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A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais

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Agenda 07/08/2013 às 10:41

CAPÍTULO 3 – A VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

Nos capítulos anteriores faz-se uma abordagem sobre os direitos fundamentais – conceitos, características e evolução – e, no capítulo segundo, acerca das principais teorias cujas abordagens refletem a eficácia desses direitos nas relações entre os particulares.

Buscou-se, portanto, entender a posição do direito brasileiro no que diz respeito à eficácia daqueles direitos fundamentais. Dessa forma, percebeu-se que a Constituição da República brasileira de 1988 adotou a teoria da eficácia horizontal direta ou imediata dos direitos fundamentais, permitindo, portanto, que tais direitos sejam utilizados diretamente pelas relações privadas.

Com efeito, o ordenamento jurídico brasileiro permite que os direitos fundamentais dedicados pela lei suprema possam guiar e proteger todos os cidadãos, e não somente os poderes públicos..

Pois, conforme Daniel Sarmento (2006, pp. 235), a Constituição de 1988:

A Constituição e os direitos fundamentais que ela consagra não se dirigem apenas aos governantes, mas a todos, (...), a Constituição de 1988 não é apenas a Lei Fundamental do Estado Brasileiro. Trata-se, na verdade, da Lei Fundamental do Estado e da sociedade, porque contém os principais valores e diretrizes para a conformação da vida social no país, não se limitando aos papéis mais clássicos das constituições liberais, de organização da estrutura estatal e definição das relações entre governantes e governados.

Partindo disto, deve-se então analisar a incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas, visto que o Estado e os particulares – em suas próprias relações - não possuem o mesmo grau de subordinação aos direitos fundamentais.

No mesmo sentido, Walter Claudius Rothenburg (1999, item 15) afirma que “o efeito dos direitos fundamentais no âmbito privado é diverso e, sob certo aspecto, menos enérgico do que aquele verificado nas relações com o Poder Público”.

Assim, este capítulo fará uma breve analise sobre as formas e os graus de incidência dos direitos fundamentais nas relações entre particulares.

Primeiramente, será analisada a autonomia privada como princípio fundamental do Direito Privado. Analisando, portanto, sua evolução, seu conceito e suas características; além da relação que este princípio tem com a liberdade contratual.

Depois, será feita uma breve analise sobre o que as teorias da eficácia mediata e da eficácia imediata sustentam sobre a relação entre os direitos fundamentais e o princípio da autonomia privada.

E, por fim, serão analisadas as posições da doutrina brasileira e da jurisprudência do STF no que diz respeito à vinculação dos direitos fundamentais nas relações privadas – principal enfoque do presente trabalho.

3.1. AUTONOMIA PRIVADA: PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DO DIREITO PRIVADO

 Conforme ensinamento de Carlos Roberto Gonçalves (2008, pp. 20), o direito privado - mais precisamente, o direito contratual – é regido por diversos princípios fundamentais, dentre os quais estão: a “autonomia da vontade”, a “supremacia da ordem pública”, o “consensualismo”, a “relatividade dos efeitos”, a “obrigatoriedade”, a “boa fé”.

Ocorre que, o presente trabalho abordará brevemente apenas o “principio fundamental da autonomia privada”, em virtude da correlação com o tema escolhido.

Embora seja um princípio tradicional desde o direito romano, a autonomia privada teve seu auge após a Revolução Francesa, momento em que o individualismo e a liberdade predominaram. (GONÇALVES, 2008, pp. 20)

Para Wilson Steinmetz (2004, pp. 189/190):

A autonomia privada é princípio fundamental do direito privado, e muito especialmente do direito civil. Na linguagem dos juristas, o sentido e a força dessa fundamentalidade são indicados com diferentes expressões: “princípio constitutivo do direito privado” (WIEACKER, Franz apud STEINMETZ, 2004, pp. 189), “princípio de ordenação sistemática interna” (PINTO, Carlos Alberto da Mota apud STEINMETZ, 2004, pp. 189), “pedra angular do sistema civilístico” (FACHIN, Luiz Edson apud STEINMETZ, 2004, pp. 189) ou “pedra angular do Direito Privado” (GOMES, Orlando apud STEINMETZ, 2004, pp. 190), “dogma nuclear do ordenamento privado” (NALIN, Paulo apud STEINMETZ, 2004, pp. 190). (grifo nosso)

Independentemente da definição, a essência e o significado de tal princípio são os mesmos. É, portanto, um poder conferido pelo ordenamento jurídico às relações privadas para que possam regulamentar seus interesses livremente. (STEINMETZ, 2004, pp. 190)

Trata-se, dessa forma, de um princípio que se baseia na ampla “liberdade contratual”, no poder dos contratantes de estabelecer seus interesses por meio de acordo de vontades. (GONÇALVES, 2008, pp. 20)

Há os que afirmam, como Steinmetz (2004, pp. 190/101), que a “autonomia privada” faz parte da soberania dos particulares diante de suas relações privadas, pois são livres para decidirem e regulamentarem seus próprios interesses. Acrescenta ainda quando afirma que os particulares são os legisladores das próprias relações jurídicas no momento em que criam seus direitos e, consequentemente, suas obrigações. Veja:

Define-se autonomia privada como o poder atribuído pela ordem jurídica aos particulares para que, livres e soberanamente, auto-regulamentem os próprios interesses (direitos, bens, fins, pretensões). A autonomia privada manifesta-se como um poder de autodeterminação e de autovinculação dos particulares. No exercício da autonomia privada, os particulares tornam-se legisladores dos próprios interesses, seja para criar direitos, seja para criar deveres. (grifo nosso) (STEINMETZ, 2004, pp. 190/191)

O “princípio da autonomia privada” se revela com diferentes intensidades; porém, é na seara dos negócios jurídicos que a autonomia privada se apresenta mais intensamente, havendo, dessa maneira, a concretização da “liberdade contratual” ou “liberdade negocial”. Wilson Steinmetz (2004, pp. 191/192) afirma que “o nexo entre autonomia privada e liberdade contratual é tão forte que, não raras vezes, no discurso dos juristas, torna-se uma pela outra”.

No princípio da liberdade contratual compreendem-se: (i) as liberdades positiva e negativa de contratar, isto é, a liberdade de decidir contratar e de decidir não contratar (direito de contratação e direito de não-contratação); (ii) a liberdade de escolher o contratante; (iii) a liberdade de escolher o tipo de contrato, isto é, a liberdade de escolher – segundo um juízo de adequação, funcionalidade ou conveniência e observada a disciplina legal – entre os contratos típicos e a liberdade de concluir contratos atípicos; e (iv) a liberdade de determinar o conteúdo e os efeitos do contrato. (STEINMETZ, 2004, pp. 192)

Ocorre que, embora a “liberdade contratual” seja considerada um princípio fundamental no âmbito do direito privado, não se pode caracterizá-la como princípio absoluto, pois se encontra limitado pelo “principio da supremacia da ordem pública”, em virtude de o interesse da coletividade estar sempre prevalecendo sobre os individuais. (GONÇALVES, 2008, pp. 23)

No inicio do século passado, constatou-se que, em virtude do aumento da industrialização, a liberdade para contratar gerava desequilíbrios e, por conseguinte, a exploração dos mais fracos. Havia, portanto, uma igualdade política, mas não a igualdade econômica. Assim, a intervenção estatal tornou-se imprescindível para restabelecer a igualdade dos contratantes. (GONÇALVES, 2008, pp. 23)

Wilson Steinmetz (2004, pp. 192/193) afirma:

A rigor, mesmo à época do mais forte liberalismo econômico – o liberalismo econômico do oitocentos e de parte do novecentos – o princípio da liberdade contratual não era havido como ilimitado, razão pela qual eram fixadas certas limitações legais no próprio âmbito do direito civil. (grifo nosso)

E continua:

É bem verdade que inicialmente predominava uma visão segundo a qual a liberdade contratual devia informar e estruturar as relações contratuais de modo o mais intenso e extenso possível. Essa visão verbalizava-se lapidarmente na pacta sunt servanda e no contractus est Lex inter partes. Contudo, as transformações econômicas e sociais e os novos paradigmas políticos e ideológicos projetaram-se sobre o desenvolvimento e a conformação jurídicos do princípio da liberdade contratual, não a ponto de dissolver o seu conteúdo essencial mínimo – constituído pelos elementos antes pontuados -, mas a ponto de estabelecer uma gama de restrições, relativizando o “peso” do princípio da liberdade contratual no direito privado. Para usar um conceito caro à dogmática contemporânea do direito civil, houve uma “funcionalização” social do contrato, portanto, uma “funcionalização” da liberdade contratual. (grifo nosso)

Para Wilson Steinmetz (2004, pp. 193), as restrições à “autonomia privada” e, por conseguinte, à “liberdade contratual” manifestam-se de diferentes maneiras, a principal delas são as “normas imperativas”, “cláusulas gerais” e os “contratos de adesão”. Veja:

O progressivo aumento das restrições à autonomia privada e a sua expressão máxima, a liberdade contratual, manifestou-se de diferentes modos, com destaque para as normas imperativas, as cláusulas gerais e os contratos de adesão (“contratos de massa”). No direito privado contratual contemporâneo, o número de normas imperativas é proporcionalmente maior ao que era no direito privado contratual clássico e, em consequência, a quantidade de normas dispositivas (interpretativas e supletivas) é proporcionalmente menor. Também ampliou-se significativamente o elenco das cláusulas gerais. Dele fazem parte, atualmente: “ordem pública”, “bons costumes”, “abuso de poder”, “excesso de poder”, ”boa fé”, “probidade”, “equidade”, “finalidade econômica”, “finalidade social”, e “usus do lugar”.

Carlos Roberto Gonçalves (2008, pp. 22/23) afirma que há três tipos de limitações, quais sejam: a faculdade de contratar e de não contratar a escolha do outro contraente (de contratar com que quiser) e, por fim, o conteúdo do contrato. [9]

Embora existam limitações a estes princípios, pois eles não são absolutos – como tantos outros do ordenamento jurídico –, deve-se entender que a “autonomia privada” e a “liberdade de contratar” continuam sendo princípios fundamentais do direito privado.

Tais princípios são, segundo Wilson Steinmetz (2004, pp. 196), “estruturais e estruturantes”. Para ele, os princípios fundamentais são mais um tipo de limitação à autonomia privada, além de tantas outras limitações que já existem no direito privado.

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E, por sofrer algum tipo de limitação, não significa que haverá a extinção de tais princípios, nem mesmo o aniquilamento do Direito Civil, como afirma a teoria da eficácia indireta ou mediata.

3.2. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇOES PRIVADAS NO DIREITO BRASILEIRO: A RELAÇÃO ENTRE A AUTONOMIA PRIVADA E AS TEORIAS DA EFICÁCIA HORIZONTAL

No capítulo segundo, fez-se uma breve explanação acerca das principais teorias da eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares. Analisamos, dessa forma, aceitação das doutrinas no ordenamento jurídico brasileiro.

Neste momento, porém, o objetivo é analisar a relação que a teoria indireta ou mediata e a teoria direta ou imediata fazem entre o principio da autonomia privada e os direitos fundamentais. Dando, portanto, uma maior ênfase à segunda teoria, em virtude de ter sido a teoria adotada pela doutrina brasileira e, sobretudo, pela jurisprudência do STF.

3.2.1.  Autonomia privada e a Teoria da eficácia indireta ou mediata

A teoria da eficácia mediata dos direitos fundamentais tem como alicerce a preservação da “autonomia privada”. De tal modo que, os referidos direitos são aplicados indiretamente nas relações entre indivíduos. (STEINMETZ, 2004, pp. 197)

Dessa forma, os conflitos entre tais direitos e a “autonomia privada” que porventura apareçam, para este teoria, devem ser resolvidos dentro do Direito Privado, jamais pelo Direito Constitucional.

Os doutrinadores que advogam para esta teoria, conforme Wilson Steinmetz (2004, pp. 198), afirmam que a autonomia privada não é apenas um “princípio fundamental do direito privado”, mas uma das manifestações do “princípio da autonomia da pessoa, princípio a um só tempo moral e jurídico”.

Aplicar diretamente os direitos fundamentais seria, para este teoria, a extinção do direito privado, pois comprometeria, demasiadamente, a autonomia privada. Além de, acarretar a insegurança jurídica, na medida em que os problemas privados seriam resolvidos na esfera constitucional. (SARMENTO, 2006, pp. 239)

3.2.2. Autonomia privada e a Teoria da eficácia direta ou imediata

Enquanto a teoria da eficácia indireta ou imediata sustenta a extinção da “autonomia privada” no momento em que há a incidência dos direitos fundamentais no seu âmbito de atuação; a teoria da eficácia direta ou imediata advoga ideia oposta, conforme se verá adiante.

Segundo ensinamentos de Wilson Steinmetz (2004, pp. 199), a Constituição da República Alemã de Weimar de 1919, consagrava expressamente a “liberdade de contratar”: “no tráfico econômico imperará a liberdade de contratação a teor do estabelecido nas leis” (artigo 152.1).

Ocorre que, em algumas constituições contemporâneas - a exemplo das constituições italiana, alemã, portuguesa, espanhola e brasileira - não há disposição expressa ao “princípio da autonomia privada” e / ou à “liberdade de contratação”.

Contudo, ausência de enunciado expresso, segundo Steinmetz (2004, pp. 199), não significa a falta de amparo constitucional da “autonomia privada”.

Nesse sentido, analisando a Constituição da Republica brasileira de 1988, é possível dar à “autonomia privada” a tutela constitucional a partir do “direito de liberdade” (art 5º, caput), do “direito da livre iniciativa” (arts 1º, IV e 170, caput), do “direito ao livre exercício do trabalho” (art 5º, XIII), do “direito de propriedade” (art 5º caput e XXII), do “direito de convenção ou de acordo coletivo” (art 7º, XXVI). Pois, é a partir de tais direitos que se extrai o “poder geral de autodeterminação e autovinculação”, que são norteadores da autonomia privada. (STEINMETZ, 2004, pp. 200)

Assim, para Steinmetz (2004, pp. 200), se os princípios constitucionais citados acima possuem um “poder geral de autodeterminação e autovinculação”, isso significa dizer então que a “autonomia privada” – por ser norteada pela “autodeterminação” e “autovinculação” – também seria uma principio protegido pela própria constituição.

(i) (...) O exercício de livre disposição da propriedade se viabiliza concreta e instrumentalmente pelo contrato. A autonomia privada – aqui, particularizada na liberdade contratual – é principio fundamental do direito contratual. Logo, se a constituição tutela a propriedade (seja como direito fundamental, seja como garantia de instituto), então ela também tutela a autonomia privada. (...) se o exercício do direito de propriedade exige o instituto do contrato, se o instituto do contrato tem por principio fundamental a autonomia privada e se a Constituição protege o direito de propriedade, então a Constituição protege a autonomia privada.

(ii) A Constituição elegeu a livre iniciativa econômica privada como principio fundamental não só da ordem econômica (...) como também da República Federativa do Brasil. Ora, é lógica e faticamente impensável e impraticável a livre iniciativa sem a autonomia privada. Logo, ao eleger a livre iniciativa como principio constitucional, a Constituição também tutelou a autonomia privada. (grifo nosso) (STEINMETZ, 2004, pp. 200)

A “autonomia privada”, analisando sob esse ponto de vista, é objeto de proteção constitucional. De tal modo que, o conflito entre a “autonomia privada” e os direitos fundamentais deve ser resolvido, segundo Steinmetz (2004, pp. 202), como “colisão entre direitos fundamentais em sentido amplo - direitos fundamentais versus bem constitucionalmente protegido”.

Nesse contexto, elimina-se o temor da teoria indireta ou mediata dos direitos fundamentais, pois não haveria a extinção da “autonomia privada”, muito menos a perda de identidade do Direito Civil, uma vez que a “autonomia privada”, como bem um constitucionalmente protegido, jamais poderia ser afastada.

3.3. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: A POSIÇÃO DA DOUTRINA

A elaboração doutrinária acerca do tema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais é bem recente no direito brasileiro, segundo afirma Daniel Sarmento (2006, pp. 246); embora se tenha notícia de que havia alguns estudos precursores.

Assim, torna-se importante uma breve analise acerca do posicionamento de alguns dos principais doutrinadores a respeito do tema.

O doutrinador Ingo Sarlet (apud SARMENTO, 2006, pp. 246) afirma que no ordenamento jurídico brasileiro não há doutrina que consiga afastar o entendimento de que os direitos fundamentais possuem uma eficácia direta nas relações privadas.

No entanto, embora sustente que a eficácia é imediata, entende ser necessário que, diante do caso concreto, a aplicação dos direitos fundamentais deva ser ponderada com o “principio da autonomia privada” do particular. (SARLET apud SARMENTO, 2006, pp. 246)

Em apertada síntese, Wilson Steinmetz (2004, pp. 295) defende a tese da eficácia direta de tais direitos às relações entre particulares. Veja:

Quanto à forma (o modo, o “como”) e ao alcance (a extensão, a medida), a vinculação dos particulares a direitos fundamentais – sobretudo a direitos fundamentais individuais – se materializa como eficácia imediata “matizada” (“modulada” ou “graduada”) por estruturas de ponderação (ordenadas no princípio da proporcionalidade e seus elementos) que, no caso concreto, tomam em consideração os direitos e/ou princípios fundamentais em colisão e as circunstancias relevantes. (grifo nosso)

Enfatiza, ainda, que a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais deve ser definida conforme exigências constitucionais e não segundo a conveniência do Direito privado, em virtude do “princípio da supremacia da Constituição” e “da posição preferencial dos direitos fundamentais no sistema constitucional”. (STEINMETZ, 2004, pp. 296)

No mesmo sentido, Luís Roberto Barroso (BARROSO, 2006, pp. 164/165) afirma que, para a realidade do sistema jurídico brasileiro, a eficácia direta dos direitos fundamentais é a mais adequada e, por isso, tem sido a tese admitida pela doutrina. Mas, para tanto, é necessário a ponderação entre os “princípios constitucionais da livre iniciativa e da autonomia da vontade” e os direitos fundamentais discutidos no caso concreto.

Com maestria, Barroso (2006, pp. 165) acrescenta:

Para esta específica ponderação entre autonomia da vontade versus outro direito fundamental em questão, merecem relevo os seguintes fatores: a) igualdade ou desigualdade material entre as partes (e.g., se uma multinacional renuncia contratualmente a um direito, tal situação é diversa daquela em que o trabalhador humilde faça o mesmo); b) a manifesta injustiça ou falta de razoabilidade do critério (e.g., escola que não admite filhos de pais divorciados); c) preferência para valores existenciais sobre os patrimoniais; d) risco para a dignidade da pessoa humana (e.g., ninguém pode se sujeitar a sanções corporais). (grifo nosso)

É certo que os particulares possuem uma vinculação direta aos direitos fundamentais. Trata-se, dessa maneira, de posição dominante na doutrina brasileira. Mas não se pode afirmar que os referidos direitos são tão amplamente utilizados na esfera privada como os são na relação Estado – indivíduo.

A relação entre particulares não pode ser totalmente abarcada pelos direitos fundamentais, em virtude da “autonomia privada”. Por conta disto, deve ser feita uma ponderação entre os referido direitos e a “autonomia privada”.

Nesse sentido, Daniel Sarmento (2006, pp. 261) sustenta a importância de o legislador definir parâmetros para serem utilizados nos casos de colisão, diminuindo, assim, a discricionariedade do julgador e garantindo a segurança jurídica. Veja:

O estabelecimento destes standards, especialmente no caso brasileiro, parece-nos de importância ímpar. De fato, se, por um lado, a jurisprudência pátria vem caminhando para o reconhecimento de uma ampla eficácia dos direitos fundamentais na esfera privada, por outro, ela o tem feito praticamente sem qualquer fundamentação jurídica. As decisões parecem basear-se mais numa intuição de justiça dos juízes do que numa argumentação dogmática sólida. É preciso avançar neste ponto, para construir alicerces mais firmes na nossa matéria, tornando a aplicação dos direitos fundamentais no âmbito privado intersubjetivamente controlável, e, na medida do possível, relativamente independente dos humores e das inclinações espirituais e ideológicas dos magistrados. Afinal, se há muitos juízes bons, justos e equilibrados, há outros tantos que não o são, e os direitos fundamentais não podem ficar à mercê do psiquismo e da formação moral de quem quer que seja. (grifo nosso) (SARMENTO, 2006, pp261)

Assim, considerando as desigualdades social e econômica da população brasileira, torna-se necessário proteger os direitos fundamentais nas relações privadas, em virtude da vulnerabilidade dos mais fracos. Pois, não poderia, diante da realidade brasileira, a autonomia privada ser um “poder ilimitado” do indivíduo, pois, se assim fosse, tornaria a própria relação privada insustentável.

3.4. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O ordenamento jurídico brasileiro, conforme ensina Daniel Sarmento (2012, pp. 19), desde a Constituição da República de 1934, dedica-se a direitos fundamentais os quais estabelecem relações trabalhistas, ou seja, direitos voltados contra particulares.

Ocorre que, o presente trabalho não estudará estes direitos fundamentais, mas a eficácia horizontal dos direitos fundamentais tradicionalmente vinculados ao Estado, quais sejam: as liberdades individuais e os direitos sociais não trabalhistas.

Assim, será feito uma breve exposição de alguns julgados do Supremo Tribunal Federal sobre o tema. E, para facilitar o entendimento, será dividido em julgados anteriores e posteriores a Constituição da República de 1988.

3.4.1. Entendimento do STF antes da Constituição da República de 1988

Antes da Constituição de República de 1988 ser promulgada, a Corte Suprema, segundo Daniel Sarmento (2012, pp. 19), não tinha definido seu entendimento a respeito da  aplicação e vinculação dos direitos fundamentais aos particulares.

Em uma decisão do ano de 1968, é possível perceber o entendimento tradicional do Supremo, no sentido de que os direitos fundamentais limitavam-se à esfera das relações públicas, ou seja, nas atividades estatais.

A referida decisão foi proferida no Recurso Extraordinário nº 63.279, no qual se discutiu ofensas ao princípio da igualdade causadas pelas cláusulas do estatuto de uma sociedade civil.

Veja-se a Emenda do referido recurso:

A ORGANIZAÇÃO E O FUNCIONAMENTO DE UMA SOCIEDADE CIVIL, REGULADOS PELOS SEUS ESTATUTOS, NÃO SE SUBMETEM AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA, QUE REGE AS RELAÇÕES DE DIREITO PÚBLICO OU AQUELES EM QUE ESTE INTERFERE. O PRECEITO ESTATUTARIO, SEGUNDO O QUAL OS ASSOCIADOS ELEITOS PARA O CONSELHO DELIBERATIVO DE CLUBE ESPORTIVO DURANTE CINCO BIENIOS CONSECUTIVOS PASSAM A SER MEMBROS EFETIVOS DESSE ÓRGÃO, NÃO FERE O ART. 1394 DO CÓDIGO CIVIL. RECURSO PELA LETRA A, NÃO CONHECIDO. (grifo nosso)

(RE 63279 SP, Relator: Ministro AMARAL SANTOS Publicação: DJ 17-06-1968)

Para o ministro Amaral Santos, o principio da isonomia somente deve ser aplicado nas relações privadas se os referidos estatutos possibilitam de aplicação das normas de direito público, caso contrário, os referidos estatutos poderão livremente estabelecer as relações conforme o interesse dos associados.

O voto do ministro relator – acompanhado pelos demais ministros da Terceira Turma – afirmava:

O princípio da isonomia é de aplicação nas relações de direito público, ou naquelas em que o direito público interfere. Assim, nas relações de direito privado, como são as que se estabelecem entre os sócios de uma associação esportiva e esta mesma associação, a primeira coisa a verificar-se, para se cogitar da aplicabilidade ou não do princípio, é se alguma norma de direito público a impõe. Inexistente esta norma, os estatutos da associação dessa natureza poderão livremente estabelecer aquelas relações conforme for do interesse associativo.

(...)

“A inovação do princípio da igualdade de todos perante a lei não estava autorizada. A questão controvertida é estritamente de direitos privado, relacionada com a organização e vida de uma sociedade civil. Além do mais, não se vê em que o Estatuto da associação, na parte impugnada, posse implicar tratamento desigual para os associados”. (grifo nosso)

(RE 63279 SP, Relator: Ministro AMARAL SANTOS Publicação: DJ 17-06-1968)

Ocorre que, a partir de 1977, a Corte Suprema passou a aceitar a possibilidade de direitos fundamentais vincularem também os particulares. Foi o que aconteceu no julgamento pela Segunda Turma do Recurso Extraordinário nº 85.439, no qual foi analisado o direito à privacidade como direito fundamental nas relações privadas.

Veja a ementa do Acórdão:

PROVA CIVIL. GRAVAÇÃO MAGNETICA, FEITA CLANDESTINAMENTE PELO MARIDO, DE LIGAÇÕES TELEFONICAS DA MULHER. INADMISSIBILIDADE DE SUA UTILIZAÇÃO EM PROCESSO JUDICIAL, POR NÃO SER MEIO LEGAL NEM MORALMENTE LEGITIMO (ART. 332 CPC). RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. (grifo nosso)

(RE 85439 RJ - SEGUNDA TURMA, Relator: Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE; Julgamento: 11/11/1977; publicação: DJ 02-12-1977; EMENT VOL-01081-02 PP-00643 RTJ VOL-00084-02 PP-00609)

Assim, o ministro relator Xavier de Albuquerque recusou a gravação telefônica feita por um dos cônjuges sem a devida autorização, para servir de meio de prova do adultério em “ação de desquite”. Salientou, portanto, que a referida prova não poderia ser considerada um meio moralmente legítimo, pois afrontou o artigo 153, §§ 9º e 10º, da Constituição da República de 1967 / 1969 (Emenda constitucional de 1969) [10], que garantiam a inviolabilidade das comunicações e do domicílio, respectivamente.

Veja-se:

(...)

Tenho como patente, por outro lado, à luz do que dispõem a respeito do Código Penal e o Código Brasileiro de Telecomunicações, a ilegalidade do meio probatório de que se valeu, até aqui com a aquiescência das instancias ordinárias, o recorrido, meio que também não pode ser considerado moralmente legítimo, por mais progressistas e elásticos que sejam os padrões de moralidade que se possam utilizar.

Conheço do recurso e lhe dou provimento para, reformando o acórdão recorrido e o despacho saneador que ele manteve, indeferir a produção da questionada prova, determinando o desentranhamento das fitas gravadas e de tudo quanto com ele se relacionar. (grifo nosso)

(RE 85439 RJ - SEGUNDA TURMA, Relator: Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE; Julgamento: 11/11/1977; publicação: DJ 02-12-1977; EMENT VOL-01081-02 PP-00643 RTJ VOL-00084-02 PP-00609)

Daniel Sarmento (SARMENTO, 2012, pp. 20/21) cita o julgamento do Recurso Extraordinário nº 100.094, em 1984, feito pela Primeira Turma do STF. Neste julgado, o ministro relator Rafael Mayer analisou mais um caso de gravação telefônica sem a devida autorização, julgando-o inválida. E, expressamente, determinou a vinculação dos direitos fundamentais – mais precisamente, dos direitos da personalidade – às relações entre particulares. Vejam-se o voto do relator:

Em notável estudo, Ada Grinover afirma que ‘a inadmissibilidade processual da prova ilícita torna-se absoluta, sempre que a ilicitude consista na violação de uma norma constitucional em prejuízo das partes ou de terceiros’, sendo ‘irrelevante indagar se o ilícito foi cometido por agente público ou particulares, porque, em ambos os casos, a prova terá sido obtida com infringência aos princípios constitucionais que garantem os direitos da personalidade. (...)

Nesta boa doutrina, de todo acolhível, cuido se deva reconhecer que o acórdão recorrido deu aplicação ao § 9º do art. 153 da Constituição, de maneira a contrariar o seu mandamento. (grifo nosso)

(RE 100.094 – Primeira Turma, Relator: Min. RAFAEL MAYER, julgamento: 28.06.1984 apud SAMENTO, 2012, pp. 20/21)

Percebe-se, portanto, que a posição do Supremo Tribunal Federal quanto à vinculação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares mudou ao longo dos anos. E, mesmo antes da Constituição da República de 1988, o posicionamento jurisprudencial da Suprema Corte já estava devidamente estabelecido.

3.4.2. Entendimento do STF depois da Constituição da República de 1988

Mesmo depois da promulgação da Constituição da República de 1988, as discussões quanto à eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas ressurgem na Corte Suprema.

Daniel Sarmento (2012, pp. 21 e 26), numa forma de facilitar o entendimento, divide o posicionamento do STF, depois da Constituição de 1988, em duas fases: a primeira seria o reconhecimento implícito e não problematizado da eficácia horizontal, enquanto que a segunda, o reconhecimento explícito da referida eficácia.

Ocorre que, inicialmente, o tema da vinculação dos direitos fundamentais às relações privadas era apenas presumido pela Suprema Corte; não se fazia, portanto, qualquer discussão teórica acerca da incidência de tais direitos, nem mesmo sobre as características e seus limites. (SARMENTO, 2012, pp. 26) Como ocorreu em alguns dos julgamentos a seguir expostos.

Em 1999, o recurso Extraordinário nº 160.222, cujo relator foi o ministro Sepúlveda Pertence, debatia a submissão das empregadas de uma empresa – fabricante de roupas íntima - à revista intima, com a finalidade de impedir furto de mercadorias. Segue a Ementa do referido recurso:

Recurso extraordinário: legitimação da ofendida - ainda que equivocadamente arrolada como testemunha -, não habilitada anteriormente, o que, porem, não a inibe de interpor o recurso, nos quinze dias seguintes ao termino do prazo do Ministério Público, (STF, Sums. 210 e 448). II. Constrangimento ilegal: submissão das operarias de indústria de vestuário a revista intima, sob ameaça de dispensa; sentença condenatória de primeiro grau fundada na garantia constitucional da intimidade e acórdão absolutório do Tribunal de Justiça, porque o constrangimento questionado a intimidade das trabalhadoras, embora existente, fora admitido por sua adesão ao contrato de trabalho: questão que, malgrado a sua relevância constitucional, já não pode ser solvida neste processo, dada a prescrição superveniente, contada desde a sentença de primeira instância e jamais interrompida, desde então.

(RE 160.222 RJ da Primeira Turma Min. Rel. Sepúlveda Pertence. Brasília – DF. Julgamento: 10/04/1995; DJ 01-09-1995 PP-27402 EMENT VOL-01798-07 PP-01443)

Embora o gerente da empresa tenha sido condenado em Primeira Instância por constrangimento ilegal, foi, após, absolvido pelo Tribunal de Alçada do Estado do Rio de Janeiro, cujo acórdão sustentava a validade da revista intima por estar expressamente previsto no contrato de trabalho, celebrado entre a empregadora e as supostas vítimas.

A decisão do STF não apreciou a questão da vinculação da empresa aos direitos constitucionais da privacidade e da dignidade da pessoa humana das empregadas, em virtude da prescrição. No entanto, o relator demonstrou sua posição, no sentido de ser a revista íntima um meio vexatório que não se justificaria sob o argumento de autonomia e respeito contratual.

Poucos anos depois, em 2001, um caso de utilização de prova ilícita por um particular foi o objeto do Recurso Extraordinário nº 251.445 – GO, relatado pelo ministro Celso de Mello.

PROVA ILÍCITA. MATERIAL FOTOGRÁFICO QUE COMPROVARIA A PRÁTICA DELITUOSA (LEI Nº 8.069/90, ART. 241). FOTOS QUE FORAM FURTADAS DO CONSULTÓRIO PROFISSIONAL DO RÉU E QUE, ENTREGUES À POLÍCIA PELO AUTOR DO FURTO, FORAM UTILIZADAS CONTRA O ACUSADO, PARA INCRIMINÁ-LO. INADMISSIBILIDADE (CF, ART. 5º,LVI). GARANTIA CONSTITUCIONAL DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR (CF, ART. 5º,XI). CONSULTÓRIO PROFISSIONAL DE CIRURGIÃO-DENTISTA. ESPAÇO PRIVADO SUJEITO À PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL (CP, ART. 150, § 4º, III) NECESSIDADE DE MANDADO JUDICIAL PARA EFEITO DE INGRESSO DOS AGENTES PÚBLICOS. JURISPRUDÊNCIA. DOUTRINA. (grifo nosso)

(RE 251445 GO, Rel. Min. Celso de Mello; julgamento: 21/06/2000; DJ 03/08/2000 PP-00068)

Neste julgamento, o STF manteve a mesma conduta de se abster da discussão sobre o tema, apesar de considerar que os particulares estão vinculados aos direitos fundamentais.

Neste sentido, sustenta Daniel Sarmento:

(...) é possível concluir que, mesmo sem entrar na discussão das teses jurídicas sobre a forma de vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, a jurisprudência brasileira vem aplicando diretamente os direitos individuais consagrados na Constituição na resolução de litígios privados.

(SARMENTO, apud BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário – RE 201.819 RJ, voto Min. Gilmar Mendes).

E assim continuou agindo até que, em 2005, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 201.819-8, pela Segunda Turma, os ministros iniciaram o debate sobre as diversas teorias e correntes doutrinarias que cercam o tema. (SARMENTO, 2012, pp. 26)

Segue a Ementa do referido recurso:

SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO.

PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO.

I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.

II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.

III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO - ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não - estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88).

IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO.

(grifo nosso)

(Recurso Extraordinário – RE 201.819 RJ. Segunda Turma. Min. Rel.: Ellen Gracie; julgamento: 10/10/2005; DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577)

O referido tratava de um caso que um associado da União brasileira de Compositores foi punido com a expulsão sem, contudo, ter direito à defesa. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro admitiu em decisão a afronta ao princípio constitucional da ampla defesa. Houve recurso contra a decisão e o STF teve que apreciá-lo.

A ministra relatora Ellen Gracie deu provimento ao recurso, sustentando que as associações privadas possuem a liberdade de estabelecer suas próprias normas, deste que haja o respeito às leis em vigor. Acrescenta, ainda, que ao ingressar na sociedade, presume-se que o indivíduo conheça suas regras. Assim, não poderia invocar o art. 5º, LV da Constituição da República. Seu entendimento foi acompanhado pelo ministro Carlos Velloso.

Após pedir vistas, o ministro Gilmar Mendes apresentou seu voto afirmando se tratar de um caso típico de aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas. E, por conseguinte, a necessidade de se aplicar o direito de ampla defesa.

Apesar de ter ressaltado diversas correntes doutrinarias estrangeiras e brasileiras, o ministro demonstrou sua despreocupação na tese mais adequada a respeito da controvérsia.

No mesmo sentido, o ministro Joaquim Barbosa, que não se comprometeu com as doutrinas sobre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, embora tenha criticado a tese da “state action” ao afirmar a incompatibilização com o ordenamento jurídico brasileiro.

Por fim, o ministro Celso de Mello – que desempatou o julgamento – sustentou expressamente a teoria da eficácia horizontal direta no ordenamento jurídico brasileiro. Para ele:

(...) a autonomia privada – que encontra claras limitações de ordem jurídica – não pode ser exercida em detrimento aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de se ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se  impõem aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. (grifo nosso)

(Recurso Extraordinário – RE 201.819 RJ. Segunda Turna. Min. Rel.: Ellen Gracie; julgamento: 10/10/2005; DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577)

Por todo o exposto, percebe-se que a jurisprudência brasileira, mais precisamente do Supremo Tribunal Federal, aplica a eficácia horizontal direta ou imediata dos direitos fundamentais na esfera privada, ou seja, utiliza diretamente os direitos individuais consagrados na Constituição da República de 1988 para dirimir os conflitos das relações privadas.

Assim, não há maiores dificuldades em reconhecer que no ordenamento jurídico brasileiro a teoria mais adequada à realidade nacional é a da eficácia horizontal direta e imediata dos direitos fundamentais – conforme doutrina majoritária e jurisprudência dominante no STF.

No Brasil, a desigualdade social e econômica ainda está presente na realidade da população, acarretando, portanto, a disparidade nas relações privadas. Assim, faz-se necessária a vinculação de tais relações aos direitos fundamentais, cujo objetivo é garantir a igualdade dos indivíduos e não a eliminação da autonomia privada, a qual subsiste, mas não como poder absoluto.

Sobre a autora
Nadir Cancio de Albuquerque

Advogada formada pela Universidade Federal de Alagoas e pós graduada

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE, Nadir Cancio. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3689, 7 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25115. Acesso em: 22 nov. 2024.

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