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Vicissitudes da democracia brasileira

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Agenda 17/06/2013 às 08:05

Considerações Finais

Ao finalizar esta reflexão, pontuamos outra questão que entendemos intrínseca ao perfil da democracia representativa no Brasil. A hegemonia da prática política cultivada, defendida, legitimada, impregnada nas ações políticas, governamentais, administrativas etc, tem um dos seus principais pilares no fato das elites do País, inclusive as elites intelectuais, sentirem-se confortáveis nos seus marcos.

Em dezembro de 2010, quando presidia o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Ricardo Lewandowski escreveu sobre a grandiosidade, eficiência, segurança, planejamento e transparência que marcaram as eleições gerais daquele ano. Após ilustrar sua percepção pontuando aspectos técnicos das eleições – com destaque especial à credibilidade conquistada pela urna eletrônica, como instrumento capaz de garantir a expressão, o mais livre e imaculada possível, da vontade dos eleitores, e da diplomação como, quiçá o mais significativo ato do processo eleitoral – Lewandowski exara a seguinte conclusão: “Com a diplomação dos (...) eleitos para os cargos de presidente e vice-presidente da República, restou para todos que trabalharam nessas eleições a sensação do dever cumprido e a satisfação de ver o País completamente pacificado e de volta à normalidade” (2010).

Confessamos aqui os limites de nossa capacidade compreensiva para identificar o que acabava de ser completamente pacificado e de volta à normalidade no Brasil, com a finalização das eleições de 2010, mas, certamente, podemos afirmar nosso inabalável convencimento de que a afirmação do ministro expressava seu completo contentamento em testemunhar o reinado imperturbável do status quo.

Uma forma habitual de manifestação do contentamento das elites com o atual modelo de gerenciamento da sociedade brasileira pode ser identificado no discurso alarmista que irrompe frequentemente contra o que consideram virtuais ameaças à democracia. Atitude desse tipo se configura em procedimento por parte de autoridades sempre que estas se deparam com um movimento social, popular ou sindical mobilizado em defesa de seus direitos. Em geral, tais pronunciamentos apresentam um formato padrão: o movimento dos que estão reivindicando e se manifestando ostensivamente é legítimo, mas não tanto quando confrontado com algo vinculado às instituições que compõem e que esses dirigentes consideram mais legítimo.

A democracia brasileira, mesmo a despeito de seu caráter incipiente, como delineamos de modo bastante fundamentado e objetivo nestas reflexões é, realmente, ameaçada por conflitos sociais, inevitáveis em uma sociedade desigual?

Podemos responder com um sim e com um não. Por um lado, há que se destacar que um potencial inimigo da democracia, o militarismo de direita, está desmobilizado, sem identidade com o povo e em ostracismo histórico. Além disso, a sociedade tem conduzido, de forma razoável, institucionalmente, alguns de seus problemas, embora na maioria dos casos ainda exale um forte cheiro de pizza e prolifere a hipocrisia política. Mas é inquestionável que alguns processos que experimentamos nos últimos anos, como, por exemplo, a campanha das diretas, o impeachment de Collor, as CPIs do orçamento e do Judiciário, o julgamento dos mensaleiros, mais recentemente, têm favorecido um salto de qualidade na consciência da coletividade quanto à importância da questão política para as vidas de todos nós. Isso é fundamental e tem que ser fortalecido.

Contudo, também podem ser vistos sérios perigos à consolidação e ampliação da democracia entre nós. Mencionamos dois aspectos objetivos. O uso do patrimônio público pelas autoridades em proveito pessoal, como grassa em nosso País, nos níveis municipal, estadual e federal, nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, é uma ameaça realmente séria. A corrupção é antidemocrática em essência. Se não a afugentarmos, aí sim, a democracia corre risco.

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Entretanto, vemos como maior desafio à democracia brasileira a existência da primeira restrição que caracterizamos nesta reflexão no item Os meios sobrepujam os fins, aquilo há muito conhecido como apartheid social. O fortalecimento da democracia, ou a estruturação de uma genuina democracia entre nós, passa pelo fim da miséria e da ignorância do nosso povo. Não podemos festejar nenhuma democracia que aceite os níveis de pauperização da maioria dos brasileiros, como grassa em nosso País.

Portanto, o balanço efetivo, teórico e prático, aponta a caracterização incipiente da nossa democracia. Resta comprovado que, entre nós, predomina o tipo representativo (formal) de democracia. Enquanto formal ela é elitista, excludente, desigual etc. É preciso lembrarmo-nos disso, quando dizemos que a democracia é uma conquista a ser preservada. A democracia é, em realidade, como todos os fenômenos culturais, um processo em construção em nossa sociedade.

Existem alternativas, mesmo nos marcos da ordem capitalista vigente, de transformação qualitativa da forma hegemônica de gestão da sociedade brasileira. Assim, é preciso explicitar os elementos que queremos ver nela predominantes. Sugerimos que, além de tornar mais usual a utilização dos mecanismos de democracia direta já existentes em nosso ordenamento jurídico, é possível e imprescindível a implementação de outros. Felizmente, há literatura abundante acerca do tema, cujo escrutínio exige espaço que transcende a esta reflexão.


Referências

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Notas

  1. O uso do conceito de elites aqui tem referência teórica, mas não comprometimento ideológico com a Teoria das Elites. Esta teoria remonta ao final do século XIX, foi reelaborada durante o século XX e ainda é referência na Ciência Política. Seus autores precursores são Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Roberto Michels. Nos anos 30 do século passado, entra nas universidades americanas, sendo reelaborada por autores como C. Wright Mills (sociologia) e Robert Dahl (política). Em contraposição ao uso do conceito de classes econômicas pela Teoria Marxista, a noção de elite é formulada porque, do ponto de vista da morfologia social, existe uma minoria que controla a soberania do Estado, bem como de outras instituições sociais, e controla também, em consequência, a riqueza e o prestígio. Assim, essa minoria que detém todas as vantagens grassa pelos vários setores e níveis da sociedade: há uma elite política em sentido estrito, uma elite empresarial, uma elite militar, uma elite sindical, uma elite burocrática etc.
  2. Aos adversários dos princípios democráticos da igualdade e da justiça social faz-se necessário enfatizar uma obviedade: que nem todos reagirão às oportunidades de modo igual nem conquistarão os mesmos benefícios. Portanto, os referidos princípios são uma condição necessária à gestão social democrática, mas eles não têm como consequência inevitável a eliminação das diferenças entre as pessoas. Isso não é algo merecedor de louvores, mas pode servir como um tranquilizante para os adversários da democracia.
  3. Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Esse índice reflete as condições de vida das populações em relação a aspectos como renda, educação e saúde. Em março último, a ONU divulgou o Relatório de IDH de 2012, e o Brasil, embora tenha melhorado seu índice, ainda mantém a 85ª posição no ranking mundial, a mesma de 2011. Segundo o Portal G1, o Brasil está atrás de quatro países da América do Sul, como Chile (40º lugar), Argentina (45º), Uruguai (51º) e Peru (77º). Entre outros vizinhos, fica na frente de Equador (89º) e Colômbia (91º).
  4. Uma Comissão composta de deputados e senadores foi criada no Congresso Federal para revisar cento e dezessete dispositivos da Constituição Federal não colocados em prática porque ainda não foram regulamentados. Alguns desses dispositivos já contam com leis aprovadas, que, contudo, não contêm definição sobre sua aplicação. A lista inclui temas como a proibição do consumo de cigarro em ambientes fechados, direitos autorais e até alguns direitos fundamentais, como, por exemplo, o da liberdade de crença religiosa. Segundo o Portal Conjur, “a falta de regulamentação incomoda até organismos internacionais. É o que acontece com o direito de greve do servidor público. Há uma convenção mundial que dá aos funcionários dos Estados o direito de paralisação dos serviços. Cada país precisa regulamentar suas regras, de modo até que essas greves não prejudiquem a população” (Disponível em: http://www.conjur.com.br. Acesso em: 08 abr. 2013).
  5. Não é pertinente aqui fazer referência ao debate teórico ocorrido dentro do campo contratualista entre a defesa por Rousseau de um regime político no qual o exercício do poder seria feito diretamente por parte da população, e aquele defendido por Kant, oposto, defendendo o regime representativo. Interessa registrar o fato de que o último consagrou-se, mundialmente, como modelo padrão de democracia.
  6. Segundo o Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, “o Tribunal Superior Eleitoral é o braço do Poder Judiciário com menor demanda de serviços. Em 2009, ele recebeu somente 4.514 processos. No mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal recebeu mais de 103 mil ações e o STJ e o TST julgaram 354 mil e 204,1 mil processos, respectivamente. (...)”, apud CABRAL, et al. Qual é o palácio mais suntuoso do Poder Judiciário? (Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21574>. Acesso em: 7 maio 2013.)
Sobre o autor
Vicente de Paula Gomes

Doutor em Filosofia pela UNICAMP (com tese crítica sobre o uso do princípio de causalidade nas inquirições de episódios científicos, um dos pilares do programa forte em Sociologia da Ciência defendido pela Escola de Edimburgo). Mestre em Filosofia pela UNICAMP (com dissertação sobre a estruturação da Sociologia do Conhecimento por Karl Mannheim). Especialista em Filosofia Contemporânea, convênio UFPI-UFRJ (com monografia sobre O Conceito de Existência em Heidegger). Graduado em Filosofia pela UFPI. Professor Adjunto da Universidade Federal do Piauí – UFPI. Trabalha nas áreas acadêmicas de Ética, Filosofia da Ciência, Metodologia da Ciência, Teoria do Conhecimento, Filosofia Social, Filosofia Contemporânea, Metodologia Filosófica, Sociologia da Ciência. Analista Judiciário do Quadro de Pessoal da Secretaria do TRE-PI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Vicente Paula. Vicissitudes da democracia brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3638, 17 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24720. Acesso em: 25 nov. 2024.

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