3 ARBITRAGEM E PANORAMA INTERNACIONAL
No contexto da garantia do acesso à justiça, conforme lição citada de Mauro Cappelletti e dos demais professores, destaca-se a arbitragem como meio alternativo de solução de controvérsias (alternative dispute resolution) de vasta aplicação no plano internacional, com grande capacidade de imprimir celeridade à decisão e de assegurar certo grau de especialização do órgão julgador acerca da matéria objeto de litígio.
Dentre os muitos âmbitos de possível utilização da via arbitral, mostra-se de importante análise o campo das relações de consumo, as quais usualmente envolvem valores reduzidos e questões de ocorrência massificada (repetitivas). Diante do considerável e crescente número de litígios de consumo, comprometendo a celeridade e efetividade da tutela jurisdicional estatal, a arbitragem apresenta-se como meio de reduzir a sobrecarga do Judiciário, abrindo-se nova via à resolução dessa modalidade de litígios, ou seja, ampliando-se o acesso à ordem jurídica justa.
Todavia, características próprias das relações de consumo importam especiais cautelas à adoção da solução arbitral. O principal desses caracteres é a vulnerabilidade do consumidor perante o fornecedor, impingindo um desequilíbrio relacional que vulnera a autonomia da vontade.
Por essa razão, é o consumidor destinatário de especial tutela constitucional (art. 5º, XXXII e 170, inc. V) e legal (Código de Defesa do Consumidor), consistindo em normas de ordem pública, as quais mitigam princípios de direito privado como o pacta sunt servanda, tendo em vista a promoção da igualdade material entre consumidor e fornecedor. Assim, é o primeiro cercado de uma série de garantias em face do fornecedor, inclusive de ordem processual.
Portanto, a “arbitrabilidade” dos conflitos de consumo é questão que demanda análise detida de suas especificidades, cotejando-se as normas aplicáveis à arbitragem ao sistema legal consumerista. Com isso, trazem relevante contribuição os modelos internacionais, os quais se propuseram à atenção aos caracteres específicos desse tipo de demanda, harmonizando o componente privatístico do juízo arbitral com a necessidade de especial proteção ao consumidor enquanto parte vulnerável.
Com ótimos benefícios, pôde-se, através da arbitragem, solucionar a litigiosidade contida, através de meio célere, informal e pouco custoso, mostrando-se vantajoso a consumidores e fornecedores.
Então, com base nessas premissas, é possível a formulação de propostas com vistas à ampliação da arbitragem dos conflitos de consumo no Brasil, reconhecendo-a enquanto via de acesso à ordem jurídica justa, apta à promoção da efetiva tutela dos direitos consumeristas.
3.1 A CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA NOS CONTRATOS DE CONSUMO
Um primeiro ponto a se analisar acerca da “arbitrabilidade” dos conflitos de consumo é quanto à forma de ingresso na via arbitral. A Lei 9.307/96 prevê duas espécies de convenção de arbitragem, a cláusula compromissória e o compromisso arbitral.
Através da primeira, prevista no art. 4º, “as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato”. A cláusula pode já prever os elementos necessários à instauração do juízo arbitral (cláusula compromissória cheia) ou apenas determinar a opção por essa via (cláusula compromissória vazia), deixando-se ao momento da elaboração do compromisso arbitral a escolha das regras que irão reger a arbitragem a ser instituída.
De qualquer modo, exclui-se da competência da jurisdição estatal eventual controvérsia surgida, desde que a uma das partes interesse a solução arbitral. Em havendo resistência da outra parte à instituição da arbitragem, prevê o art. 7º ação para elaboração do compromisso arbitral, possibilitando-se a instauração do juízo arbitral “compulsoriamente”[38]. Logo, a cláusula arbitral pode ser invocada como defesa, ensejando sua acolhida a extinção do processo judicial sem resolução de mérito.
Ainda assim, nessas hipóteses, não seria próprio falar-se em instauração compulsória da arbitragem, uma vez que haveria prévia manifestação de vontade das partes, através do contrato em que inserida a cláusula arbitral. Todavia, na teoria contratual, destoa do modelo de livre pactuação de vontade das partes a figura dos contratos de adesão, de maciça utilização nas relações de consumo. Vale transcrever as lições do Prof Carlos Alberto Carmona:
Caracterizam-se os contratos de adesão pela desigualdade entre as partes contratantes: basicamente, uma das partes, o policitante, impõe à outra – o oblato – as condições e cláusulas que previamente redigiu. Não existe, assim, discussão a respeito do teor do contrato e suas cláusulas, que tal sorte que o oblato cinge-se a anuir à proposta do policitante. Tais contratos supõem, antes de mais nada, a superioridade econômica de um dos contratantes, que fixa unilateralmente as cláusulas contratuais; o contratante economicamente mais fraco manifesta seu consentimento aceitando, pura e simplesmente, as condições gerais impostas pelo outro contratante; a proposta é, de regra, aberta a quem se interessar pela contratação; e a oferta é predeterminada, uniforme e rígida.[39]
Em sendo celebrados quase a totalidade dos contratos de consumo através da imposição em blocos das cláusulas redigidas pelo fornecedor, razão pela qual o Código de Defesa do Consumidor dispensa disciplina a essa modalidade contratual, definindo-a no art. 54[40], não haveria plena voluntariedade quanto ao conteúdo pactuado.
Assim, estabelece o diploma um sistema de proteção do consumidor em face das cláusulas tidas por abusivas, as quais, reputadas nulas, não o vinculam. E, dentre o rol exemplificativo de cláusulas abusivas do art. 51, é elencada a cláusula compromissória[41].
A Lei de Arbitragem foi sensível à matéria, propondo no §2º, solução distinta do diploma consumerista[42]. Embora o dispositivo estabeleça, via de regra, eficácia da cláusula compromissória condicionada à posterior aceitação do juízo arbitral pelo aderente (sendo, então, obrigatória para o proponente e facultativa ao aceitante), em sua parte final se possibilita a plena vinculação do aderente à cláusula arbitral desde que prevista “por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula”.[43]
Desse modo, instaurou-se um aparente conflito de normas quanto à validade de cláusula compromissória nos contratos de consumo, trazendo a doutrina distintas soluções.
A Prof. Selma Ferreira Lemes[44] considera revogado tacitamente o dispositivo do Código de Defesa do Consumidor pelo art. 4º, §2º da Lei 9.307/96, invocando o critério cronológico. Com isso, reputa vinculante a cláusula compromissória celebrada nos termos do citado parágrafo, sem afastar a possibilidade de ser esta eventualmente declarada abusiva, no caso concreto, se comportar “um desequilíbrio entre as partes ou for incompatível com a boa-fé e a eqüidade à luz do disposto no art. 51, inc. IV, do CDC”.
Manifesta a professora preocupação com os custos e com a acessibilidade de eventual instituição de arbitragem administrada eleita, sem tornar-se excessivamente onerosa ao consumidor.
Já o Eliana Baraldi[45] também reputa em princípio válida e vinculante a cláusula arbitral inserida em contrato de adesão de consumo, se obedecidos os requisitos da Lei da Arbitragem, podendo somente em caráter excepcional ser reputada abusiva, consoante as circunstâncias do caso concreto. Comenta, a esse respeito, o acórdão nº 2008.001.3025 do TJ/RJ[46], o qual, decidindo pela vinculação do consumidor à cláusula, observou o fato de ser este advogado para afastar em concreto sua hipossuficiência.[47]
Já o Juiz Luiz Roberto Ayoub[48] nos aponta o mesmo resultado (validade da cláusula celebrada consoante o §2º), conquanto considere inexistente conflito entre o Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Arbitragem, entendendo que esta aprimorou a disciplina daquela, em interpretação harmonizadora dos dispositivos.
Outrossim, o entendimento majoritário, recomendata insuficientes as cautelas previstas na Lei de Arbitragem para a plena garantia do acesso à ordem jurídica justa do aderente consumidor, o qual pode ter a celebração do contrato condicionada à aceitação da cláusula compromissória.
Especialmente nos casos de produto ou serviço prestado por poucas ou somente uma empresa, não se pode considerar de modo algum livre a vontade do aderente consumidor pela via arbitral. Adiante, Joel Dias Figueira Júnior[49] sensível à realidade das relações de consumo, observa:
Ocorre que os mecanismos de segurança, conferidos na Lei de Arbitragem ao consumidor, são ainda incipientes, quando confrontados com as relações de massa e consumo verificadas no mundo contemporâneo, onde o poderio comercial ou econômico de empresas (estipulantes) dos mais variados setores do mercado apresentam-se em total desequilíbrio quando cotejado com a parte contrária firmadora do contrato (aderente). Por isso, entendemos que o novo dispositivo deva ser interpretado não isoladamente, mas de forma sistemática e teleológica com todo o microssistema do Código de Defesa do Consumidor e sob o prisma das garantias e direitos insculpidos na Constituição Federal, sob pena de chegarmos à conclusão pouco sensata e antagônica ao espírito da lei e do próprio legislador. [...] Seria ingênuo e até jocoso imaginar que a simples inscrição em negrito de cláusula compromissória em determinado contrato decorrente de relação de consumo, acompanhada de assinatura ou ‘visto especial’ do consumidor, poderia servir como instrumento único e absoluto da exclusão da jurisdição estatal e instituição da privada, na hipótese de se vislumbrar necessidade posterior de solução de algum conflito surgido entre as partes e decorrente do mesmo contrato. Entendemos que a regra insculpida no §2º do art. 4º da Lei 9.307/96 não é absoluta, mas sim relativa, à medida que traz em seu bojo apenas o norte preliminar para o delineamento e verificação das circunstâncias particulares de cada caso concreto. Ademais, as cláusulas contratuais serão, nas relações de consumo, interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor (art. 47 do CDC).
Com isso, a via arbitral jamais pode ser imposta independentemente de manifestação de livre vontade da parte, à qual, em princípio, deve ser garantido o acesso à jurisdição estatal. Nas relações de consumo, por usualmente não se apresentar plenamente livre a manifestação de vontade do consumidor, vulnerável, o qual adere em bloco às cláusulas propostas pelo fornecedor, visa o art. 51, inc. VII, do diploma consumerista a garantir que não lhe seja tolhida a possibilidade de acesso ao Judiciário, ou seja, que não se lhe restrinja essa primária via de acesso à justiça.
Assim, entendida a disciplina dispensada ao consumidor enquanto especial, fundada nos caracteres próprios das relações de consumo, conclui-se que prevalece diante do regramento introduzido pela Lei de Arbitragem.
Vencida a questão à teoria do conflito aparente de normas, o citado dispositivo do Código de Defesa do Consumidor é especial em relação ao art. 4º, §2º da Lei 9.307/96, devendo preponderar quando resguardar interesses dos consumidores.[50]Neste sentido, transcrevemos as conclusões da Ministra Nancy Andrighi[51]:
[...] a incompatibilidade é apenas aparente. Na verdade, é preciso aplicar o princípio da especialidade das normas e entender que o apontado dispositivo da Lei de Arbitragem tratou apenas de contratos de adesão genéricos, subsistindo, portanto, a aplicação do art. 51, VII do CDC quando o contrato, ainda que de adesão, tenha sido celebrado entre consumidor e fornecedor. Dessa forma, conviveriam, harmonicamente, três regramentos, quais sejam: (i) regra geral que impõe a obrigatoriedade da observância da arbitragem quando pactuada pelas partes; (ii) regra específica para contratos de adesão genéricos, que estabelece restrição à eficácia da cláusula compromissória e (iii) regra ainda mais específica para contratos, de adesão ou não, celebrados entre consumidor e fornecedor, em que será considerada nula a cláusula que determine a utilização compulsória da arbitragem, ainda que tenham sido preenchidas as formalidades estabelecidas no art. 4.°, § 2.°, da Lei de Arbitragem. Conclui-se, com isso, que, não havendo incompatibilidade entre as normas, inviável reconhecer a ocorrência de revogação tácita do art. 51, VII do CDC pela Lei de Arbitragem.
Trata-se do entendimento adotado pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, citando-se o Recurso Especial n. 819.519/PE e o Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Agravo de Instrumento nº 1.101.015/RJ, os quais expressamente concluem pela nulidade da cláusula compromissória inserta em contrato de adesão de consumo, em aplicação do art. 51, inc. VII, do Código de Defesa do Consumidor[52].
Em conclusão, ainda, devemos observar os apontamentos feitos por Nilton César da Costa[53], no sentido de permanecer vinculante a cláusula compromissória em face do proponente (fornecedor), podendo o aderente (consumidor) invocá-la e tendo ação para a celebração do compromisso arbitral, somente sendo inválida sua oponibilidade pelo fornecedor ao consumidor, tutelado pelo dispositivo do diploma consumerista.
Portanto, temos o entendimento pela impossibilidade de vinculação do consumidor à via arbitral de solução de controvérsias através da previsão de cláusula compromissória em contrato de consumo.
Assim, impede-se que seja obstado o acesso do consumidor ao Judiciário por contrato prévio ao litígio, uma vez se tratando de limitação de direitos de grave comprometimento, em um modelo relacional no qual resta duvidosa a autonomia da vontade do consumidor e resguardo ao acesso à ordem jurídica justa. Todavia, não se afasta posterior opção pela via arbitral ao consumidor (de outro modo, ser-lhe-ia tolhida via frutuosa de acesso à ordem jurídica justa), como trataremos.
3.2 CONFLITOS DE CONSUMO E COMPROMISSO ARBITRAL
Já afastada a possibilidade de vinculação do aderente a cláusula compromissória inserta em contrato de consumo, tratar-se-á então da possibilidade de opção pela solução arbitral após o surgimento do litígio, através da celebração de compromisso arbitral.
Há minoritário posicionamento que entende incompatível a solução arbitral às demandas de consumo, fundando-se na desigualdade entre consumidor e fornecedor, como nos ensina Fábio Costa Soares:
“O compromisso arbitral evidencia a opção pelo método alternativo de solução de conflitos feita após o surgimento da lide e exige uma análise mais apurada sobre a sua possibilidade em se tratando De lides de consumo. (...) O constituinte de 1988 fez a acertada opção ideológica no sentido da promoção da defesa do consumidor (artigo 5º, inciso XXXII), necessária para a consecução dos fins almejados pelo Estado brasileiro (artigo 3º) e excluída do âmbito do poder de reforma da constituição (artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV). A incompatibilidade entre os fundamentos da proteção jurídica do consumidor (decorrentes da sua múltipla vulnerabilidade) e os referentes à adoção da arbitragem como método alternativo de solução de conflitos entre consumidores e fornecedores é flagrante. A proteção do consumidor fundamenta-se na vulnerabilidade deste (cf. CDC, artigo 4º, inciso I) e na desigualdade fática, técnica, econômica e jurídica entre os atores da relação jurídica de consumo, restringindo a autonomia da vontade das partes. Por outro lado, a arbitragem privilegia a autonomia de vontade e pressupõe a igualdade entre os litigantes desde a escolha do método alternativo, até o seu desfecho, incluindo a capacidade econômica para a remuneração do árbitro e para a produção de provas. A intervenção do Estado no conteúdo da relação jurídica de consumo é necessária assegurar o seu equilíbrio e mitigar a vulnerabilidade do consumidor, mesmo nas hipóteses de direitos patrimoniais como se pode inferir pelas normas dos artigos 6º, incisos V, e 51, parágrafo 2º e 4º, da lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, que autorizam a intervenção do juiz no contrato para assegurar o equilíbrio entre as prestações, interferido, verbi gratia, no preço do objeto. A grande capacidade econômica do fornecedor, o único que poderá arcar com as despesas do juízo arbitral, assim como sua litigância habitual, são fatores de grande importância para o entendimento no sentido da inadmissibilidade da instituição do juízo arbitral para a solução das lides de consumo, haja vista que o consumidor não contará com a mesma capacidade de produção de provas necessárias, ou de influência psicológicas, diante do escasso contato com os árbitros e da posição de inferioridade que ocupa.”[54]
Por outro lado, o entendimento majoritário vislumbra possível a instituição de solução arbitral aos litígios de consumo, através da celebração de compromisso arbitral, ocasião em que, já surgida a controvérsia, tem o consumidor liberdade de escolha entre os métodos judicial e arbitral de solução, compreendidos estes enquanto vias de acesso à ordem jurídica justa. Inspirado por uma visão vanguardista do direito constitucional ao acesso à ordem jurídica justa (art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal), o próprio Código de Defesa do Consumidor previu, em seu art. 4º, inc. V, o “incentivo à criação pelos fornecedores (...) de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo”, dentre os quais se pode incluir a arbitragem.[55]
Novamente, a Ministra Nancy Andrighi, em trabalho já citado, sem se afastar dos desafios de ordem concreta a serem superados para uma justa arbitragem de conflitos de consumo (seu custo e a possibilidade da arbitragem ser operacionalizada pelo fornecedor em detrimento do consumidor), afirma da possibilidade da instauração da arbitragem através de compromisso arbitral.[56]
De igual forma, vale trazer à colação a disciplina européia da matéria:
Cumpre salientar que, no âmbito europeu, não há vedação expressa da arbitragem para solucionar questões de consumo; o que se tem consciência e se preserva, enfim, é o princípio de que a arbitragem não pode ser usada por uma parte para tirar vantagem da relativa debilidade da outra. Este é um princípio que recebeu lapidar tratamento do Código de Processo Civil alemão, art. 1.025, verbis: ‘o acordo de arbitragem não é válido se uma das partes usar da superioridade que possui em virtude de posição econômica ou social, no sentido de obrigar a outra parte em firmar esse acordo ou aceitar as condições nele previstas’ [57]
Um primeiro requisito a ser analisado acerca da “arbitrabilidade” das lides de consumo é a disponibilidade dos direitos envolvidos.
Observa Evandro Zuliani[58] que, embora haja uma série de direitos básicos do consumidor (como a proteção à vida, saúde e segurança prevista no art. 6º), indisponíveis e de caráter extrapatrimonial, disponível se revela a decorrência patrimonial individual da violação destes (como, por exemplo, uma indenização oriunda de acidente de consumo).
Ainda, devemos excluir do foco da arbitragem os direitos propriamente coletivos (difusos e coletivos em sentido estrito), sendo reservados à tutela coletiva de direitos mecanismos próprios de representatividade e procedimento. Alguns destes possibilitam certo grau de transação (como os termos de ajustamento de conduta), mas sem se confundirem à instauração de juízo arbitral, de índole marcadamente privada (público x privado).
Contudo, quanto aos direitos individuais homogêneos, objeto freqüente das demandas de consumo, é possível sua submissão à apreciação arbitral, “tendo em vista que estamos diante de direitos divisíveis, perfeitamente individualizáveis e, via de regra, disponíveis, quando patrimoniais”.[59]
Outra questão a se analisar é quanto ao caráter cogente das normas do Código de Defesa do Consumidor, por tratarmos de normas de ordem pública, cuja incidência não pode ser afastada em prejuízo do consumidor. Zuliani e Fábio Costa destacam esse caráter, considerando vedado o julgamento por equidade (admitido pela Lei de Arbitragem) ou outra providência que represente limitação às normas de proteção ao consumidor.
Dentre as normas e princípios atinentes, destaca-se o art. 47 do diploma consumerista, o qual determina a interpretação mais favorável ao consumidor das cláusulas contratuais, devendo ser esta a orientação tomada em sede arbitral.
Adriano Perácio de Paula[60] aborda ainda sobre a inversão do ônus da prova (art. 6º, inc. VIII), preconizando sua realização no juízo arbitral, desde que presentes os requisitos autorizadores, uma vez consistindo em um direito do consumidor.
Contudo, ainda restam desafios de ordem prática à adequada tutela do consumidor em sede arbitral.
O primeiro problema a ser enfrentado se refere aos custos do juízo arbitral, os quais podem inviabilizar o ingresso dos consumidores (especialmente em causas de reduzido valor) a essa modalidade de solução de controvérsias, observando-se haver meios de acesso gratuito em sede judicial (no procedimento da Lei 9.099 e nas disposições de aplicação geral da Lei 1.060).
A Ministra Andrighi, no que é acompanhada por Juliana Gardenal, observa que o custo à instauração do procedimento arbitral no Brasil ainda é muito alto, propondo, com base em modelos internacionais (como na Espanha, em que os litigantes somente arcam com os custos relativos à produção de provas) e em iniciativas nacionais (estabelecendo o regulamento do CAESP o pagamento de custas pelo fornecedor) a imposição do custeio ao fornecedor ou ao Estado.
Outro problema a se mencionar é a possibilidade de “captura” da instância arbitral pelo fornecedor, utilizando-se a arbitragem em detrimento dos interesses do consumidor, parte vulnerável econômica e tecnicamente.
Novamente, a Ministra Andrighi apresenta a solução espanhola, de Juntas Arbitrais de Consumo instituídas pela administração pública e garantindo participação de representantes dos consumidores e da classe empresarial.
Por fim, conclui que mantida a arbitragem de consumo sob a condução de entidades privadas, pela necessidade de criação de mecanismos de controle e fiscalização dessas instituições (realizados, por exemplo, pelo Ministério Público) e da exigência de participação de representantes dos consumidores na instância arbitral.
O Prof. José Geraldo Filomeno[61] destaca sua preocupação com a escolha dos árbitros, propondo a indicação, pelo consumidor, de profissionais de instituições governamentais (como o PROCON) ou de entidades não governamentais (como o IDEC), ou, no caso de câmaras de arbitragem, sua necessária composição por pessoal especializado na matéria e representativo dos consumidores. Defende o estabelecimento de normas que garantam a participação, ao longo do procedimento arbitral, de órgãos governamentais e não governamentais de proteção e defesa do consumidor. O que denota uma forma de democratizar o procedimento.
Consoante observado pelos autores supracitados apontam soluções para serem contornados os atuais problemas à tutela dos consumidores pela via arbitral, havendo claras vantagens na ampliação dos meios de acesso à justiça do consumidor. Talvez a principal delas, observada por Andrighi e Barreiros, é a preservação da celeridade, diante de Juizados Especiais cada vez mais sobrecarregados e morosos.
Aponta a Ministra Andrighi a média de 30 dias para solução das demandas submetidas ao juízo arbitral, consoante dados fornecidos pelo CAESP, decurso de tempo adequado à usual baixa complexidade dos litígios de consumo. Por outro lado, em sede judicial, mostra-se desgastante, especialmente ao consumidor, a espera que pode perdurar por mais de um ano, fator que acarreta litigiosidade contida e incentiva a celebração de acordos desfavoráveis ao consumidor.
Portanto, propõe o desenvolvimento de um sistema arbitral apropriado à tutela dos direitos dos consumidores, garantindo-se acesso à justiça célere, de baixo custo e adequado aos ditames da Política Nacional das Relações de Consumo.
Vale transcrever as lições de Eduardo Antonio Klauser:
Na verdade a experiência internacional demonstra que, levando em consideração as peculiaridades do conflito de consumo, a arbitragem gerida institucionalmente efetivamente vem a ser um eficiente meio alternativo a jurisdição estatal na solução de conflitos de consumo. Vários países no mundo vêm adotando métodos de alternative dispute resolution com sucesso para litígios de consumo, criando assim um maior e melhor acesso à justiça em prol do consumidor e, em contrapartida, desafogando os respectivos poderes judiciários dos microconflitos, permitindo que recursos e pessoal, especialmente os magistrados, dediquem-se a resolução de conflitos mais complexos e que precisam de maiores conhecimentos científicos. [62]
3.3 MODELOS INTERNACIONAIS
Dentre os muitos modelos desenvolvidos no plano internacional de arbitragem de conflitos de consumo, trataremos de alguns cujas experiências podem contribuir ao aprimoramento da arbitragem nacional.
Nos Estados Unidos e no Reino Unido, países de tradição arbitral, há simbiose entre juizados (small claim courts, nos EUA, e county courts, no Reino Unido) e arbitragem[63], integrando o procedimento arbitral a estrutura judiciária de modo econômico, ampliando-se a capacidade de processamento dos referidos órgãos[64]. Carlos Alberto Carmona noticia que, nas county courts, 60% das causas são resolvidas pelos árbitros em cerca de 30 minutos.
Além da arbitragem integrada à jurisdição estatal, há ainda órgãos arbitrais independentes, com regulamentação adaptada as demandas de consumo. A American Arbitration Association, instituição sem fins lucrativos que congrega os árbitros americanos, determina tabela de preços adequada às causas de pequena monta. Cabe observar haver inclusive Estados (Califórnia e Filadélfia) em que a arbitragem é compulsória para causas de até determinado valor.
No Reino Unido, destaca Selma Lemes[65] da existência de sistema informal de arbitragem de reclamações de pequenas quantias, em que se proíbe a presença de advogados e somente os particulares podem ser demandantes.
No âmbito europeu, também digno de menção é o sistema português de centros de arbitragem de consumo, observando-se não haver em Portugal órgão judicial nos moldes dos juizados especiais (lecionando Carlos Alberto Carmona).
Leciona Joaquim Carrapiço acerca dos detalhes a composição e regulamentação de cada centro[66], os quais são subsidiados pela administração pública, pela União Europeia e, no caso do Centro de Braga, pela associação comercial local. Inclusive à execução judicial das sentenças arbitrais é garantida gratuidade ao consumidor, nos termos do Decreto-lei 103/91.
Há centros destinados à generalidade das demandas de consumo e centros especializados, em prol da celeridade e do adequado conhecimento técnico dos árbitros sobre as matérias objeto de apreciação. Como forma de controle dos centros de arbitragem, estão sob a supervisão do Instituto do Consumo, órgão oficial ligado ao Ministério da Justiça português.
Na Espanha, vige o célebre sistema das Juntas Arbitrais de Consumo, regidas pelo Real Decreto nº 636/93, o qual regulamentou dispositivos da Lei 36/88[67].
Trata-se de órgãos de natureza pública, em que se assegura o tratamento igualitário através da participação de representantes dos fornecedores e consumidores (sendo um árbitro oriundo de cada um desses grupos e o terceiro, presidente, funcionário da administração).
Embora de adesão voluntária pelo consumidor, por sua celeridade (laudo arbitral em no máximo 4 meses) e gratuidade (sendo custeadas pelas partes somente as despesas com produção probatória), é a via utilizada para a considerável maioria dos litígios de consumo. Outras características do sistema são sua unidirecionalidade (vedada a reconvenção do fornecedor em face do consumidor) e informalidade (desnecessidade de advogado).
Um componente relevante, comum ao sistema português, é a adesão prévia dos comerciantes ao sistema arbitral, vinculando-os perante os consumidores que optarem por essa via. Os empreendimentos que aderem ao sistema obtêm uma certificação, a qual lhes garante boa imagem perante os consumidores, agregando valor a seus produtos e serviços. Aos consumidores, transmite-se a segurança de que desnecessária será a instauração de demanda judicial para a solução de eventual controvérsia.
Desse modo, operou a arbitragem, nesses países, como forma de mitigação da litigiosidade contida, revelando-se como meio menos dispendioso aos conflitos de pequena expressão econômica.
Na Europa, há, ainda, experiências bem sucedidas de arbitragem de conflitos de consumo na Holanda, Bélgica, Dinamarca, Alemanha, França, Canadá, Suécia, dentre outros.
No âmbito da União Européia, incentiva-se a instauração de órgãos arbitrais nos Estados-membros[68], sendo cadastradas as instituições que atendam aos parâmetros estabelecidos. Estas passam a integrar a rede européia para solução de conflitos de consumo, estando aptas inclusive à apreciação de litígios internacionais, no domicílio do consumidor.[69]
Estabelecem-se, ademais, uma série de princípios ao juízo arbitral: independência/imparcialidade (incluindo-se a garantia de representação paritária), transparência/informação, contraditório, eficácia (a qual engloba celeridade, informalidade e custas compatíveis ao consumidor), legalidade (respeito às disposições imperativas das leis consumeristas), liberdade (adesão voluntária à arbitragem pelo consumidor) e representação (direito do consumidor à assistência ou representação por terceiro), os quais norteiam a atuação das entidades arbitrais cadastradas.