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Juízo de tipicidade do seqüestro relâmpago

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Agenda 01/01/2002 às 01:00

Desde os primórdios o homem vive cercado pela ocorrência de fatos sociais. Dentre tais eventos, os gerados pela exteriorização da vontade dos indivíduos solicitam a todo instante a elaboração de normas que regulem a convivência entre os mesmos.

Tem o presente ensaio, como pano de fundo, a adequação dessa dicotomia fato-norma ao acontecimento social do "seqüestro relâmpago" ainda não acolhido especificamente pela legislação criminal pátria, conforme será analisado.

De fato, sob os ditames dos preceitos normativos, o homem vem sendo e sempre será tolhido em sua liberdade, já que seu comportamento deve estar invariavelmente adstrito aos limites ali impostos.

Dessa forma, vislumbra-se um ilícito jurídico no exato instante em que qualquer integrante do corpo social olvida o cumprimento dos ditos preceitos, ultrapassando os liames neles traçados e, via de conseqüência, agindo em desacordo com o ordenamento vigente. O gênero ilícito jurídico, assim demonstrado, tem no ilícito penal a sua espécie mais relevante, tendo em vista serem protegidos nesse último os bens de maior importância para os componentes da sociedade.

Daí decorre o raciocínio segundo o qual falar em Direito Penal significa discorrer acerca da violência exercida contra determinados bens, cuja tutela necessariamente precisa ser exercida pelas normas criminais, haja vista terem os demais ramos do Direito demonstrado a sua incapacidade de, sozinhos, conferirem aos mesmos a proteção indispensável.

Já dizia Bettiol que o objetivo fundamental da norma penal é a tutela de bens, valores e interesses, para além dos quais inexistiria tutela possível [1].

Possui, destarte, o Direito Penal natureza peculiar de meio de controle social formalizado e secundário, já que procura resolver conflitos interindividuais que se mostraram resistentes aos meios extrapenais de controle.

Todo esse pensamento foi sintetizado por Binding, para quem o Direito Penal não constitui um "sistema exaustivo" de proteção de bens jurídicos, de sorte a abranger todos os bens que constituem o universo de bens do indivíduo; representa sim um "sistema descontínuo" que seleciona apenas alguns dos fatos considerados ilícitos por outros ramos da ciência jurídica ou, em outras palavras, considera em seu objeto tão somente os ilícitos jurídicos que devem ser criminalizados ante a ineficácia da proteção extrapenal [2].

Eis, portanto, o caráter fragmentário do Direito Penal, através do qual, num primeiro passo, seleciona-se o objeto a ser posto sob a proteção social e, posteriormente, confere-se relevância punitiva tão somente às condutas que atinjam esse objeto ou, ao menos, visem a esse fim.

Assim, por ser, indiscutivelmente, o "seqüestro relâmpago" um conjunto de ações repugnantes em qualquer sociedade, efetivamente deve ele fazer parte do rol das condutas selecionadas como alvo da repressão penal. Dessarte, é a finalidade deste ensaio perquirir quais dispositivos normativos que hoje o alcançam.

Com efeito, da referida fragmentariedade surge uma construção tipológica individualizadora das condutas que são consideradas gravemente lesivas àqueles bens jurídicos que, por motivos já vistos, necessitam da tutela penal.

Esta a representação esquemática do tipo legal; figura que atravessou desde os fins do século XIX e durante todo o século passado um período de constantes modificações em seu conceito e campo de abrangência.

A fim de desenvolver o presente tema, é salutar a demonstração resumida de dita evolução, vez que no seu decorrer o tipo penal açambarcou inúmeros elementos que, embora não fizessem parte de seu conceito inicial, hoje são indispensáveis à sua configuração.

Por conseguinte, importa destacar como se deu e qual é o atual conceito de tipo penal, por que será através da análise dos elementos desse conceito que, mais à frente, se poderá realizar um juízo de tipicidade sobre a figura do "seqüestro relâmpago".

De fato, fundamentais são os apontamentos históricos para posteriormente poder-se adequar a conduta praticada no "seqüestro relâmpago" a um ou a alguns tipos legais em específico, fazendo uso para tanto do denominado "Juízo de Tipicidade".

Cumpre, assim, destacar que a primazia conceitual de tipo delitivo é atribuída a Ernst Von Beling que o definiu simplesmente como a "descrição objetiva do crime realizada pela norma penal ".

Entendia ele que a tipicidade era a proibição de causar o resultado típico e a antijuridicidade o choque da concretização deste resultado com a ordem jurídica.

Max Ernest Mayer tratou o assunto de forma pouco diferente, mas contribuiu sobremaneira para estender o conceito de tipo penal, pois, além de ter admitido a inclusão neste de elementos objetivos, acrescentou à definição de tipicidade a idéia de ser ela a ratio cognoscendi da ilicitude, isto é, em palavras de Miguel Reale Jr.[3], considerou que "a tipicidade revela indiciariamente a antijuridicidade".

E. Mezger, por sua vez, desenvolveu e defendeu a teoria dos elementos subjetivos, pondo estes como integrantes do tipo. Afora isso combateu a "neutralidade valorativa" do conceito de tipo enunciado por Beling, e complementou o estudo de Mayer ao afirmar que a tipicidade seria muito mais do que um simples indício da antijuridicidade; seria, na realidade, a base desta, constituindo assim a sua ratio essendi.

Hans Welzel, no entanto, foi quem revolucionou o direito penal moderno, e particularmente o conceito de tipo, ao apresentar sua doutrina finalista da ação, pela primeira vez, no trabalho intitulado Kausalität und Handlung (Causalidade e Ação).

Com efeito, o saudoso jurista alemão, utilizando como ponto de partida um conceito ontológico de ação humana, considerou que também o ordenamento jurídico possui limites, pois a despeito de selecionar e determinar quais os comportamentos sociais que quer valorar e proibir (princípio da fragmentariedade do direito penal), não deve e não pode pretender ir além disso, porque não pode modificar os dados da própria realidade, quando valorados e incluídos nos tipos delitivos [4].

Em sua argumentação, Welzel cita o seguinte exemplo: "O direito não pode ordenar às mulheres que apressem a gravidez e que em seis meses dêem à luz crianças capazes de sobreviver, como também não pode proibi-las de terem abortos. Mas pode o direito ordenar-lhes que se comportem de modo a não facilitar a ocorrência de abortos, assim como proibi-las de provocarem abortos. As normas jurídicas não podem, pois, ordenar ou proibir meros processos causais, mas somente atos orientados finalisticamente (ações) ou omissões desses mesmos atos" [5].

A partir dessa noção, desenvolve-se o finalismo sob o impulso da assertiva de que o homem sempre atua de forma consciente, orientado pelo seu saber causal, em busca de um objetivo previamente determinado.

A despeito de todas as críticas que são feitas a esse pensamento, principalmente as de que os atos automáticos, inconscientes bem como o comportamento culposo não possuem como nota característica a "finalidade", e deixando de lado também toda a defesa que Welzel e seus seguidores fizeram dessa nova doutrina, o importante a destacar é que ela desloca, e quanto a isso poucas são as contestações que subsistem, o dolo e a culpa para o interior do injusto, transformando com isso toda a estrutura do tipo penal.

Dado o ensejo, surgiram os tipos penais dolosos e os tipos penais culposos; os primeiros descrevendo explícita ou implicitamente, como um de seus elementos essenciais, o dolo; os últimos, a culpa stricto sensu [6].

Como conseqüência formou-se um novo conceito de culpabilidade, um tanto quanto esvaziado, eis que puramente normativo, mas cuja restrição foi extremamente relevante para que o tipo penal tomasse a abrangência hoje conhecida e aceita de forma tão ampla.

Presentemente vige a lógica de que, se o tipo penal é o modelo de ação proibida, deve ele exprimir todos os elementos essenciais da ação descrita contendo assim, não apenas o elemento valorativo que espelha o seu conteúdo material e atua como fator limitativo do juízo de adequação típica, como também os elementos objetivos e subjetivos da ação do agente.

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Nossas atuais normas penais obedecem a essa nova formatação da estrutura delitiva, estando nelas contidas todas as condutas proscritas pela nossa sociedade.

Assim, para que qualquer um do povo possa ser destinatário de uma sanção de natureza criminal, faz-se mister, a princípio (pois não se está analisando a ilicitude e a culpabilidade da ação), que a conduta concreta seja idêntica à conduta paradigmática traçada numa das normas penais vigentes (nulla poena sine praevia lege); e o esforço intelectivo que o intérprete faz para saber, em cada caso específico, qual das normas penais prevê a ação incriminada é o que se chama de "Juízo de Tipicidade".

Consiste, portanto, o "Juízo de Tipicidade" na separação de cada um dos elementos da conduta tida como ilícita para posterior contraste entre eles e os elementos das condutas descritas abstratamente numa ou em nalgumas capitulações jurídicas, até que se encontre a identidade entre uma e outra. É a busca do intérprete pelo tipo ou tipos penais que possuam, ainda que previstos abstratamente, os elementos componentes da conduta do agente.

Com efeito, ensina o festejado Cezar Roberto Bitencourt que "Há uma operação intelectual de conexão entre a infinita variedade de fatos possíveis da vida real e o modelo típico descrito na lei. Essa operação que consiste em analisar se determinada conduta apresenta os requisitos que a lei exige, para qualificá-la como infração penal, chama-se "Juízo de Tipicidade" [7].

Sendo assim, o primeiro passo para realizar um "Juízo de Tipicidade" do "Seqüestro Relâmpago" é definir qual é a conduta praticada pelos delinqüentes que o consumam.

Como é cediço, o seqüestro relâmpago constitui-se num fato social cada vez mais freqüente. Também é sabido não existir no Código Penal Brasileiro o tipo denominado "seqüestro relâmpago", sendo este, na realidade, um nome impróprio desprovido de precisão técnica. De uma forma ou de outra, novo, ou não tipificado especificamente, a sua conduta é hoje possibilitada em função do avanço tecnológico, que não podia ser previsto pelo legislador de 1940.

Em razão dessas constatações, restou aos operadores do Direito a interpretação dos tipos penais já existentes de forma a adequar o fato, como já se disse, impropriamente denominado "seqüestro relâmpago", a algum ou alguns deles. Eis o objetivo deste trabalho.

De fato, o uso demasiadamente continuado de cheques pelos integrantes da classe média e da alta, o acesso facilitado a bens de consumo que interessam aos marginais, a possibilidade de saques de dinheiro em espécie em bancos (caixas) eletrônicos cujo funcionamento não é interrompido (24 horas), dentre outras causas são, incontestavelmente, as causas propulsoras do aparecimento e da proliferação da prática do delito em discussão.

Reflexo ainda da inversão de valores que vivenciamos, onde o respeito pela liberdade e integridade alheias anda esquecido, o seqüestro relâmpago, como o próprio nome já exprime, consiste inicialmente na privação da liberdade exercida por um ou mais meliantes contra determinada pessoa ou pessoas, ainda que dita privação perdure por espaço de tempo inferior ao que normalmente se verifica na ocorrência de um seqüestro propriamente dito.

Com finalidade meramente didática, passa-se a analisar a conduta do ilícito em foco como sendo praticada apenas por um agente contra uma única vítima, tendo em vista ser importante, não a particularidade referente ao concurso de pessoas, mas sim aquela respeitante à adequação típica.

Como sói acontecer na espécie, a intenção do autor do fato é, geralmente, dupla, pois visa ele, a uma, subtrair da vítima alguns de seus pertences como relógio, carteira, celular, bolsa, carro, óculos, pulseira e o que mais de valor estiver em seu poder; e, a duas, constranger a vítima a lhe entregar o cartão da sua conta corrente, bem como a respectiva senha para, posteriormente, estando a vítima ainda com a sua liberdade privada, serem efetuados saques em caixas eletrônicos de dinheiro em espécie.

É essencial frisar, no entanto, que, apesar de ser normal a germinação na mente do delinqüente da idéia de promover todos os atos supradescritos, nem sempre podem os mesmos ser praticados em sua totalidade pelos motivos mais diversos, os quais estão além do querer do agente.

Por isso, é indispensável a constatação de que o seqüestro relâmpago, como fato social não tipificado com esse nomem júris, possui duas hipóteses de consumação, a saber:

1 - na primeira, o criminoso consegue por em prática tudo aquilo que idealizou, pois, privando a liberdade da vítima, subtrai um ou alguns pertences que estavam na posse da mesma e ainda realiza saques em caixas eletrônicos com o cartão bancário desta;

2 – na segunda, contudo, por um motivo qualquer (ex: a vítima estava só com a carteira e nesta não tinha dinheiro, nem cheques; ou o agente, receoso por estar praticando um delito, concentrou-se apenas nos saques realizados nos caixas eletrônicos e não buscou as subtrações; etc), o meliante, após privar a vítima de sua liberdade, mas sem subtrair-lhe objeto algum, apenas a coage a efetivar saques nos chamados bancos 24 horas ou a tolerar que tal seja feito com o seu cartão bancário.

De plano, verifica-se, com facilidade, que o ilícito vulgarmente denominado de "seqüestro relâmpago" não se exaure no ato único de o delinqüente exigir o fornecimento pela vítima da senha do cartão bancário, como alguns autores chegaram a pensar.

O fato social conhecido por "seqüestro relâmpago" é plurissubsistente, ou seja, sua execução desdobra-se em, no mínimo, dois atos sucessivos, de vez que sempre estão presentes, pelo menos, a privação da liberdade e a coação acima citada.

De imediato, parte-se para análise da conduta mais freqüente que, sem dúvida alguma, é a primeira hipótese.


Análise da 1ª hipótese de ocorrência do "seqüestro relâmpago" -

Antes de passar ao Juízo de Tipicidade propriamente dito da primeira situação, cumpre, no entanto, fazer menção à edição, já não mais tão recente, da Lei nº 9.426/96. Dita norma alterou em três pontos o art. 157 do Cód. Penal, merecendo consideração tão somente o acréscimo do inc. V, ao §2º, do citado artigo.

Dispõe textualmente o aludido parágrafo e inciso:

"Art. 157 – omissis....

§2º - A pena aumenta-se de um terço até a metade:

V – se o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo a sua liberdade".

Parece que a intenção do legislador foi a de alcançar com essa nova previsão legal exatamente o objeto em estudo e não faltaram doutrinadores para afirmar que o seu intento restou coroado de êxito.

Outros, porém, defenderam que o legislador careceu de maior técnica e precisão na formulação da conduta tipificada pelo supra-transcrito preceito, não conseguindo assim atingir o seu explícito desiderato.

Esse último entendimento afigura-se hoje como dominante, até mesmo entre nossos congressistas, vez que o Deputado Federal Eduardo Campos já propôs outro projeto de lei cuja intenção declarada é tipificar o seqüestro relâmpago (projeto de lei nº 5.506/01).

A análise da questão pode remeter a uma opinião intermediária, nos termos a seguir expostos.

Apenas para lembrar, a hipótese que será agora analisada é a do criminoso que, por conseguir por em prática tudo aquilo que idealizou na fase da cogitação do iter criminis, subtrai um ou alguns pertences do ofendido e ainda obtém êxito quanto à efetuação de saques em caixas eletrônicos com o cartão bancário deste.

De forma objetiva, pode-se dizer que o agente praticou: a) a abordagem à vítima, utilizando-se de violência ou sob a ameaça de, do que decorreu a privação da liberdade durante todo o itinerário do ilícito; b) o apossamento dos bens de propriedade da vítima, tais como: carteira, celular, relógio etc; c) a coação para que o ofendido efetue saques ele próprio ou forneça ao delinqüente a senha do seu cartão bancário e, por fim, d) a efetivação dos saques nos caixas eletrônicos com a posterior liberação da vítima.

Verifica-se, de logo, que o ato de privar a liberdade foi praticado pelo delinqüente com a finalidade específica de assegurar a consumação dos atos posteriores, os quais efetivamente importaram em prejuízo ao patrimônio da vítima. Pode-se dizer, portanto, que o ato ilícito consumado quando da privação da liberdade da vítima foi cometido como o fim único de possibilitar o sucesso de toda a empreitada criminosa, isto é, tanto do desapossamento dos pertences da vítima quanto dos saques de dinheiro nos bancos 24 horas.

Assim, tendo em vista ser a consumação das subtrações e dos saques o motivo que leva o meliante a praticar o "seqüestro relâmpago", analisar-se-á primeiramente a tipificação dessas condutas (subtração/saque) para, apenas posteriormente, adequar-se ao fato típico já delineado o elemento privação da liberdade.

Posto isso, tem-se que a primeira ação a ser tipificada (apossar-se o agente dos bens que estão em poder da vítima) configura, ineludivelmente, o tipo penal descrito no caput do art. 157 do Cód. Penal. De fato, conforme pode ser facilmente constatado, todos os elementos integradores do delito de roubo estão presentes na referida conduta.

Como um crime comum, pode ser praticado por qualquer pessoa e, por essa razão, a figura do delinqüente que pratica os chamados "seqüestros relâmpagos" adequa-se perfeitamente ao sujeito ativo previsto abstratamente pela norma.

Igualmente, a conduta descrita na aludida capitulação jurídica (art. 157 CP), espelha perfeitamente à ação sob comento, pois diz que pratica roubo quem: "Subtrair coisa móvel alheia...", não havendo, ainda, como negar a presença do elemento normativo do tipo, especificado no termo "alheia", vez que evidentemente não será subtraído bem de propriedade do autor do fato.

Ademais, estão presentes na ação delituosa em tela tanto o dolo, isto é, a vontade de subtrair (animus rem sibi habendi), quanto o elemento subjetivo especial do tipo contido na expressão "...para si ou para outrem...".

E, por fim, constata-se que o desapossamento em questão somente foi possível graças à ação violenta ou terrivelmente ameaçadora do agente, conforme exigência expressa do dispositivo em foco.

Assim, relembrando a conduta sob análise, pode-se ter como certa a infringência pelo agente, numa primeira ação, do tipo penal de roubo, haja vista o desapossamento que sofreu a vítima de seu celular, de seu relógio, de sua pulseira, de seu carro etc.

Questiona-se, no entanto: e a coação exercida sobre a vítima para que ela própria efetue os saques nos caixas eletrônicos ou venha a fornecer a senha de seu cartão bancário, não estaria também compreendida na consumação do clássico delito contra o patrimônio (roubo)?

Acredita-se que não, e grande parte da doutrina e jurisprudência, até mesmo a do Pretório Excelso, tem se manifestado nesse sentido.

Seguindo essa orientação, a coação supracitada configura, na realidade, um crime de extorsão e razão assiste aos que assim se posicionam pelos fundamentos abaixo perfilados.

O eminente Damásio de Jesus, em artigo de sua lavra denominado "Seqüestro Relâmpago" [8], disserta esplendidamente acerca do enquadramento típico da conduta delituosa que consiste no constrangimento da vítima pelo sujeito ativo para efetivar os saques ou entregar o cartão magnético e fornecer a respectiva senha.

Segundo explica o renomado doutrinador, existem três orientações que distinguem o tipo penal de roubo do tipo de extorsão, sendo duas delas minoritárias e uma outra, hoje, amplamente dominante entre os jurisconsultos.

De acordo com a primeira das teorias minoritárias, o crime de extorsão reclama um intervalo temporal entre a conduta constrangedora do autor, o comportamento da vítima e a obtenção da indevida vantagem econômica; lapso este no qual a vítima não pode ficar fisicamente a mercê do extorsionário, o que diferenciaria essa capitulação da do roubo.

Para os que defendem essa teoria, a conduta de constranger alguém a fornecer sua senha de acesso aos caixas eletrônicos constituiria crime de roubo e não de extorsão, pois que, conforme Magalhães Noronha [9], "não há extorsão quando o mal prenunciado é atual ou iminente e a obtenção do objeto material, contemporânea".

Entretanto, com seu brilho habitual, Nelson Hungria preleciona: "... dizer-se que no roubo a violência e a locupletação se realizam no mesmo contexto de ação, enquanto na extorsão há um lapso de tempo, ainda que breve, entre uma e outra, é distinguir onde a lei não distingue. Tanto pode haver extorsão com violência atual e locupletação futura quanto com violência e locupletação contemporâneas" [10].

Na realidade, embora a teoria sub examine advenha da doutrina italiana, mais especificamente da lição do iluminado mestre Francesco Carrara que dizia "no roubo o mal é iminente e o proveito contemporâneo; na extorsão, o mal prometido é futuro e futura a vantagem a que se visa", não há substrato jurídico algum que à ampare no ordenamento vigente em nosso país.

A segunda das correntes minoritárias citadas por Damásio de Jesus, esposa a idéia de que no roubo o agente toma a coisa ou obriga a vítima (sem opção) a entregá-la; enquanto que na extorsão a vítima pode optar entre acatar a ordem ou oferecer resistência. No primeiro haveria contrectatio na outra traditio.

Na esteira desse entendimento, a ação em estudo (constranger alguém a fornecer sua senha de acesso aos caixas eletrônicos) também configura o crime de roubo e não extorsão, haja vista estar a vítima, como dito, sem poder optar por agir de forma diferente (v. RSTJ 104/489 e RT 718/429).

A crítica feita, todavia, é a de que, se aplicada essa orientação, haveria um esvaziamento do tipo legal previsto no art. 158 do Cód. Penal (extorsão), posto que apenas em raríssimos casos concretos teria o julgador prova suficiente de que na psique do constrangido tinha ele a opção de entregar ou não ao malfeitor o bem por ele visado.

Ademais, como é sabido, toda a teoria do delito, hoje baseada na responsabilidade subjetiva, tem como referencial o subjetivismo do agente criminoso. Noutras palavras, funda-se no processo causal que toma forma no campo intelectivo do autor do fato e exterioriza-se através de sua atividade.

Ora, condicionar a ocorrência de determinado tipo penal ao subjetivismo do sujeito passivo representa um ato de repúdio à moderna teoria do delito, vez que importa num retrocesso à responsabilidade objetiva e numa negação da humanização do direito penal.

Impunha-se, então, que o tino diferenciador fosse baseado em elementos objetivos ou, se subjetivos, relacionados ao agente criminoso. Dessa necessidade, eis que surgiu a última orientação, hoje indiscutivelmente majoritária, segundo a qual "o critério mais explícito e preciso na diferenciação entre a extorsão e o roubo é o da prescindibilidade ou não do comportamento da vítima" [11].

Conforme explicita Damásio no artigo supra-referido: "quando o autor pode obter o objeto material dispensando a conduta da vítima, trata-se de roubo; quando, entretanto, a consecução do escopo do agente depende necessariamente da ação do sujeito passivo, cuida-se de extorsão".

Com efeito, está ao inteiro arbítrio do ladrão, pratique a vítima algum ato ou não, apossar-se da carteira, da bolsa, do relógio, do celular, do carro... Ele detém o domínio do resultado do ilícito. Porém, doutra sorte, não se dispondo a vítima a efetivar os saques ou a fornecer a senha de seu cartão bancário, não haverá saque algum a ser efetuado nos caixas eletrônicos; o domínio do resultado é da vítima.

Quando se fala em domínio do resultado, não se está fazendo menção à opção da vítima em agir ou não agir da forma solicitada pelo coator, está-se referindo ao fato de que o marginal não conseguirá de forma alguma atingir seu desiderato sem que a vítima pratique pelo menos um ato. Por exemplo, se a vítima ao ser abordada pelo assaltante desmaiar ou entrar em estado de choque, o meliante, naquele instante, poderá até praticar a extorsão, posto que esta se consuma com o mero constrangimento (crime formal), mas exauri-la, efetuando saques nos caixas eletrônicos, será impossível.

Aí, neste entendimento, parece estar a diferenciação perfeita entre roubo e extorsão.

Nesse diapasão, conclui-se que na hipótese sob análise - a do criminoso que subtrai um ou alguns pertences do ofendido e ainda efetua saques em caixas eletrônicos com o cartão bancário deste – houve, conforme incansável demonstração, um crime de roubo e outro de extorsão.

De notar que a ida da vítima ao banco 24 horas ou a efetuação de saques pelo autor do fato, constitui-se em mero exaurimento do ilícito extorsão, consumado desde a efetiva coação do agente sobre a vítima.

Por serem crimes que, embora do mesmo gênero, não são da mesma espécie, inadmite-se, conforme remansosa jurisprudência inclusive da Suprema Corte, continuidade delitiva entre o roubo e a extorsão (v. RTJ 100/940 e RT 733/696). Deve, portanto, o autor do fato sob comento responder por roubo em concurso material com a extorsão.

Contudo, resta à moldura típica que se está desenhando o enquadramento do ato criminoso praticado quando da privação da liberdade do sujeito passivo.

Alguns intérpretes sustentam que, por existir um conflito aparente de normas penais, deve ser aplicado na espécie o princípio da consunção ou absorção, segundo o qual o crime-meio deve sempre ser absorvido pelo crime-fim.

Argumentam que a privação de liberdade, in casu, por ter servido de meio para a consumação do roubo e da extorsão restou absorvida por um ou por outro e, dessa forma, em nada influenciaria no momento de se definir quais os tipos penais transgredidos pelo agente.

Há nesse posicionamento, entretanto, um equívoco quanto ao princípio regente do conflito aparente de normas a ser aplicado.

O ato que importa em privação de liberdade tanto está descrito, de forma genérica, no art. 148 do Código Penal, sob o nomem juris de "seqüestro ou cárcere privado", quanto noutros dispositivos do mesmo Estatuto Substantivo os quais, no entanto, o prevêem inserido num contexto específico.

É o que ocorre, por exemplo, no inc. V, do §2º, do art. 157 (roubo qualificado pela restrição da liberdade) e no caput, do art. 159 (extorsão mediante seqüestro).

Ora, como se sabe, de acordo com a doutrina majoritária, o chamado conflito aparente de normas pode ser solucionado através da aplicação de três princípios: o da especialidade, o da subsidiariedade e o, já citado, da consunção ou absorção.

Aplica-se o primeiro quando uma norma penal, dita especial, reúne todos os elementos de uma outra (norma geral) acrescidos de mais algum, denominado elemento especializante.

Eis a solução procurada. Como visto, o art. 148 do C.P. é a norma penal geral no que respeita ao ato ilícito "privação da liberdade". Contudo, quando esse ato ilícito é praticado num contexto específico - durante a consumação de um roubo ou de uma extorsão -, deve-se aplicar não o art. 148, mas sim os dispositivos que prevêem o elemento especializante, ou seja, o contexto no qual o ato foi praticado (art. 157, §2º, V, e art. 159, caput, ambos do C.P.).

Por esse motivo, razão jurídica não há para que se aplique, ao invés do princípio da especialidade, o da consunção para resolver essa pendenga.

Ademais, afora a constatação de que o caso em estudo se adapta com perfeição ao princípio da especialidade, cumpre trazer à baila esclarecedora lição de Cezar Roberto Bitencourt, a seguir transcrita: "o princípio fundamental para a solução do conflito aparente de normas é o princípio da especialidade que, por ser o de maior rigor, é o mais adotado pela doutrina. Os demais princípios são subsidiários e somente devem ser lembrados quando o primeiro não resolver satisfatoriamente o conflito" [12]. (grifo inexistente no original)

Destarte, muito embora tenha a privação de liberdade sido praticada para garantir o sucesso da empreitada criminosa por completo, afastada está tanto a absorção desta pelo roubo ou pela extorsão, quanto o cúmulo material desses com o tipo de seqüestro ou cárcere privado.

Impõe-se, então, a modificação da tipificação acima definida – roubo simples em concurso material com extorsão – para, ou qualificar-se o delito de roubo, ou transformar a mera extorsão em extorsão mediante seqüestro.

Mas, qual dessas possibilidades reveste-se com o manto da justeza e da exatidão técnica?

Trocando em miúdos, deve-se reconhecer a privação da liberdade como integrante do delito de extorsão deslocando a tipificação jurídica do art. 158 para o art. 159 do Cód. Penal Pátrio ou, ao revés, deve-se reconhecê-la como parte componente do crime de roubo, qualificando essa capitulação?

Antes de responder a esses questionamentos, anote-se, de logo, que nenhum intérprete pode partir do pressuposto de que o agente, quando cogitou a prática do delito (seqüestro relâmpago), imaginou que iria, por intermédio da privação da liberdade da vítima, infringir dois tipos penais distintos (o roubo e a extorsão).

É bem mais plausível que tenha ele imaginado que iria manter a vítima em seu poder, sob constante ameaça ou violência, para auferir o maior proveito possível dessa situação, subtraindo a maior quantidade possível de bens e, caso a vítima possua cartão bancário e nada mais impeça o saque em caixas eletrônicos, efetivá-los também.

Isso precisa ser aclarado para que não se diga, durante a análise de um determinado caso concreto, que deve a privação da liberdade ser vista como parte integrante do roubo ou da extorsão a depender do fato típico praticado pelo agente em primeiro lugar.

Posto isso, passando à análise técnica do imbróglio, verifica-se que, embora esquematicamente seja possível a aceitação de ambas as alternativas, juridicamente impõe-se a admissão daquela em que a privação da liberdade, nesta hipótese de "seqüestro relâmpago", é elemento do delito de roubo, qualificando-o, portanto, nos termos do supra-transcrito inc. V, do §2º, do art. 157 do Código Penal Pátrio.

Tal conclusão decorre, menos do fato de ter sido essa a intenção do legislador ao editar a lei 9.426/96, do que da aplicação do tradicionalíssimo princípio inspirador da atividade interpretativa no processo penal, qual seja: o do favor rei.

Conforme assinalou Bettiol: "nos casos em que não for possível uma interpretação unívoca, mas se conclua pela possibilidade de duas interpretações antagônicas de uma norma legal (antinomia interpretativa), a obrigação é de se escolher a interpretação mais favorável ao réu" [13] (grifos inexistentes no original).

Se na antinomia interpretativa de uma única norma legal autoriza-se a aplicação do princípio em foco (favor rei), evidentemente que tal também se dará quando houver conflito de normas sem solução proposta pelos princípios que o regem (especialidade, subsidiariedade e consunção).

Assim, finalizando o "Juízo de Tipicidade do Seqüestro Relâmpago" nesta 1ª Hipótese de sua ocorrência - subtração de pertences que estavam na posse da vítima e ainda efetivação de saques em caixas eletrônicos com o cartão bancário desta -, concluí-se que o autor deste fato responderá pela prática do crime de roubo qualificado em concurso material com o de extorsão.

Sobre o autor
Hugo José Lucena de Mendonça

bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, assessor do Tribunal de Justiça de Pernambuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDONÇA, Hugo José Lucena. Juízo de tipicidade do seqüestro relâmpago. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 53, 1 jan. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2513. Acesso em: 5 nov. 2024.

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