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A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais

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Agenda 07/08/2013 às 10:41

CAPÍTULO 2 – A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

No capítulo anterior, fez-se uma análise sumária acerca da evolução dos direitos fundamentais, bem como sobre a fundamentação objetiva desses direitos. A partir disto, torna-se necessário avançar, no sentido de verificar a influência desses direitos nas relações entre particulares.

Na doutrina liberal, conforme ensinamento de Marcelo Novelino (2011, pp. 391), admite-se apenas a “eficácia vertical”, na qual os direitos fundamentais são uma espécie de limitação ao poder estatal, limitando-se, portanto, às relações – de subordinação e hierarquização - entre o particular e o Estado.

Ademais, os direitos fundamentais - conhecidos como “direito de defesa” [5] - foram criados como, nos dizeres de Dirley da Cunha (2011, pp. 614), “poderes jurídicos outorgados aos indivíduos” para protegê-los contra as agressões estatais.

Ocorre que, no decorrer dos tempos, as relações sociais ficaram mais complicadas em decorrência da desigualdade entre os homens. Constatou-se, portanto, que a violência contra os indivíduos e, sobretudo, a seus direitos fundamentais não seria exclusiva do poder estatal, mas também da própria esfera privada (“o próprio homem contra seus semelhantes”). (CUNHA JUNIOR, 2011, pp. 614)

Assim, começaram as indagações sobre as implicações desses direitos essenciais nas relações entre particulares, bem como as suas formas de incidência.

Para Daniel Sarmento (2006, pp. 185):

Não seria correto simplesmente transplantar o particular para a posição de sujeito passivo do direito fundamental, equiparando o seu regime jurídico ao dos poderes Públicos, pois o indivíduo, diversamente do Estado, é titular de direitos fundamentais, e está investido pela própria Constituição em um poder de autodeterminação dos seus interesses privados. (grifo nosso)

Assim, compreendeu-se a necessidade de distender a eficácia dos direitos fundamentais para as relações jurídicas entre particulares, com a finalidade de resguardar o homem da ação do próprio homem. A essa proteção a doutrina denominou de “eficácia horizontal” dos direitos fundamentais - também chamada de “eficácia privada” ou ainda “eficácia externa”.

Para Daniel Sarmento (2006, pp. 186):

O ponto nodal da questão consiste na busca de uma fórmula de compatibilização entre, de um lado, uma tutela efetiva dos direitos fundamentais, neste cenário em que as agressões e ameaças a eles vêm de todos os lados e, do outro, a salvaguarda da autonomia privada da pessoa humana. (grifo nosso)

A discussão[6] sobre o assunto desenvolveu-se inicialmente na doutrina e jurisprudência do Direito Constitucional alemão - e logo se estendeu a outros países -, onde se estabeleceu teorias sobre a possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas, quais sejam: “teorias da eficácia direta ou imediata” e “teoria da eficácia indireta ou mediata”.

Contrariamente, a doutrina norte - americana nega a aplicação daqueles direitos nas relações privadas, adverte Daniel Sarmento (2006, pp. 186/187), uma vez que cabe somente ao Estado a vinculação às normas constitucionais, a não ser que a conduta do particular possa ser aplicada ao poder estatal. Veja:

Sem embargo, nos Estados Unidos a questão se insere dentro de moldura bem distinta. Lá, firmou-se o entendimento de que as normas constitucionais vinculam apenas o Estado, ressalvada apenas a 13ª Emenda que proibiu a escravidão. A discussão está em saber em que casos a conduta de um particular pode ser de alguma forma imputada ao Estado, pois só através desta imputação é possível obrigar este particular a respeitar os direitos fundamentais consagrados pela Constituição. (grifo nosso) (SARMENTO, 2006, pp. 186/187)

Assim, o presente capítulo terá o intuito precípuo a analise da eficácia vertical e horizontal dos direitos fundamentais na ordem jurídica nacional; bem como as diversas teorias que dizem respeito à incidência dos direitos fundamentais.

A primeira teoria é a “negação da eficácia dos direitos fundamentais”. Esta teoria, portanto, rejeita a possibilidade de aplicação desses direitos nas relações entre particulares. Ao analisá-la, dar-se-á ênfase na jurisprudência norte – americana.

A segunda é a “teoria da eficácia indireta (ou mediata)”, por sua vez, sustenta que a aplicação dos direitos fundamentais está condicionada a atuação do Poder Legislativo. Enquanto que a “teoria da eficácia direta (ou imediata)” – terceira teoria, portanto – estabelece que a eficácia dos direitos fundamentais independe da atuação do legislador infraconstitucional, sendo, portanto, direita e imediata.

Além destas, há ainda teorias que nem todos os doutrinadores comentam, mas Daniel Sarmento (2006, pp. 216/224) cita-as, e, por isso, serão brevemente analisadas neste trabalho, quais sejam: a “teoria dos deveres de proteção” e as “teorias alternativas”.

2.1. EFICÁCIA VERTICAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

O Iluminismo e os ideais da Revolução Francesa (1789), quais sejam: “liberdade”, “igualdade” e “fraternidade” fez surgir o Estado Liberal, época em que os direitos fundamentais possuíam um caráter negativo, ou seja, atribuindo uma abstenção de Estado frente ao indivíduo.

A doutrina tradicional – mais especificamente, a doutrina liberal clássica – sustenta que os direitos fundamentais são normas destinadas a proteger o indivíduo contra eventuais opressões causadas pelo poder estatal. Refere-se, portanto, ao abuso de poder.

De tal modo, os direitos fundamentais são compreendidos como limitações à atividade do Estado, resumindo-se, portanto, à relação entre o Estado e o particular, em que apenas este é detentor das referidas garantias. Trata-se, portanto, de “direitos de defesa”. (NOVELINO, 2011, pp. 391)

2.2. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

As diversas expressões utilizadas pela doutrina – “eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas”, “eficácia privada dos direitos fundamentais”, “eficácia externa dos direitos fundamentais” – servem para explicar o real sentido dos direitos fundamentais frente à real necessidade do ser humano em sua relações privadas. (CUNHA JUNIOR, 2010, pp. 614)

O assunto - chamado preferencialmente pela doutrina de “eficácia dos direitos fundamentais” – tem sido objeto de discussão doutrinária e, sobretudo, jurisprudencial por muito tempo, mais precisamente desde os anos 50 do século XX - quando iniciou na Alemanha. (STEINMETZ, 2004, pp. 31)

A eficácia horizontal surgiu, no entanto, como uma forma de contrapor a eficácia vertical, cuja característica é, especialmente, a relação entre o indivíduo e o Estado.

No Estado Liberal, os direitos fundamentais destinavam-se especialmente à proteção dos interesses individuais contra as opressões estatais. Não se cogitava, à época, a aplicação destes na esfera privada, visto que se pensava numa igualdade entre os indivíduos.

Enquanto que no Estado Social, as circunstâncias sociais e econômicas tornaram a sociedade mais participativa e atuante, de modo que, tornou-se necessário uma mudança na proteção dos direitos fundamentais, os quais tiveram como objetivo principal a proteção do homem contra seu semelhante.

Nesse sentido, Ingo Sarlet (apud WOLOWSKI, 2010, pp. 38):

Ao contrário do Estado clássico e liberal de Direito, na qual os direitos fundamentais, na condição de direitos de defesa, tinham por escopo proteger o individuo de ingerências por parte dos poderes públicos na sua esfera pessoal e no qual, em virtude de uma preconizada separação entre Estado e sociedade, entre o público e o privado, os direitos fundamentais alcançavam sentido apenas nas relações entre os indivíduos e o Estado, (...) (grifo nosso)

E continua afirmando:

(...) no Estado social de Direito [...] a sociedade cada vez mais participa ativamente do exercício do poder, de tal sorte que a liberdade individual não apenas carece de proteção contra aos poderes públicos, mas também contra os mais fortes no âmbito da sociedade, isto é, os detentores de poder social e econômico, já que é nesta esfera que as liberdades se encontram particularmente ameaçada. (grifo nosso)

Conforme ensinamento de Marcelo Novelino (2011, pp. 391), a eficácia horizontal dos direitos fundamentais se refere à incidência dos referidos direitos no âmbito da esfera privada, na qual os particulares estão numa “relação de coordenação”.

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2.3. AS TEORIAS SOBRE A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PARITULARES

Em virtude da crescente desigualdade entre os homens, a violência em suas relações jurídicas, por consequência, também aumentaram. Daí a preocupação em proteger o homem e, sobretudo, seus direitos fundamentais das agressões do próprio homem. (COSTA JUNIOR, 2010, pp. 614)

 Por essa razão, surgiram teorias para discutir a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas.

2.3.1. Teoria da ineficácia horizontal ou da negação da eficácia dos direitos fundamentais e a doutrina da “state action”

Dentre as teorias que serão analisadas, a que nega a aplicação dos direitos fundamentais e, sobretudo, a produção de seus efeitos é, segundo Marcelo Novelino (2011, pp. 391), a que possui o menor prestígio.

 A “teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais” - como já analisado - teve seu início na Alemanha. Ocorre que, logo depois o seu surgimento, iniciou-se uma corrente em oposição aos seus entendimentos. Trata-se, portanto, da “teoria da ineficácia horizontal” ou “teoria da negação da eficácia dos direitos fundamentais”, que tem como principais doutrinadores Mangoldt (JULIO ESTRADA apud SARMENTO, 2006, pp. 188) e Forsthoff (BILBAO UBILLOS apud SARMENTO, 2006, pp. 188).

Esta concepção sustentou na ideia do liberalismo clássico; assegurando, contudo, que os direitos fundamentais representavam tão somente “direitos de defesa” em face do poder estatal.

Dentre os argumentos invocados por esta corrente, destacam-se a tradição histórica liberal dentro da qual cristalizam-se os direitos fundamentais, o texto constitucional alemão, que prevê expressamente apenas a vinculação dos poderes públicos aos direitos fundamentais no seu art. 1.3, bem como a vontade histórica do constituinte, pois não se discutiu, durante a  elaboração da Lei Fundamental alemã, a vinculação dos atores privados aos direitos fundamentais, já que as atenções estavam voltadas para a proteção contra o Estado, até pela proximidade da experiência nazista. (grifo nosso) (SARMENTO, 2006, pp. 188)

Ademais, declarava-se que a “teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais” extinguiria a autonomia privada e, sobretudo, a identidade do Direito Privado, o qual seria sugado pelas normas constitucionais. (SARMENTO, 2006, pp. 188)

Ernst Forsthff chegou a afirmar que a teoria da eficácia horizontal operaria a dissolução da Constituição, ao rebaixá-la de norma a mera ordem de valores, e levaria ao abandono dos métodos clássicos de hermenêutica jurídica no Direito Constitucional, dos quais ele era um ardoroso defensor, com efeitos devastadores para a segurança jurídica.  (grifo nosso) (SARMENTO, 2006, pp. 188)

Embora esta doutrina tenha sido praticamente extinta na Alemanha, em virtude das inúmeras decisões do Tribunal Constitucional alemão, nos anos 50, foi no direito norte – americano que ela encontrou seus adeptos. (SARMENTO, 2006, pp. 189)

É praticamente um axioma do Direito Constitucional norte-americano, quase universalmente aceito tanto pela doutrina como pela jurisprudência, a ideia de que os direitos fundamentais, previstos no Bill of Rights da Carta estadunidense, impõem limitações apenas para os Poderes Públicos e não atribuem aos particulares direitos frente a outros particulares com exceção da 13ª Emenda, que proibiu a escravidão. (grifo nosso) (SARMENTO, 2006, pp. 189)

Nos Estado Unidos, esta corrente é amplamente adotada – tanto na doutrina como na jurisprudência – e, com exceção do 13ª Emenda que proibiu a escravidão, os direitos fundamentais servem como limitações ao Estado – e tão somente ao Estado – não vinculando, portanto, os particulares. (NOVELINO, 2011, pp. 391)

O principal argumento é a literalidade do texto constitucional, pois, segundo Marcelo Novelino (2011, pp. 391/392), a maioria das cláusulas da Constituição que se referem aos direitos fundamentais faz referência apenas aos poderes públicos.

Dirley da Cunha (2010, pp. 614) acrescenta que esta teoria foi responsável pela criação da doutrina da “state action”, a qual, segundo o autor, sustenta a “intangibilidade da autonomia privada”.

A doutrina da “state action”, segundo Marcelo Novelino (2011, pp. 392), tem como princípio a ideia de que os direitos fundamentais protegem o individuo da opressão estatal.

Ocorre que, durante a década de 40 a doutrina da “state action” começou, nos dizeres de Dirley da Cunha Junior (2010, pp. 614), a ser mitigada pela jurisprudência da Suprema Corte americana, pois foi adotada “teoria da função pública” (“public function theory”).

A partir da década de 40 do século passado, a Suprema Corte americana, sem renegar a doutrina da state action, começa a esboçar alguns temperamentos a ela. Com efeito, passou a Suprema Corte a adotar a chamada public function theory, segundo a qual quando particulares agirem no exercício de atividades de natureza tipicamente estatal, estarão também sujeitos às limitações constitucionais. (SARMENTO, 2006, pp. 190)

A “teoria da função pública”, por sua vez, sustenta que os direitos fundamentais devem ser vinculados aos particulares, desde que estes ajam no exercício de funções públicas. (CUNHA JUNIOR, 2010, pp. 614)

John Nowak e Ronald Rotunda (apud SARMENTO, 2006, pp. 190) complementam sobre a “teoria da função pública”:

Esta teoria impede, em primeiro lugar, que o Estado se livre da sua vinculação aos direitos constitucionais pela constituição de empresas privadas, ou pela delegação das suas funções típicas para particulares, pois estes, quando assumem funções de caráter essencialmente público, passam a sujeitar-se aos mesmos condicionamentos constitucionais impostos aos Poderes Públicos.

Daniel Sarmento (2006, pp. 190/191) complementa:

Ademais, existem, segundo a Suprema Corte, certas atividades que independentemente da delegação, são de natureza essencialmente estatal, e, portanto, quando os particulares as exercitam, devem submeter-se integralmente aos direitos fundamentais previstos na Constituição.

Finalmente, percebe-se que a doutrina da “state action” está diretamente associada ao “radical individualismo” que, conforme Daniel Sarmento (2006, pp.196/197), caracteriza a Constituição e a cultura jurídica do direito norte-americano. Dessa forma, tal doutrina não proporciona um tratamento adequado aos direitos fundamentais, tendo em vista que as maiores violências não são causadas pelo Estado, mas pelo próprio homem – “grupos, pessoas e organizações privadas”.

2.3.2. Teoria da eficácia horizontal indireta ou mediata dos direitos fundamentais na esfera privada

Em 1956, o doutrinador alemão Günter Dürig publicou a chamada “teoria da eficácia horizontal indireta ou mediata” dos direitos fundamentais na esfera privada, a qual foi adotada no direito germânico e permanece ainda como doutrina dominante e plenamente aceita pela Corte Constitucional Alemã. (SARMENTO, 2006, pp. 198)

Para ele, deve-se inicialmente admitir o “direito geral de liberdade”, o qual autoriza aos integrantes das relações particulares afastarem os enunciados dos direitos fundamentais, para, dessa forma, não afetar a liberdade contratual. (NOVELINO, 2011, pp. 392)

De tal modo, poderia haver a relativização dos direitos fundamentais nas relações privadas; enaltecendo, dessa forma, a autonomia privada e a responsabilidade individual. (NOVELINO, 2011, pp. 392)

Para esta teoria, os direitos fundamentais não são introduzidos no domínio das relações privadas como direitos subjetivos a partir da Constituição, pois a incidência direta desses direitos nas relações jurídicas entre particulares destruiria a autonomia de vontade e, consequentemente, deformaria o direito privado, “ao convertê-lo numa mera concretização do Direito Constitucional”. (SARMENTO, 2006, pp. 198)

Nesse sentido, Ingo Sarlet (2007, pp. 404):

(...) os direitos fundamentais – precipuamente direitos de defesa contra o estado – apenas poderiam ser aplicados no âmbito das relações entre particulares após um processo de transmutação, caracterizado pela aplicação, interpretação e integração das cláusulas gerais e conceitos indeterminados do direito privado à luz dos direitos fundamentais, falando-se, neste sentido, de uma recepção dos direitos fundamentais pelo direito privado. (grifo nosso)

Para Dürig, faz-se necessário estabelecer uma relação entre o Direito Privado e as normas constitucionais, a qual é representada por “normas gerais” e “conceitos jurídicos” que devem ser acolhidos pelo legislador e interpretados pelo judiciário em consonância com os valores constitucionais e, sobretudo, dos direitos fundamentais. (SARMENTO, 2006, pp. 198)

Marcelo Novelino (2011, pp. 392/393) enfatiza a necessidade de uma mediação legislativa (“efeito irradiador”) para que os direitos fundamentais possam propagar seus efeitos.

Assim sendo, esta corrente sustenta que os direitos fundamentais não são protegidos no âmbito privado pelos mecanismos de proteção constitucionais, mas por meio dos próprios instrumentos do direito privado. Para tanto, é necessário a atuação do legislador privado que irá disciplinar as relações privadas – compatíveis com valores constitucionais – sem, contudo, isentar a autonomia de vontade. (SARMENTO, 2006, pp. 199/200)

No mesmo sentido Dirley da Cunha (2010, pp. 615):

A teoria da eficácia indireta ou mediata defende a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, condicionando essa incidência, contudo, à prévia atuação do legislador infraconstitucional, que teria o dever de conformar as relações privadas à luz das normas constitucionais definidoras de direitos. (grifo nosso)

Ao Judiciário caberia, tão somente, preencher as cláusulas indefinidas criadas pelo legislador, observando e levando em consideração os direitos fundamentais; além de declarar a inconstitucionalidade das normas privadas incompatíveis com os referidos direitos. (SARMENTO, 2006, pp. 200)

Os adeptos desta corrente criticam a “teoria da eficácia horizontal direta ou imediata” dos direitos fundamentais, pois afirmam que esta teoria dar um poder desmedido ao Judiciário; comprometendo, portanto, a liberdade individual nas relações privadas, que, de tal modo, ficaria demasiadamente vulnerável à discricionariedade do julgador. (SARMENTO, 2006, pp. 198/199)

Daniel Sarmento complementa conforme entendimento de François Rigaux (apud SARMENTO, 2006, pp. 199):

Por isso, entendem os partidários desta tese que a Constituição não investe os particulares em direitos subjetivos privados, mas que ela contém normas objetivas, cujo efeito de irradiação leva à impregnação das leis civis por valores constitucionais. (grifo nosso)

Mas também não se igualam à “teoria da ineficácia horizontal”, a qual nega qualquer tipo de incidência dos direitos fundamentais sobre as relações particulares. A diferença entre ambas é que a “teoria de eficácia indireta” reconhece que os referidos direitos “exprimem uma ordem de valores por todos os campos do ordenamento, inclusive sobre o Direito Privado”, cujas normas devem ser interpretadas em conformidade. (STARCK apud SARMENTO, 2006, pp. 199)

Trata-se, portanto, de uma posição intermediária entre a teoria que nega a eficácia dos direitos fundamentais e aquele que afirma que a incidência dos referidos direitos deve ser direta e imediata.

2.3.3. Teoria da eficácia horizontal direta ou imediata dos direitos fundamentais na esfera privada

Defendida pelo alemão Hans Carl Nipperdey, no início da década de 50, esta teoria não teve muita aceitação no direito alemão, embora seja amplamente aceita como doutrina dominante na Espanha, em Portugal, na Itália e na Argentina. (SARMENTO, 2006, pp. 204 e 216)

Para ele, apesar de alguns direitos estarem vinculados apenas ao poder estatal, existem outros direitos fundamentais os quais podem ser invocados pelos particulares, sem a necessária mediação do legislador. (SARMENTO, 2006, pp. 205)

De tal modo, não só o Estado está vinculado aos valores constitucionais, mas também os particulares, pois tais direitos, além de sofrerem a violência por parte do Estado, são oprimidos pelo próprio homem.

A ideia também foi amparada por Walter Leisner e por Reinhold Zippelius. O primeiro sustentou a unidade do ordenamento jurídico, no sentido de “não ser admissível conceber o Direito Privado como um gueto, à margem da Constituição e dos direitos fundamentais”. (SARLET apud SARMENTO, 2006, pp. 205)

Já Reinhold Zippelius (apud SARMENTO, 2006, pp. 205) afirma que:

quando tais direitos não forem suficientemente protegidos pelo legislador na esfera privada, as normas constitucionais que os consagram produzirão “efeito directo de obrigatoriedade nas relações entre cidadãos”.

Para esta teoria, há uma vinculação direta dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares, independentemente da qualquer intermediação legislativa, “ainda que não se negue a existência de certas especificidades nesta aplicação, bem como a necessidade de ponderação dos direitos fundamentais com a autonomia da vontade”. (NOVELINO, 2011, pp. 393)

É importante frisar – e esta corrente doutrinária não nega – que a vinculação de tais direitos nas relações particulares não possuem a mesma forma e intensidade da vinculação com os poderes públicos. Pois, conforme ensinamento de Marcelo Novelino (2011, pp. 393), os poder estatal é responsável em proporcionar o bem comum, enquanto que os particulares usufruem da autonomia privada.

Nesse sentido, Robert Alexy (apud SARMENTO, 2006, pp. 205) assevera:

Cumpre destacar, no entanto, que os adeptos da teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas não negam a existência de especificidades nesta incidência, nem a necessidade de ponderar o direito fundamental em jogo com a autonomia privada dos particulares envolvidos no caso. (grifo nosso)

E continua afirmando que:

Não se trata, portanto, de uma doutrina radical, que possa conduzir a resultados liberticidas, ao contrário do que sustentam seus opositores, pois ela não prega a desconsideração da liberdade individual no tráfico jurídico – privado. (grifo nosso)

Embora seja amplamente aceita, Marcelo Novelino (2011, pp. 393) expõe algumas criticas feitas a esta teoria:

I) a desfiguração e a perda de clareza conceitual do direito privado;  II) a ameaça à sobrevivência da autonomia privada, conceito chave do direito civil e III) a incompatibilidade com os princípios democrático, da separação dos poderes e da segurança jurídica.

Dessa forma, para que seja evitado o “subjetivismo judicial, o casuísmo desmedido e, por consequência, a insegurança jurídica” devem ser decididos critérios específicos de aplicação desses direitos às relações privadas para que a liberdade individual não seja subjugada, assevera Marcelo Novelino (2011, pp. 393).

A doutrina brasileira e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF convergem no sentido de aplicar a “teoria da eficácia horizontal direta ou imediata” dos direitos fundamentais na esfera privada, como será visto no capitulo seguinte.

Essa tendência, nos dizeres de Dirley da Cunha (2010, pp. 615/616), se dá em virtude do artigo 5º, §1º da Constituição da República, que determina sejam aplicadas de maneira imediata as normas de direitos fundamentais.

Do exposto, percebe-se que se os direitos fundamentais possuem aplicabilidade imediata e vinculam os particulares em suas relações jurídicas, a consequência disto é que a vinculação seja conforme a vinculação do Poder Público.

2.3.4. Teoria dos deveres de proteção e a eficácia horizontal dos direitos fundamentais [7]

Defendida por doutrinadores alemães, como Claus-Wilhelm Canaris, Joseph Isensee, Stefan Oeter e Kalus Stern, trata-se de uma variante da “teoria da eficácia indireta”. (SARMENTO, 2006, pp. 216/217)

Para esta teoria, conforme entendimento de Canaris (apud SARMENTO, 2006, pp. 217), o Estado, além de se abster de violar os direitos fundamentais, deve proteger seus titulares das violências causadas por terceiros (também particulares). De tal modo, percebe-se que o Estado possui uma função defensiva e outra protetiva, as quais são chamadas de “proibição de intervenção” e “imperativo de tutela ou imperativo de proteção”.

Para este doutrinador, há, nesta teoria, dois aspectos a serem analisados. O primeiro diz respeito à vinculação direta e imediata do legislador aos direitos fundamentais. O segundo, à “aplicação e desenvolvimento judicial do Direito Privado”. (SARMENTO, 2006, pp. 217)

Para Canaris (apud SARMENTO, 2006, pp. 217/218), tanto a função legislativa quanto a jurisdicional estão vinculadas – de forma positiva ou negativa - aos direitos fundamentais, até mesmo no que se refere às relações privadas.

Julio Strada (apud SARMENTO, 2006, pp. 218) acrescenta:

Para Isensee, por sua vez, a teoria dos deveres de proteção é preferível em relação às teoria da Drittwirkung direta ou indireta, porque direciona os direitos fundamentais apenas para o Estado, evitando os riscos para a autonomia privada. Oeter, na mesma linha também manifesta a sua preferência pela teoria dos deveres de proteção, sob o argumento de que ela evita o ativismo judicial que as outras teorias sobre a eficácia horizontal permitem. Isto porque, para ele, pela teoria dos deveres de proteção, quando o legislador deixasse de cumprir sua obrigação de salvaguarda dos direitos fundamentais nas relações privadas, não seria lícito ao juiz colmatar a lacuna. A questão só poderia resolver-se através do controle da inconstitucionalidade por omissão, que na Alemanha é concentrado no Tribunal Constitucional, e não permite a elaboração de norma pelo Judiciário. (grifo nosso)

Para esta teoria, cabe ao Estado a proteção dos direitos fundamentais nas relações privadas, ou seja, proteger particulares da conduta ameaçadora de outros particulares.

Porém, Daniel Sarmento (2012, pp. 19) critica esta premissa – a de que somente o Estado está vinculado a tais direitos -, pois, para ele, não há uma adequação à realidade, tendo em vista que somente teria sentido obrigar o Estado a evitar uma ameaça causada por particular a direito fundamental se a atitude do particular fosse considerada ilícita; assim, o particular, de qualquer forma, também estaria vinculado e obrigado a respeitar os direitos fundamentais.

2.3.5. Teorias alternativas[8]

Jürgen Schwabe publicou em 1971 na Alemanha, a obra intitulada de “teoria da convergência estatista” (SARLET apud SARMENTO, 2006, pp. 220), a qual rejeita as teorias da eficácia imediata e da eficácia mediata dos direitos fundamentais na esfera interprivada, como afirma Daniel Sarmento (2006, pp. 220)

Conforme entendimento de Schwabe (apud SARMENTO, 2006, pp. 221), esta doutrina responsabiliza o Estado pelos danos causados aos direitos fundamentais dos particulares, ainda que seja nas relações privadas.

Para Schwabe, a atividade dos particulares, mesmo quando desenvolvida no âmbito da sua esfera de autonomia privada juridicamente protegida, é sempre imputável ao Estado, pois decorres de uma prévia autorização explicita ou implícita da ordem jurídica estatal. (SARMENTO, 2006, pp. 221)

Esta teoria não aceita a distinção entre Direito Privado e Direito Publico, “para fins de submissão dos direitos fundamentais”, ressalta Daniel Sarmento (2006, pp. 221) Além do mais, quando há a violação dos direitos fundamentais, o ato de agressão pode ser imputado ao poder estatal, pelo simples fato de não ter proibido o ato lesivo, por meio do legislador, ou porque, simplesmente, não o impediu, através da atividade administrativa ou da prestação jurisdicional.

Outra corrente doutrinária que merece destaque é a proposta por Robert Alexy (apud SARMENTO, 2006, pp. 222), que conciliou três correntes divergentes, as quais são explicadas com maestria por Wilson Steinmetz (2004, pp. 182). Veja:

Alexy propõe um modelo em três níveis: (i) o dos deveres do estado, (ii) o dos direitos ante o Estado e (iii) o das relações jurídicas entre particulares. (i) A teoria da eficácia mediata situa-se no nível dos deveres do Estado. Os direitos fundamentais como princípios objetivos que se projetam sobre todos os âmbitos dos direitos obrigam o Estado a tomá-los em conta na legislação e na jurisdição. (ii) Os direitos ante o Estado (a teoria de Schwabe) situam-se no segundo nível. O particular, em conflito com outro particular, tem o direito fundamental a que o juiz e os tribunais, em suas decisões, tomem em consideração os princípios jusfundamentais (princípios objetivos) que apoiam a sua (do particular) posição ou pretensão. Este direito fundamental é um direito fundamental ante (contra) a jurisdição. Se o juiz ou o tribunal, na decisão proferida, não tomar em consideração esse direito fundamental, estará lesando esse direito fundamental como direito de defesa. (iii) No terceiro nível, situa-se a eficácia de direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares (teoria da eficácia imediata). (grifo nosso)

Para Robert Alexy (apud SARMENTO, 2006, pp. 222), as referidas teorias - “teoria da eficácia direta e imediata”, a “teoria da eficácia indireta e mediata” e, por fim, a “doutrina dos deveres de proteção do Estado” - podem chegar a resultados equivalentes, embora tenham diferentes correntes filosóficas.

Isto porque, segundo ele, todas levam em consideração o fato de que na relação entre particulares, diferentemente do que ocorre na relação entre cidadão e Estado, ambas as partes são titulares de direitos fundamentais. Ademais, todas as três construções reconhecem que a gradação da eficácia do direito fundamental na relação interprivada decorre de uma ponderação de interesses. (grifo nosso) (SARMENTO, 2006, pp. 222)

 Afirma ainda, conforme afirmação de Daniel Sarmento (2006, pp. 222), a necessidade de se encontrar uma teoria correta, a qual explique a incidência dos referidos direitos nas relações privadas, satisfatoriamente.

Assim, no decorrer do capítulo, viu-se que, ao longo dos tempos, teorias sobre a incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas foram formadas na doutrina de diversos países.

É certo que houve uma tendência de abdicar as concepções mais radicais, quais sejam: as que negam qualquer tipo de vinculação dos particulares aos direitos fundamentais ou aquelas que afirmam que a vinculação dos particulares é equivalente ao do Estado.

De qualquer forma, deve haver uma proteção pelos direitos fundamentais outorgadas aos particulares, em virtude das inúmeras agressões sofridas e, sobretudo, das desigualdades que existem nas relações privadas. Mas, não se devem igualar tais indivíduos ao Estado, pois haveria, neste caso, restrições às liberdades individuais e, principalmente, à autonomia privada.

Sobre a autora
Nadir Cancio de Albuquerque

Advogada formada pela Universidade Federal de Alagoas e pós graduada

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE, Nadir Cancio. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3689, 7 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25115. Acesso em: 22 nov. 2024.

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