PROTEÇÃO DA FAMÍLIA, DEVER DO ESTADO
A intervenção estatal na família é uma necessidade. Essa intervenção é defendida por majoritária doutrina, embora existam atualmente correntes apregoando a dispensabilidade desta intervenção nas questões meramente patrimoniais.
Pensadores existem que defendem a incondicional liberdade dos cônjuges decidirem sobre seus bens e patrimônio. Essa discussão, por evidente, não tem lugar neste pequeno trabalho, mas em defesa da necessidade da intervenção do Estado nas relações familiares, não é supérfluo repetir que a Constituição Federal ocupou-se da família e determinou que sua proteção é uma obrigação estatal (Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado) e ainda dispôs expressamente que devem ser criados mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações (art. 226, § 8º).
É indiscutível a possibilidade de existir no seio familiar o abuso de poder econômico de um cônjuge sobre o outro; é igualmente possível existir elevada desigualdade cultural entre o homem e a mulher e não é rara a ocorrência da imposição do interesse particular e da vontade do cônjuge mais favorecido sobre o outro em posição de inferioridade. Isso, certamente, é uma forma de violência no âmbito familiar.
Segundo a Lei Maior, a família é credora de uma especial proteção do Estado e tal proteção somente pode ser exercida pelo uso dos mecanismos legais existentes à disposição do ente público. Para evitar a violência no seio familiar o Estado-Juiz dispõe de um sofisticado arcabouço jurídico; esse complexo sistema, valorizando a instituição familiar e o interesse público, termina por estabelecer limites à livre atuação do indivíduo, privando-o de parte de sua liberdade em benefício de um interesse maior, o da coletividade.
A limitação da liberdade individual, no caso de se buscar a proteção da entidade familiar, é uma necessidade que se encontra legitimada no próprio fundamento da sociedade política; trata-se de uma limitação legítima e necessária que, entretanto, não é pacificamente aceita pelos defensores incondicionais e ideológicos das liberdades individuais.
A JUSTIÇA JUSTA
O dilema da comunicabilidade da propriedade dos bens adquiridos na constância do casamento por apenas um dos cônjuges e que possuem aparência de bens particulares, mas que efetivamente não o são, tem sido enfrentado e superado por decisões judiciais quando diante de conflito, que, em geral, somente ocorre quando se opta pela separação e dissolução do vínculo conjugal e, na ausência de consenso (e de bom senso), as partes buscam o socorro da Justiça.
Exemplos evidentes e muito comuns desta situação são os veículos automotores. De fato, no Cadastro Nacional de Veículos Automotores (RENAVAM) é raro constar explicitamente a comunhão entre marido e mulher na propriedade de um veículo; geralmente ali consta como proprietário apenas o nome de um dos cônjuges e, no entanto, não se tem notícia de maiores questionamentos acerca da propriedade comum do mesmo.
Nos inventários, partilhas e separações esse tipo de bem, geralmente de alto valor em proporção ao patrimônio do casal ou do autor da herança, sempre é considerado comum e partilhado, reconhecendo-se a meação de sua propriedade, independentemente do que constar no cadastro nacional de veículos - RENAVAM.
Trata-se de uma solução que, além de obrigatória à luz dos princípios que norteiam o Direito de Família, encontra-se em perfeita sintonia com majoritária doutrina e jurisprudência.
Tal interpretação representa justiça e coerência com o disposto no primeiro e fundamental artigo que inaugura o Livro IV, do Direito de Família do Código Civil Brasileiro: o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres do cônjuges (Artigo 1511).
Muito embora possa acontecer, e não raro acontece mesmo, de apenas um dos cônjuges exercer profissão remunerada, evidentemente garantindo-lhe o pleno direito ao uso e gozo dos proventos que venha a auferir com seu trabalho, ao responsabilizar-se solidariamente por uma família e manter-se casado, deverá esse indivíduo, necessariamente e por força dessa comunhão plena de vida, ceder parte desse direito em favor de seu consorte no casamento.
COMUNHÃO DE VIDAS ?
Os termos eleitos pelo legislador, no referido artigo 1511 do Código Civil, para definir o papel do casamento no direito de família e indicar a maneira como ele deve ser vivenciado, têm elevada beleza poética, mas pode ser criticado por falta de objetividade jurídica; afinal o significado e alcance da expressão comunhão plena de vida não é de fácil compreensão e de muito difícil aplicação impositiva pelo Estado-Juiz
Em termos de ciência biológica - e vida é fenômeno essencialmente biológico -, aparentemente, comunhão de vidas é uma impossibilidade.
No irracional mundo dos animais, o que existe entre os seres da mesma espécie é uma relação de cooperação para a obtenção de alguns resultados desejáveis, ou ainda, como de ocorrência muito freqüente, uma relação de disputa onde o mais apto se impõe, dominando o mais fraco ou menos capaz.
Os seres vivos, em geral, buscam vantagens para si e apenas por tal motivação, visando evidentemente reforçar sua individualidade e a possibilidade de transmissão de seus genes para seus descendentes, atuam em comunidade, simbiose e colaboração.
Comunhão pode se definir como a união de diferenças que resulta dialeticamente em um novo ser; síntese daquela união, representando, mais do que a simples soma de dois seres distintos, um novo ser, uma nova identidade. O comungar de seres individuais, ou seja, a união de dois seres diferentes que, em uma união profunda e envolvente, gera uma realidade nova e diferente da simples soma da atuação de seres distintos é fenômeno evidentemente raro.
De fato, esta bela concepção – comunhão de vidas - é inexistente na natureza e apenas na medida em que a mente racional de um ser evoluído, transcendendo o natural, material e concreto, concebe uma relação ideal entre seres igualmente racionais, ela pode ser definida.
É possível, desse modo, vislumbrar na união de duas pessoas um liame sentimental, afetivo, que se orienta para uma participação comum em crenças, interesses, idéias e objetivos; desse modo faz sentido considerar a existência de uma possível comunhão entre vidas essencialmente distintas e diferentes, inclusive e necessariamente (segundo disposto em Lei) entre indivíduos de sexos opostos.
De fato, o Código Civil Português, em seu artigo 1577, ao definir casamento, igualmente utiliza a expressão “comunhão de vida”: ... contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida nos termos das disposições deste Código.
Mas, regra geral, a lei não contém palavras inúteis e se ela determina, como princípio, que no casamento deva existir uma comunhão plena de vida entre os cônjuges, é dever do aplicador do direito definir o significado e a forma de aplicação prática dessa disposição. E assim se tem feito. Independentemente de maior precisão semântica, o sentido desse comando foi apreendido e vem sendo respeitado pelos aplicadores do direito.
Ainda sobre o referido artigo 1511, é oportuno ressalvar que o mesmo representa, segundo Luciano Lopes Passarelli, respeitado registrador de imóveis em Batatais – SP (2), exemplo de cláusula aberta, técnica legislativa de uso comum no novo Código Civil Brasileiro.
Passarelli, em palestra proferida no VIII Seminário de Direito Notarial e Registral de São Paulo, realizado no dia 20 de janeiro de 2007, em São José do Rio Preto, cujo inteiro teor encontra-se reproduzido em http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel2859.asp afirma: “Parece-me, portanto, que o artigo 1511 é uma das famosas cláusulas abertas do Código Civil. Segundo Miguel Reale, essas cláusulas abertas constituem uma técnica de redação de preceitos legais por meio de formas vagas, formas multisignificativas, polissêmicas, que abrangem uma variada gama de hipóteses em contraposição ao método casuístico. Ou seja, é uma técnica de redação da lei que permite ao juiz manter continuamente atualizada a aplicação do preceito jurídico, em contraposição ao método casuístico, que amarra a aplicação da lei...”
Prossegue ainda o ilustre registrador: “O artigo 1511 do Código Civil, consagrou o elemento pessoal-afetivo como um valor maior a informar as regras na família, deixando para segundo plano a questão patrimonial, caso haja confronto entre os valores. Devemos entender que o constituinte orientou a solução dos problemas de família dando a eles uma ênfase muito maior do ponto de vista afetivo, ou seja, prevalecem os valores afetivos sobre os valores patrimoniais.”
De fato, em defesa dessas cláusulas abertas, pode-se afirmar que elas permitem maior liberdade para o juiz solucionar os casos concretos que lhe são apresentados. Tais cláusulas, por conterem apenas princípios fundamentais, representam uma normativa mais moderna e, teoricamente, estariam mais aptas para adaptar-se às contínuas mudanças da sociedade.
Em contraposição, é forçoso convir que, se as cláusulas abertas insertas na lei dão ao Estado-juiz alargada margem de interpretação, o mesmo ocorre com os operadores de direito em geral e aos interessados em particular.
Ao fazer uma interpretação de disposições menos precisas e com significados plurais, diferentemente do juiz, que, por dever de ofício, sempre será imparcial e promotor do justo, o interessado (ou seu defensor), poderá ser tentado a fazer uma interpretação tendenciosa, viciada ou equivocada dos dispositivos da lei.
Frente a uma cláusula aberta, não seria impossível ao intérprete ampliar indevidamente aquilo que, por justiça, deveria ser restringido ou, diversamente, restringir o que deveria ser ampliado.
Entretanto, exatamente pela existência de tal característica, ou seja, admitida a negação de uma dogmática inflexível e cega às vicissitudes humanas, é possível encontrar solução para o paradoxo e a contradição indicada.
OS PRINCÍPIOS E O PRINCIPAL
Quando o legislador determinou que, no casamento, entre o entre o homem e a mulher existirá uma comunhão de vidas, ele está a expressar um princípio que deve ser interpretado em consonância com o disposto no artigo 1565 (Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos de família).
Diferentemente da bela figura de linguagem utilizada no artigo 1511, esse dispositivo conta com precisão maior em sua redação. Por tal comando imperativo, expressamente se exige de ambos os cônjuges o consórcio efetivo, companheirismo e responsabilidade conjunta por todos os encargos e pela direção da família.
Igualmente esclarecedor, o artigo 1569 dispõe: Os cônjuges são obrigados a concorrer, na proporção de seus bens e dos rendimentos do trabalho, para o sustento da família e a educação dos filhos, qualquer que seja o regime patrimonial. Tal disposição, de clareza solar, confirma o fato de que os rendimentos do trabalho individual de um cônjuge, assim como os frutos de seus bens particulares, apesar de pertencerem com exclusividade a seu titular, deverão obrigatória e proporcionalmente ser aplicados no sustento da família, suprindo todas as necessidades familiares básicas, inclusive com menção expressa à garantia da educação dos filhos.
Existindo vultosa desigualdade entre rendimentos do trabalho pessoal de cada cônjuge, conclui-se que aquele mais privilegiado haverá de contribuir em proporção maior para o sustento da família e, portanto, na medida de sua desigualdade contribuirá desigualmente para a manutenção familiar. Nessa contribuição desigual, incluem-se também contribuições maiores para a formação das reservas financeiras garantidoras de quaisquer eventuais dificuldades futuras; reservas estas que, em última análise, correspondem ao patrimônio do casal.
Da obrigatoriedade imposta aos cônjuges pelo referido artigo 1569, é possível concluir que parte significativa do patrimônio adquirido com o rendimento do trabalho de cada cônjuge, na constância do casamento, estará afetado ao sustento da família; sendo concebível sua desafetação apenas após o cumprimento adequado daquela obrigação.
Esses são fortes argumentos, igualmente disposições textuais da nova lei civil, a serem invocados para rechaçar aquela conclusão inicial de que não haverá comunicabilidade dos bens que forem adquiridos em sub-rogação aos proventos do trabalho pessoal de um determinado cônjuge.
A restrição do alcance do disposto no inciso II do artigo 1659 é de coerência e rigor; uma alargada interpretação de seu alcance, que excluiria da comunhão os bens adquiridos em sub-rogação dos proventos do trabalho pessoal de um dos cônjuges, no entender deste autor, seria equivocada, injusta e contrária a outros comandos da lei.
Os dispositivos dos incisos VI e VII do artigo 1659, por representarem claramente uma exceção à regra da comunicabilidade dos bens, devem ser aplicados restritivamente, não sendo cabível qualquer extensão ou ampliação de seu alcance. A regra geral de interpretação legal assim afirma. Contudo, diante do conflito existente entre essas exceções e os princípios fundamentais que regem a matéria, mais do que restringir seu alcance ao texto exato daquele dispositivo excepcional, necessário será interpretá-la sob a ótica dos princípios e da justiça e somente aplicar tal exceção em casos especialíssimos em que ela se mostre realmente justa e necessária, a exclusivo critério do Estado-Juiz e jamais com a interpretação e aplicação automática por parte dos envolvidos e interessados no assunto.