apresentada para a sociedade, a responsabilidade da atual geração de tabeliães está aumentada. Cabe a esses pioneiros o reconhecimento das futuras gerações; depende basicamente desta geração a consolidação dessa novidade.
Este singelo trabalho teve como primeira motivação um debate realizado em um fórum eletrônico de discussões mantido na rede mundial de computadores, um grupo fechado onde é aceita apenas a participação de notários, registradores, seus prepostos e pessoas com alguma ligação direta com a atividade notarial e registral.
Em tal debate, defendeu-se a possibilidade de lavrar-se em tabelionato escritura de aquisição de bens imóveis que, apesar de adquiridos na constância do casamento regido pela comunhão parcial de bens, a título oneroso, seriam considerados patrimônio próprio de apenas um dos cônjuges e, por conseqüência, excluídos da comunhão do casal, na medida em que teriam sido adquiridos em sub-rogação dos proventos do trabalho pessoal de um único cônjuge e que tal escritura, para sua validade, dependeria apenas da anuência do outro cônjuge, considerado não adquirente do imóvel.
Ali defendeu-se a conjugação do disposto nos incisos VI e II do artigo 1659 do Código Civil Brasileiro, o que este trabalho busca refutar.
Em um momento posterior, já tomado por uma inquietação mental gerada naquele referido debate, novo e decisivo incentivo para sua realização me foi dado pela leitura de interessante artigo, de autoria do conceituado tabelião gaúcho José Hildor Leal (1), defendendo a tese de que seria possível ao tabelião lavrar atos notariais passíveis de anulabilidade quando os interessados, devidamente cientificados do fato, insistam na realização do mesmo e quando a causa de anulabilidade do ato não seja de interesse da sociedade, mas apenas de um particular que, para pleitear sua anulabilidade, deverá necessariamente fazer prova do prejuízo sofrido. Tais atos notariais, segundo o estudioso tabelião da cidade de Canela – RS, ainda que passíveis de anulação, por conterem todos os requisitos de validade dos atos jurídicos, teriam sua causa de anulação restrita exclusivamente ao interesse de pessoas eventual e diretamente prejudicadas por eles e que a causa de sua anulação somente poderia ser reconhecida após iniciativa dos próprios prejudicados, vedada a iniciativa de representante do Ministério Público, ou declaração de ofício pelo juiz, condicionada, entretanto, à realização de prova do prejuízo sofrido.
O REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS
O Regime da Comunhão Parcial de Bens, como é de conhecimento geral, vigora em todos os casamentos onde não exista convenção (ou quando ela seja nula ou ineficaz); trata-se do Regime Legal, o mais comum, aceito e compreendido por todos.
Entretanto a questão da comunicabilidade dos bens móveis e imóveis que se realiza através do casamento e durante sua vigência é algo mais complexo do que, à primeira vista, pode parecer. Existem algumas regras e exceções que demandam para sua perfeita compreensão algum estudo da matéria e aprofundamento no tema.
A delimitação do alcance, exceções e limites da comunicabilidade dos bens constituem um tema de alta relevância, que mostra toda sua importância no momento da dissolução do vínculo conjugal. Não se deve ignorar o fato de que a dissolução do casamento é certa e necessariamente haverá de ocorrer por ocasião do falecimento de um dos cônjuges ou, ainda antes disso, se houver separação voluntária, amigável ou litigiosa.
NOVIDADES LEGISLATIVAS E INTERPRETAÇÕES
Com o novo Código Civil Brasileiro, o cônjuge foi elevado à categoria de herdeiro necessário e haverá de participar, na forma da lei, da herança dos bens particulares deixados pelo falecido. Por isso a correta identificação dos bens particulares de cada cônjuge (bens que estão excluídos da meação) é muito importante e de grande interesse.
A recente alteração promovida no Código de Processo Civil pela Lei 11.441, de 04 de janeiro de 2007, que possibilitou a realização de partilhas, inventários e separações por meio de escritura pública dispensando a homologação judicial, quando forem as partes maiores e capazes e houver acordo entre elas, transformou a questão da comunicabilidade dos bens, já considerada na formalização das escrituras de pacto antenupcial, ainda mais importante para a atividade do tabelião de notas.
A definição da qualidade de particular de um bem de raiz torna-se ainda mais importante quando se aceita a inovadora tese de que a alienação de bens particulares de um cônjuge, sem a anuência do outro, não proprietário, mas que deveria comparecer no ato de alienação para dar seu consentimento, poderia ser realizada, caso em que o adquirente assumiria o risco da anulabilidade do ato.
Aceita essa tese e considerando-se um bem como excluído da comunhão, portanto particular de um só cônjuge, um tabelião, a pedido do interessado e com as devidas cautelas, poderia lavrar um ato notarial com a dispensa da outorga uxória por julgar que a ausência desse consentimento somente poderia gerar prejuízo pessoal para o cônjuge eventualmente prejudicado e que o título seria apenas anulável e com possibilidade de anulação restrita à iniciativa daquele cônjuge ausente.
A defesa desse proceder repousa solidamente no argumento de que o ato praticado seria apenas anulável e não nulo de pleno direito e ainda que sua anulabilidade se dará apenas por iniciativa e após prova de prejuízo sofrido pelo cônjuge preterido no ato.
Entretanto, se diversamente do que o tabelião e as partes imaginaram ser a correta interpretação da ausência de comunicabilidade do bem, o imóvel objeto dessa cogitada escritura de alienação, por força de interpretação diversa da lei, for considerado aquesto comum adquirido onerosamente na vigência do casamento e, por diversa interpretação da comunicabilidade de sua propriedade, for integrado ao patrimônio comum do casal, aquela venda realizada sem outorga marital ou uxória, que até então seria considerada título anulável apenas por interesse e iniciativa particular, se transforma em título nulo (pois a ele o cônjuge e proprietário comum não compareceu) e, como tal, por ferir a ordem pública cogente, passível de ter sua nulidade provocada por terceiros ou pelo Ministério Público
A VOZ DO POVO, A LEI E A BOLA DA VEZ
Em razão de grande interesse que desperta e de sua influência direta na vida de todos, mesmo pessoas simples do povo, com baixo grau de instrução e escolaridade, se questionadas sobre o que deve ser dividido por um casal que se separa certamente responderão: tudo o que foi comprado durante o casamento deverá ser dividido entre o marido e a mulher.
Na essência, essa singela resposta está correta, mas, como existem exceções à regra geral, a questão da comunicabilidade de bens no regime de casamento mais comum que existe, o regime legal, o da comunhão parcial de bens, a resposta, para ser correta, não pode ser tão simples assim.
No regime da comunhão parcial de bens, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes (transcrição literal do artigo 1658 do Código Civil, com o grifo deste autor).
Exceções necessariamente devem existir; o simples uso do bom senso leva até elas. Questionado qualquer cidadão semi-alfabetizado certamente saberia identificar sua necessidade.
Se durante o casamento adquiriu-se um bem por herança, o outro cônjuge também teria direito à metade dele?
Se o bem foi integralmente pago por apenas um dos cônjuges, com o valor recebido pela venda de um bem que era só dele desde antes de se casar, também seria de rigor a divisão?
Casando com alguém que possuía muitas dívidas quando solteiro o outro cônjuge também se responsabilizaria pela quitação destas dívidas mesmo após o término do casamento?
E se, em vez de dívidas, existirem obrigações de indenizar terceiros, resultantes de ato ilícito praticado exclusivamente por um dos cônjuges, o outro também seria responsável pelo cumprimento solidário de tais obrigações?
A essas quatro questões formuladas, o bom senso e a noção de justiça respondem negativamente; confirmando-se, portanto, a necessidade e acerto das exceções à regra geral da comunicabilidade. De fato, o Código Civil determina expressamente, nos incisos I, II, III e IV do artigo 1659, acerca da incomunicabilidade de bens, direitos e obrigações em todas as questões acima suscitadas.
Muito acertadamente, o legislador assim dispôs, contudo a isso não se limitou; indo além, acrescentou ao referido artigo mais três incisos e, portanto, no regime da comunhão parcial de bens, são também excluídos da comunhão: os bens de uso pessoal, os livros e instrumento de profissão; (inciso V) os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge” (inciso VI) e ainda “as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes” (inciso VII).
Com tais acréscimos, surgiram algumas dificuldades para o correto entendimento, interpretação e determinação precisa do que não se inclui na comunhão e que, por tal motivo, são considerados bens particulares de apenas um dos cônjuges e na eventualidade da separação do casal não deverão ser objeto de partilha.
A aplicação dessas novidades demanda um novo entendimento a ser sedimentado pela doutrina e pela jurisprudência. O pouco tempo de sua vigência e o pequeno volume de teorias apresentadas até o presente momento permitem concluir que quaisquer estudos ou reflexões feitas sobre o tema poderão representar efetivo auxílio para o operador do direito tirar suas conclusões e pautar sua atuação, especialmente o tabelião de notas, quando atuar orientando os interessados no momento da realização de escritura de pacto antenupcial, alienações, separações, inventários e partilhas.
O PARADOXO
Considerando-se os dispositivos dos incisos VI e II do artigo 1659 do Código Civil, é possível defender a seguinte tese: se os proventos do trabalho pessoal de um dos cônjuges lhe pertencem com exclusividade e se, exclusivamente com tais proventos, um dos cônjuges adquire bens de elevado valor, em conseqüência de sub-rogação (renda pessoal convertida em bens patrimoniais), tais bens, ainda que adquiridos onerosamente na constância do casamento, pertencem com exclusividade a esse cônjuge, devendo ser considerados bens particulares e excluídos da comunhão do casal.
Este silogismo, aparentemente irrefutável, se opõe frontalmente ao dispositivo do inciso I do artigo 1660, na medida em que este expressamente determina que entram na comunhão “os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges” e nesse passo identifica-se um paradoxo.
Se todo bem adquirido a título oneroso na vigência do casamento regido pelo regime da comunhão parcial de bens entra na comunhão. Se bens que constam pertencer com exclusividade a um só cônjuge foram efetivamente adquiridos a título oneroso na vigência do casamento. Logo, tais bens entram na comunhão e, por conseqüência, são de propriedade comum, apesar de constarem pertencer com exclusividade a um só cônjuge.
O conflito de regras é evidente, mas, em defesa da incomunicabilidade dos bens é possível argumentar, e muitos assim o farão, que se trata tão-somente de um caso de exceção que o legislador, bem ou mal, optou por fazer.
Deveras, somente faz sentido a existência de exceção à regra quando tal dispositivo, excepcionando-a, termina por confirmá-la, ou, expresso de outra forma: se uma exceção aniquila integralmente uma regra, na verdade, trata-se de nova regra e não exceção a ela.
O anteriormente citado artigo 1659 torna explícitas as exceções à regra da comunhão parcial de bens. Os incisos de I a IV, repetindo dispositivos do código anterior (artigos 269 e 270) e explicitando situações de exclusão da comunicabilidade onde a necessidade da mesma se mostra clara e evidente, conforme já referido anteriormente, termina por confirmar a regra geral da comunicabilidade. Mas, por outro lado, o determinado pelos incisos V, VI e VII, novidade do novo Código Civil, em verdade cria uma situação nova e em franca oposição à regra geral, que determina a comunicabilidade daquilo que se adquire onerosamente na constância do casamento.
Na constância do casamento regido pela Comunhão Parcial de Bens (o regime legal e o mais comum que existe, repita-se), combinando-se os dispositivos expressos nos incisos II e VI do artigo 1659, sem uma correta interpretação de seus limites e alcance das exceções à comunicabilidade dos bens, o aplicador do direito termina por ignorar a essência, o princípio e fundamento, a razão de ser do regime da comunhão parcial de bens.
No regime da comunhão parcial de bens, entram na comunhão todos os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges (artigo 1660, I). Trata-se de um preceito fundamental, principiológico; ignorá-lo significa descaracterizar o próprio regime, negar sua essência e base fundamental.
Admitir-se a comunicabilidade apenas daqueles bens adquiridos onerosamente em que ambos os cônjuges figurem como proprietários (negando-a para os demais que possuam a aparência particulares) significaria a descaracterização do regime da comunhão parcial de bens e sua transformação em uma espécie de Separação Voluntária de Bens, situação em que prevaleceria unicamente a vontade dos cônjuges e estaria, portanto, afastada qualquer intervenção estatal em defesa da parte menos favorecida e da harmonia familiar.
É fato que, considerando-se isoladamente o disposto textualmente no inciso VI do artigo 1659 (excluem-se da comunhão: .... os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge), um cônjuge, ao adquirir bens exclusivamente com proventos de seu trabalho pessoal, pode vir a considerar-se detentor de sua propriedade exclusiva e, com base em tal interpretação, negar aquela regra impositiva e essencial que determina existir a comunicabilidade de bens adquiridos onerosamente na constância do casamento e esse é um paradoxo a ser superado pela atuação jurisprudencial e pela atividade doutrinária, embora seja desejável alguma alteração legislativa.