Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Legitimação individual no processo coletivo

Exibindo página 4 de 6
Agenda 04/06/2013 às 10:01

4. LEGITIMAÇÃO PARA A EXECUÇÃO NO PROCESSO COLETIVO

A execução no processo coletivo possui particularidades naturais nesse sistema de tutelas a direitos supraindividuais. Duas situações distintas se apresentam: a execução na ação civil pública que tem natureza de demanda plenária, ou seja, não há necessidade de nova ação para a execução que se processa na mesma relação processual de conhecimento, em fase de cumprimento de sentença assim como no processo sincrético individual e a execução nas ações coletivas previstas no Código de Defesa do Consumidor para a tutela de direitos individuais homogêneos.

 No caso da ação civil pública a própria natureza do direito material nela veiculado (difusos e coletivos) reclama a manutenção do instituto da legitimação processual verificada na fase de conhecimento. Com efeito, os mesmos entes legitimados para a fase de conhecimento o serão para o cumprimento da sentença, notando-se uma particularidade: Se o substituto processual não promover o cumprimento da sentença no prazo de sessenta dias ou, se ocorrer abandono da causa ou desistência por parte de associação legitimada na fase de conhecimento, o Ministério Público assumirá a legitimação e promoverá a execução (Lei nº. 7.347/85 – art. 15).

Por outro lado, em face da natureza transindividual do direito tutelado por meio da ação civil pública, no caso de condenação em dinheiro o produto da execução reverterá em favor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos contemplado na Lei nº. 9.008/95.

 Com relação às ações coletivas consumeristas para a tutela de direitos individuais homogêneos, a situação é diversa, já que a demanda não é plenária e a sentença é genérica requerendo nova relação processual para a liquidação da sentença condenatória, o que se faz por meio da ação de cumprimento regida pelas disposições relativas a liquidação por artigos  prevista no Código de Processo Civil (arts. 475-A-H).

É o que afirma TEORI ALBINO ZAVASCKI:

[...] procedente o pedido na ação coletiva, ‘a liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados de que trata o art. 82’, diz a Lei 8.078/90, em seu art. 97. Define-se, assim, que o cumprimento da sentença genérica será promovido mediante nova demanda, dividida em duas fases distintas: a da “liquidação”, destinada a complementar a atividade cognitiva (até então restrita ao núcleo de homogeneidade dos direitos demandados), e a da “execução”, em que serão promovidas as atividades práticas destinadas a satisfazer, efetivamente, o direito lesado, mediante a entrega da prestação devida ao seu titular (ou, se for o caso, aos seus sucessores).[41]

A legitimação para a liquidação e a execução nas ações coletivas segundo a disciplina do Código de Defesa do Consumidor é ampliada para se admitir o individuo que é vitima e titular do direito material envolvido. Em face da nova relação processual na fase de liquidação, o individuo passa a ter legitimidade também para a tutela executiva. Desta forma a sentença da fase de liquidação complementa aquela proferida na fase de conhecimento, agora delimitando subjetivamente a condenação de modo a permitir a execução.

Como já afirmado alhures, a partir da fase de liquidação é preciso ter a manifestação do titular do direito material. Nesta fase, diferentemente do que ocorre na fase de conhecimento, não haverá mais legitimação por substituição processual e sim mediante representação, uma vez que “não pode haver execução senão em benefício individual de cada credor, cuja situação particular deverá, conseqüentemente, ser discriminada e examinada [...]”[42]

Diferentemente ocorre com a liquidação e execução dos resíduos previstos no artigo 100 do Código de Defesa do Consumidor, porquanto nesta hipótese, a legitimação ocorre segundo o fenômeno da substituição processual, já que os recursos serão destinados a um fundo comum.

É de ser dito que a execução se processa segundo as regras previstas no Código de Processo Civil e de acordo com as providencias adequadas à satisfação do direito. Desta forma, se há condenação em obrigação de fazer ou não fazer, ou para entrega de coisa, incidem as regras do artigo 461 do CPC para a tutela especifica da obrigação; Se a condenação for de pagamento de quantia em dinheiro, a execução se processará segundo as regras da execução por quantia certa contra devedor solvente.


5. LEGITIMAÇÃO INDIVIDUAL NAS AÇÕES COLETIVAS

A legitimação ativa no processo coletivo tem suscitado ultimamente enorme interesse da doutrina processualista. VICENTE DE PAULA MACIEL afirma que essa questão fora abordada na Itália na década de sessenta do século passado, mas o debate perdeu rapidamente o interesse em face da opção restritiva de legitimação processual coletiva inspirado nos postulados do processo individual.

Com o surgimento da necessidade de tutelar interesses cada vez mais difusos em face da sociedade de massa e, sobretudo, com a democratização e o acesso à justiça como preocupação central da sociedade, o tema voltou a ser debatido e encontrou ressonância na doutrina nacional com vozes autorizadas defendendo sua revisão de modo ampliativo.

Justificar a limitação da legitimação individual no ambiente do processo coletivo com fundamento na aplicação dos institutos de direito processual individual não parece ser o melhor caminho para aqueles que advogam essa tese, vez que a idéia de titularidade do direito material como principal liame jurídico que autoriza a busca da tutela jurisdicional assim como preconizado pelo artigo 6º do Código de Processo Civil, funciona, na verdade, como argumento favorável a legitimar a participação individual nas demandas coletivas.

Isto porque o direito difuso ou coletivo pertence antes ao individuo e o que o torna supra-individual não é a impossibilidade de ser apropriado individualmente, mas sua dimensão supraindividual que não pode ser limitada a um único sujeito. Por isso é indivisível no sentido de que pertence a mais de uma pessoa, ou seja, a um grupo indeterminado, embora possa ser usufruído individualmente e daí logicamente sua tutela pode ser pleiteada individualmente já que o interesse individual neste caso é juridicamente tutelado. Ninguém negará que o individuo pode buscar a tutela jurisdicional para fazer cessar atividade nociva ao meio ambiente provocado por uma fábrica situada na vizinhança.

Ora, se isso pode ocorrer, fica evidenciado que o individuo tem legitimidade processual para a busca da tutela porquanto seu interesse individual em proteger o meio ambiente é juridicamente tutelado. Ocorre que, se a pretensão é atendida, ou seja, se a fábrica é obrigada a cessar a poluição ao meio ambiente, certo é que todos os vizinhos serão beneficiados por esta decisão, o que revela a dimensão coletiva do direito em questão. O fato da provocação da jurisdição ter ocorrido por um único individuo não transmuda a natureza do direito difuso e já que o resultado do processo é a tutela coletiva, é nada mais óbvio do que concluir que ele, individuo, poderia estar legitimado ao processo coletivo já que possui titularidade (não exclusiva) ao direito material invocado.

O cerne da questão deve ser deslocado para outro foco diferente da titularidade do direito que fundamenta legitimação individual clássica. A grande preocupação da ciência processual moderna é tornar o processo um instrumento de realização da ordem jurídica que contemple as garantias constitucionais, especialmente aquelas de proteção da pessoa humana, e este desiderato vale para o processo individual ou coletivo. O processo moderno tem que ser eficaz em primeiro lugar para garantir a ordem jurídica, prevenindo a lesão e somente na impossibilidade de cumprir essa missão, autorizar a reparação do dano.

CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO assevera o escopo publicista do processo civil como instrumento de realização da ordem jurídica justa ao anotar:

Mediante a utilização do sistema processual, propõe-se o Estado, antes de tudo, a realizar objetivos que são seus. Quer se pense na pacificação social, educação para o exercício e respeito a direitos, ou na manutenção da autoridade do ordenamento jurídico-substancial e da sua própria, nas garantias à liberdade, na oferta de meios de participação democrática, ou mesmo no objetivo jurídico-instrumental de atuar a vontade da lei (e tais são os escopos da ordem processual) – sempre é algo ligado ao interesse público que prepondera na justificação da própria existência da ordem processual e dos institutos, princípios e normas que a integram.[43]

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Garantir a ordem jurídica justa significa tutelar os bens jurídicos que a lei procura proteger. Com efeito, a Constituição Federal garante o direito ao meio ambiente saudável, à proteção do hipossuficiente consumidor; à família; ao patrimônio público; à moralidade administrativa e a uma infinidade de outros bens considerados difusos ou coletivos e nesse rumo de proteção se insere a legitimação individual ativa para o processo coletivo como meio de viabilizar a garantia constitucional da proteção à pessoa humana.

Em percuciente análise sobre a nova ordem da jurisdição constitucional pelo processo, ROSEMIRO PEREIRA LEAL anotou:

O trinômio proposto sob o título de Estado, Processo e Tutela Jurisdicional, no quadro histórico da pós-modernidae, incita reflexão que passa pelo conceito de cidadania, porque, em sendo hoje o Processo uma instituição instrumentadora e legitimadora da Jurisdição, a tutela judicial, que é o provimento (decisão do Estado-Juiz) sobre uma quaestio, há de ser construída processualmente pela submissão aos princípios jurisdicionais e constitucionais da cidadania e, a rigor, só por estes se forma e se afirma. O Prof. José Alfredo de Oliveira Baracho, em obra especializada , ensina que a “Constituição pressupõe a existência de um processo como garantia da pessoa humana[44].

Se a principal função do processo é garantir a ordem jurídica justa, nada mais lógico do que forjar os instrumentos adequados para que essa tutela se realize no plano concreto. Em tema de direito difuso ou coletivo, a noção de propriedade não pode ser tratada da mesma forma como ocorre com bens patrimoniais individuais, se bem que até mesmo por esse ângulo é plenamente justificável a legitimação individual já que o individuo pode demonstrar o interesse juridicamente protegido na tutela de determinado bem coletivo.

Como mensurar em pecúnia quanto vale o meio ambiente saudável?  Como atribuir a uma pessoa uma porção de ar incontaminado? Como destacar para um indivíduo uma parte da administração pública proba? Em todos esses casos não se olvida que embora não se possa dividir o bem em pequenas partes para atribuí-las aos seus titulares, é certo que cada indivíduo pode usufruí-los de forma singular.

VICENTE DE PAULA MACIEL JUNIOR assim sintetizou o assunto:

O direito difuso é o direito que tutela bens (bens, fatos, situações jurídicas) e como são bens que afetam um número indeterminado de pessoas, não é possível estabelecer “um interesse” sobre esses bens. Somente podemos compreender esse fenômeno a partir do bem e sua relação com o individuo, ou seja, dos interessados. Temos interessados difusos, que são todos aqueles que manifestam um interesse em face do bem tutelado genericamente pela lei.[45]

Nesse rumo é intuitivo concluir que os bens difusos e coletivos merecem ser tutelados de forma mais ampla possível já que tem um grau de importância muito significativo para toda a coletividade. Emprestando-se novamente a síntese de VICENTE DE PAULA MACIEL JUNIOR “o fato, o bem ou a situação jurídica em que se afirme o direito lesado ou ameaçado que atinge um número indeterminado de pessoas são, portanto, o eixo na interpretação desse fenômeno processual da legitimação para agir no processo coletivo”[46].

Por essa razão não parece ser justificável que o acesso à proteção jurídica desses bens seja limitado como ocorre em nosso direito positivo que legitima apenas uma porção de entidades para a defesa desses direitos.

Os direitos difusos e coletivos assumiram tal importância na vida cotidiana que sua proteção se tornou uma missão de todos os cidadãos. É caso, v. g. do meio ambiente saudável. A pressão que o meio ambiente sofre em virtude da exploração predatória e do modo de vida consumista é enorme e coloca em risco a própria sobrevivência humana. Neste contexto, não se pode mais limitar o acesso do individuo à tutela dessa classe de bens que a todos interessam indistintamente uma vez que a ordem jurídica justa recomenda a máxima proteção desses bens, perdendo importância quem seja a pessoa que acionou a jurisdição para desencadear os mecanismos efetivos de tutela. VICENTE MACIEL JUNIOR com propriedade anotou que “da tutela a bens, relações jurídicas é que surge o direito difuso e coletivo. A lesão ou ameaça a esses bens e direitos reconhecidos, não pode ser excluída de apreciação pelo Poder Judiciário”.[47]

Não é esta, porém, a realidade vigente no ordenamento positivo infraconstitucional em que a legitimação processual em matéria de tutela a direitos coletivos é estreita e delegada apenas para uma pequena gama de legitimados. A única hipótese de atuação individual na defesa dessa classe de bens ocorre com a ação popular, onde “qualquer cidadão” está autorizado a ajuizá-la.

O que se tem visto na jurisprudência é um estreitamento ainda maior dessa legitimação, vez que o âmbito de abrangência da ação popular é restrito à tutela repressiva do patrimônio público. Desta forma, temas que não estejam diretamente vinculados ao patrimônio público não têm sido admitidos no âmbito da ação popular, porquanto o instrumento adequado seria a ação civil pública em que o individuo não tem legitimidade, deixando-se de reconhecer a natureza intercambiante do microssistema de direito coletivo.

O certo é que a tendência da jurisprudência, na falta de previsão legal especifica, tem limitado significativamente a atuação individual como é observado por EURICO FERRARESI:

Em importante ação popular movida por um cidadão contra o Governador do Estado de São Paulo, objetivando obstar a construção de uma escola e exigir a devolução aos cofres públicos das importâncias despendidas, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entendeu que, no caso, havia interesse difuso, cabível, portanto, ação civil pública e não ação popular. O Tribunal julgou o autor carecedor da ação por ilegitimidade de parte. Esses os termos finais do dispositivo: “Por conseguinte, como proposta foi ação popular e o objeto da lide prende-se ao contido no artigo 1º da Lei 7.347/85, cabível ação civil pública e não ação popular, para coartar as ilegalidades do ato. Faltando, pois, legitimidade da autora, dá-se provimento parcial ao apelo para extinguir o feito sem exame de mérito’ (Apelação Civil 204.100-1/8 – São Paulo)”.[48]

A posição da jurisprudência tem justificativa no apego a interpretação puramente literal da legislação infraconstitucional visto que foi esta a opção oferecida pelo legislador que não teve intenção de abrir a via de acesso ao processo coletivo para além daquelas pessoas e entidades legitimadas. Nesse sentido anotou o mesmo VICENTE MACIEL JUNIOR:

Ou seja, contrariando a própria natureza do direito difuso, o legislador limita a legitimação do individuo para a ação, como se o direito difuso pudesse ser enquadrado no esquema do direito coletivo strictu sensu. Com isso atribui-se a esses órgãos e associações o distorcido poder de deliberar, pressupor e decidir qual seria a “vontade difusa” a ser defendida. Para completar, aos interessados difusos não é permitida a chamada “ação coletiva.[49]

A limitação da legitimação individual antes de ter sustentação cientifica processual tem justificativa no mito de que o fortalecimento do individuo com a ampliação da legitimação enfraqueceria o Estado e poderia colocar a própria prestação jurisdicional sob risco de ineficácia, imaginando-se profusão dessas ações sem critérios definidos e as vezes com intenções espúrias situação que seria facilmente controlável pelo Poder Judiciário.

As criticas que são esgrimidas contra a possibilidade de legitimação individual no processo coletivo não se sustentam conforme opinião da abalizada doutrina. Colhe-se da obra de EURICO FERRARESI que as principais críticas seriam: A conclusão de PONTES DE MIRANDA que em sua época foi no sentido de que as desvantagens de se expandir a legitimação ao nível individual superavam as vantagens que tal medida proporcionaria, já que:

[...] para funções dessa classe, a sociedade possui órgãos adequados, que melhor as desempenham do que qualquer do povo”; A posição de CAPPELLETTI no sentido de que seria “ridículo destino de Dom Quixote, em vã e patética luta contra o moinho de vento”; O “caráter político e a experiência oriunda da ação popular, utilizada com freqüência “como instrumento político de pressão e até de vindita, serviriam para o perfilhamento da opção legislativa mencionada. [50]

Por fim, anota que o cidadão brasileiro ainda não estaria suficientemente amadurecido para o uso das ações coletivas e que esse instituto da legitimação individual para ações coletivas seria oriundo do direito norte-americano e sem tradição correspondente no Brasil.

De certa forma, o que foi dito por PONTES DE MIRANDA tem correspondência na realidade ainda hoje, visto que o Ministério Público tem assumido papel de extrema relevância na tutela aos direitos difusos e coletivos mercê da plena capacitação de seus integrantes e da estrutura de apoio razoável que permite ao parquet ampla possibilidade de atuação.

Nesse sentido, basta verificar o que ocorre na prática, onde muitas vezes as próprias entidades legitimadas a tutela coletiva na ação civil pública preferem representar ao Ministério Público para que este possa atuar, visto, inclusive, a possibilidade do inquérito civil em que a colheita de provas e informações é eficiente mecanismo de preparação da ação coletiva de que não dispõem os demais legitimados.

A atuação eficiente do parquet na tutela aos direitos difusos e coletivos granjeou-lhe certa legitimidade natural para este mister funcionando relativamente bem a representação instituída no artigo 6º da Lei 7.347/85 ao dispor que “qualquer pessoa poderá e o servidor público deverá provocar a iniciativa do Ministério Público, ministrando-lhe informações sobre fatos que constituam objeto da ação civil e indicando-lhe os elementos de convicção”

Este modelo, porém, não atende à plenitude das necessidades de tutela aos direitos difusos e coletivos por inúmeras razões. Nem sempre o parquet está presente na localidade onde os fatos se passam, outras tantas, o órgão está abarrotado com outras responsabilidades sendo natural certa demora no encaminhamento das providencias necessárias comum a todo órgão público.

Por outro lado, a legitimação apenas de associações para a tutela de direitos difusos também não é uma solução definitiva já que impõe ao individuo a obrigação de associativismo o que conflita a garantia constitucional de ampla liberdade de associação prevista no artigo 5º, XX, da Constituição Federal.[51]

Neste sentido se posiciona EURICO FERRARESI:

O objetivo, nesse instante, é comprovar que a posição de outorgar exclusivamente a órgãos estatais e a entes representativos a titularidade de ações coletivas retira a legitimidade social e política do instrumento, na medida em que obriga o individuo a se associar ou a somente cobrar a atuação de órgãos estatais. Conceder ao cidadão unicamente a titularidade da ação popular não é o bastante.[52]

Entendemos que o posicionamento de BARBOSA MOREIRA ao afirmar que no âmbito da tutela a bens difusos e coletivos deve funcionar o princípio da legitimação “disjuntiva concorrente” melhor atende aos anseios de ampliação da legitimação ativa, já que não exclui nenhum dos atuais legitimados que continuarão atuando normalmente nas demandas, não lhe sendo retirada nenhuma prerrogativa, ao mesmo tempo em que franqueia aos demais interessados a possibilidade de acionar o processo na busca da tutela, que por vezes reclama urgência só atendida por meio da atuação individual.

Verifica-se, com efeito, não haver nenhuma sustentação cientifica nas afirmações contrárias a legitimação individual e muito menos encontra correspondência na realidade contemporânea, onde impera o regime democrático de direito com ampla participação social.

Nesse prisma é de ser observado que a democracia exige irrestrita participação popular não só nas escolhas dos representantes, mas também efetiva presença nos processos democráticos e aqui se insere, naturalmente, aquele destinado a tutelar juridicamente os bens supra-individuais, conforme anotou com propriedade ROSEMIRO PEREIRA LEAL:

Na teoria jurídica da democracia, o procedimento só é legitimo quando garantido pela instituição do devido processo constitucional que assegure a todos indistintamente uma estrutura espácio-temporal (devido processo legal e devido processo legislativo) na atuação (exercício), aquisição, fruição, correição e aplicação de direitos.[53]

Por outras palavras, a democracia reclama a plena participação do cidadão nos processos decisórios, entre os quais, se afigura o processo coletivo de tutela de direitos difusos que não pode prescindir da presença individual já que é o individuo que sofre ou se aproveita das tutelas a esta classe de direitos.

É preciso avançar nesse tema para incorporar as alterações no modelo de legitimação que melhor se ajuste ao desiderato de tutela dos bens transindividuais como defende VICENTE DE PAULA MACIEL JUNIOR ao anotar:

Entretanto, é a teoria objetiva que melhor explica o problema dos direitos difusos. Segundo essa perspectiva, como esclarece Vigoritti, a definição dos direitos difusos seria definida a partir do bem envolvido. Isso significa que os legitimados para a demanda coletiva seriam todos aqueles que são direta ou indiretamente afetados pela situação jurídica que atinge um determinado bem. A legitimação seria construída nesse modelo a partir do bem, para saber quais pessoas foram atingidas pelos fatos que os envolvem. Vigoriti expressamente rejeita essa linha de pesquisa e acata a teoria subjetiva, sob a justificativa de que ela transforma em legitimados para a ação todos aqueles que são atingidos pela modificação sofrida pelo bem e isso inviabiliza a própria ação coletiva. Mas esse não é nosso entendimento, conforme já expusemos longamente no curso desse trabalho. Essa linha de pesquisa rejeitada por Vigoriti é, no nosso sentir, o caminho para a explicação de um novo modelo de processo, que seja efetivamente adaptado ao fenômeno dos direitos difusos.[54]

A necessidade de se legitimar o indivíduo para o processo coletivo não passou desapercebida para os autores do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos que na exposição de motivos fizeram constar a seguinte justificativa:

[...] A grande novidade consiste em englobar nas normas sobre a legitimação ativa, consideravelmente ampliada, requisitos fixados por lei, correspondentes à categoria da “representatividade adequada”. A representação adequada é, assim, comprovada por critérios objetivos, legais, para a grande maioria dos legitimados, com exceção da pessoa física – à qual diversas constituições ibero-americanas conferem legitimação – em relação a quem o juiz aferirá a presença os requisitos em concreto. Por outro lado, a exigência de representatividade adequada é essencial para o reconhecimento legal da figura da ação coletiva passiva, objeto do Capitulo III, em que o grupo, categoria ou classe de pessoas figura na relação jurídica processual como réu.[55]

Nesse rumo, o artigo 20 do Anteprojeto dispõe que:

Art. 20. São legitimados concorrentemente à ação coletiva ativa:

I – qualquer pessoa física, para a defesa dos interesses ou direitos difusos, desde que o juiz reconheça sua representatividade adequada, demonstrada por dados como:

a) credibilidade, capacidade e experiência do legitimado;

b) seu histórico na proteção judicial e extrajudicial dos interesses ou direitos difusos e coletivos;

 c) sua conduta em eventuais processos coletivos em que tenha atuado;

II – o membro do grupo, categoria ou classe, para a defesa dos interesses ou direitos coletivos, e individuais homogêneos, desde que o juiz reconheça sua representatividade adequada, nos termos do inciso I deste artigo;

[...]

§ 1º Na defesa dos interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, qualquer legitimado deverá demonstrar a existência do interesse social e, quando se tratar de direitos coletivos e individuais homogêneos, a coincidência entre os interesses do grupo, categoria ou classe e o objeto da demanda;

§ 2º No caso dos incisos I e II deste artigo, o juiz poderá voltar a analisar a existência do requisito da representatividade adequada em qualquer tempo e grau de jurisdição, aplicando, se for o caso, o disposto no parágrafo seguinte.

§ 3º Em caso de inexistência do requisito da representatividade adequada (incisos I e II deste artigo), o juiz notificará o Ministério Público e, na medida do possível, outros legitimados, a fim de que assumam, querendo, a titularidade da ação.

As referências que o texto do anteprojeto faz à representatividade adequada é fruto da experiência da class action norte-americana como já pontuamos alhures, que, todavia, não podem servir ao propósito de limitar a legitimação individual. Ao prudente arbítrio do juiz fica o dever de velar pela verificação da plena capacidade do individuo na defesa dos direitos difusos, e, sobretudo, na ausência de fraude ou conluio no processamento da ação coletiva por meio da legitimação individual, visto a importância que a decisão terá ao final.

Pensamos que é importante, para não deixar margens à dúvida, fazer constar do texto expresso da lei a legitimação individual. Porém, diante da analise sistemática do processo visto à luz da Constituição, acreditamos que tal providência não é imprescindível à admissão da legitimação individual.

Isto porque o artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal consagra o princípio da inafastabilidade da jurisdição garantindo que o individuo tem o direito de postular a tutela jurisdicional para o fim de proteger ou mesmo ser reparado por uma lesão a um seu bem jurídico, quando dispõe que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

O principio de índole constitucional consagra o amplo e irrestrito acesso à jurisdição e tem por finalidade garantir efetividade na proteção do direito dito ameaçado ou lesionado o que se aplica sem reservas aos direitos difusos e coletivos, autorizando a postulação individual. Segundo afirma Paulo Roberto de Figueiredo Dantas:

[...] referido princípio tem por objetivo assegurar o direito a uma tutela jurisdicional a todos que dela necessitem. Trata-se, portanto, do princípio que garante às pessoas, tanto naturais como jurídicas, quer de direito público quer de direito privado, o acesso à jurisdição, e que é exercido, como já vimos anteriormente, por meio do direito de ação.[56]

Como se poderia compatibilizar com essa garantia constitucional a negação de legitimação individual a uma pessoa física para a tutela do direito ao meio ambiente que está prestes a ser contaminado por uma descarga de dejetos industriais e que trará a si e a toda a coletividade o risco à própria vida?

Parece evidente a qualquer um a luz da garantia constitucional do princípio da inafastabilidade da jurisdição que em tais circunstâncias o individuo está plenamente legitimado a buscar a tutela jurisdicional para evitar o dano a um direito difuso ou coletivo, reforçando-se este fato, os argumentos já expendidos para afastar a ilegitimidade individual.

Discorrendo sobre essa possibilidade, a autorizada opinião de VICENTE DE PAULA MACIEL informa que “portanto, a legitimação para agir na tutela dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos já existe no texto constitucional, nos termos do art. 5º, XXXV da CF/88 e pode ser exercida por qualquer individuo que perceba lesão ou ameaça a direito.”[57]

Em preciosa lição, CÂNDIDO RAGEL DINAMARCO sintetizou o alcance deste principio constitucional afirmando que vai muito além da mera possibilidade de acionar a jurisdição para ser garantida a efetiva proteção ao bem jurídico tutelado, função primordial do processo.

A garantia da ação, como tal, contenta-se em abrir caminho para que as pretensões sejam deduzidas em juízo e a seu respeito seja depois emitido um pronunciamento judicial, mas em si mesma nada diz quanto à efetividade da tutela jurisdicional. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional manda que as pretensões sejam aceitas em juízo, sejam processadas e julgadas, que a tutela seja oferecida por ato do juiz àquele que tiver direito à ela – e, sobretudo, que ela seja efetiva como resultado prático do processo”[58].

Desta forma, a legitimação individual prevista no anteprojeto de código de processo coletivo vem em boa hora, mas não depende de legislação infraconstitucional já que retira sua força do texto constitucional e pode ser exercitado plenamente.

É bem verdade que nesse campo a timidez da jurisprudência é visível, porém, é preciso insistir na necessidade da sua evolução não só para garantir o acesso à justiça, mas, sobretudo, para se conferir eficácia plena a tutela dos direitos metaindividuais.

Sobre o autor
Hamilton Donizeti Ramos Fernandez

Mestrando em Direito pela FADISP - Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo. Advogado em São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Hamilton Donizeti Ramos. Legitimação individual no processo coletivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3625, 4 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24606. Acesso em: 23 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!