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Juízo de tipicidade do seqüestro relâmpago

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Agenda 01/01/2002 às 01:00

Análise da 2ª hipótese de ocorrência do "seqüestro relâmpago"-

Por oportuno, merece ser dito novamente que o "seqüestro relâmpago", como acontecimento social que é, possui duas hipóteses de ocorrência: a que foi acima analisada e aquela na qual o agente, após privar a liberdade da vítima, não subtrai nenhum de seus bens, mas apenas a coage a efetivar ela própria saques nos chamados bancos 24 horas ou a tolerar que tal seja feito com o seu cartão bancário.

Consumada essa 2ª Hipótese, surge um "seqüestro relâmpago" com um iter criminis menor, posto que menor é o número de ações praticadas, sendo elas: a abordagem, de onde decorre a privação da liberdade, e o desfalque no patrimônio da vítima exercido mediante saques em caixas eletrônicos.

É essa restrita empreitada criminosa o foco atual do Juízo de Tipicidade que se está desenvolvendo.

Da mesma forma como foi estudado, quando da análise da 1ª Hipótese de ocorrência do "seqüestro relâmpago", será primeiramente examinada a ação delituosa que importa em efetivo prejuízo patrimonial à vítima, guardando-se para um segundo momento o enquadramento do ato privativo da liberdade.

Assim, tem-se que, conforme demonstrado mediante as ponderações realizadas no tópico anterior, na prática do "seqüestro relâmpago", o desfalque no patrimônio da vítima decorrente dos saques efetuados nos bancos 24 horas não pode ser tipificado como roubo. Configura, doutra sorte, o exaurimento de uma extorsão em virtude da imprescindibilidade de um comportamento da vítima, qual seja: a sua ida ao(s) caixa(s) eletrônico(s) ou, no mínimo, o fornecimento da senha de seu cartão.

E não se diga que o apossamento pelo criminoso do cartão bancário da vítima constituiria um delito autônomo (provavelmente roubo), pois, como se sabe:

- o cartão magnético por não possuir valoração econômica própria transforma-se num objeto insusceptível de ser posto, sozinho, sob a tutela da norma penal (v. RT 616/316);

- e, ainda que assim não fosse, estar-se-ia diante de uma situação evidente de prática de um crime-meio (agora sim!), tanto pelo fato de a pretensa subtração do cartão magnético prestar-se, exclusivamente, para se atingir ao exaurimento da extorsão, quanto por não haver como se falar, in casu, na existência de norma geral ou especial.

Sabendo-se que não se trata de um crime de roubo, mas de uma extorsão, o componente "privação da liberdade", como visto alhures, não pode ser por ela absolvido em função da previsão do art. 159 do Código Penal (extorsão mediante seqüestro) e da conseqüente aplicação do princípio da especialidade.

Logo, o agente da hipótese do "seqüestro relâmpago" em estudo pratica tecnicamente uma extorsão mediante seqüestro.

À primeira vista, pode tal conclusão mostrar-se exagerada, dada a elevada punição abstratamente prevista na capitulação do art. 159 do Código Penal. Entretanto, repita-se, tecnicamente, parece não haver posicionamento mais acertado.

Há na doutrina a seguinte definição para o ilícito de extorsão mediante seqüestro: "extorsão praticada tendo como meio para a obtenção da vantagem econômica a privação de liberdade de uma pessoa" [14].

Ora, ocorrendo a hipótese de "seqüestro relâmpago", pode-se dizer que houve privação liberdade? Sim. Houve extorsão? Sim. A privação foi cometida como meio para garantir a obtenção da vantagem econômica? Sim.

Diz o art. 159 do C.P. que comete extorsão mediante seqüestro quem: "Seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate".

Repetem-se os questionamentos: na hipótese de "seqüestro relâmpago" sob comento, alguém foi seqüestrado? Sim [15]. Essa ação foi praticada com o fim de obter-se alguma vantagem? Sim. Tal vantagem, de indiscutível natureza econômica, seria em favor do agente ou de algum outro comparsa seu? Óbvio. O agente impôs à vítima, como condição para ser restituída a sua liberdade, a prática de algum ato do qual iria decorrer a vantagem visada? Evidentemente que sim.

Desta forma, indubitavelmente, verifica-se a presença de todos os elementos do crime de extorsão mediante seqüestro na conduta praticada pelo autor do ilícito.

É razoável que alguém argumente não existir lógica na conclusão segundo a qual o criminoso "A" que apenas efetuou saques em caixas eletrônicos com o cartão da vítima responda por um crime hediondo, quando o agente "B" que, além de ter efetuado tais saques, ainda subtraiu inúmeros pertences da vítima irá responder por crimes não hediondos.

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Tal constatação, entretanto, não é fruto da falta de lógica ou de precisão técnica da citada conclusão. Deve-se sim à atecnia do legislador na definição ou indicação dos delitos que passaram a ter o status de crimes hediondos.

Ademais, em que pese o fato de o agente "A" não poder ser beneficiado por anistia, graça, indulto, fiança e liberdade provisória, sua pena máxima não poderá exceder os 15 anos de reclusão, enquanto que a pena máxima do agente "B" será de 25 anos de reclusão mais as multas previstas em ambos os tipos infringidos.

Mutatis mutandis, a pena mínima daquele que praticou apenas os saques em caixas eletrônicos será de 8 anos de reclusão, enquanto que a pena mínima do que praticou os saques e as subtrações será de 9 anos e 4 meses de reclusão, além das referidas multas.

Esse quadro reforça a tese de que o legislador não se muniu de técnica e precisão suficientes quando, ao editar a lei dos crimes hediondos, valorou quais os tipos penais que deveriam ser detentores do referido status (lei 8.072/90 posteriormente modificada pela lei 8.930/94).

Destarte, sob o fito de finalizar o presente ensaio, salienta-se novamente que o fato social, vulgar e impropriamente, conhecido por "seqüestro relâmpago" possui duas hipóteses de ocorrência: a 1ª (v. item 2.1.1) onde se configura a prática de um roubo qualificado pela restrição da liberdade da vítima em concurso material com uma extorsão simples; e a 2ª (v. item 2.1.2) na qual se consuma um delito de extorsão mediante seqüestro.

Por tudo isso, estão os magistrados brasileiros diante de um terrível impasse: ou aplicam a norma penal vigente utilizando-se da maior precisão técnica possível ou, por entenderem ser demasiadamente rigorosa a sanção cominada, utilizam-se de artifícios para escapar à técnica e aplicar aquilo que em suas consciências aparece como justo.

Se de um lado é certo que o julgador não pode ser um tecnicista frio e calculista, pois que, se assim fosse, poder-se-ia substitui-lo por máquinas aplicadoras de normas, de outro, é cediço que a técnica desempenha papel fundamental na atividade judicante na medida em que limita a valoração íntima decorrente das experiências de cada indivíduo.

As soluções apresentadas por intermédio de procedimentos atécnicos muito provavelmente serão ainda mais injustas do que as que dela derivam, vez que, em muitos casos, em virtude da discricionariedade e do arbítrio de cada intérprete, estar-se-á tratando de maneira diferente situações semelhantes.

Em resumo, o aplicador do Direito, seja pela tradição da matéria com a qual lida diariamente, seja pela influência que seu comportamento gera sobre a sociedade, não tem a faculdade de, ao decidir uma questão, atirar ao fogo seus alfarrábios, manuais, orientações, os comentários dos mais cultos, enfim, o conhecimento jurídico que durante tantos anos levou para amealhar.

Como diz Pierangeli: "o conceito de crime é sempre um conceito jurídico. E é dentro desse conceito que devemos considerar a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade..." [16] (grifo nosso).

Por outro lado, no momento da decisão é fundamental que tenham voz ativa os valores do magistrado, seus princípios morais e suas experiências.

Como escolher entre opostos tão perigosos?

Não existe resposta correta. Particularizando novamente a discussão para o assunto "seqüestro relâmpago", tem-se que, hoje, cada julgador, pesando tecnicismo versus sentimento íntimo de justiça, age conforme indica sua consciência e é normal que se apresente como mais razoável a escolha da aparente justiça. Daí a grande divergência doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, eis que a definição daquilo que é justo não é, nem de longe, concreta e segura.

Tem este ensaio, portanto, a proposta de chamar a atenção da comunidade jurídica ao "problema" posto aos julgadores no que tange à ocorrência e à tipificação do "seqüestro relâmpago".

Durante o decorrer deste trabalho, procurou-se aclarar aquilo que a técnica jurídica indica como solução para o julgador que se depara com uma consumação de um "seqüestro relâmpago" mas, ao mesmo tempo, foram apresentadas algumas outras soluções que ontologicamente escapam à técnica mais apurada, talvez numa tentativa de direcionar as decisões rumo à Justiça.

Não se pode olvidar que, ao se comparar a situação dos agentes que praticam cada uma das hipóteses acima comentadas, verifica-se uma distorção entre a gravidade dos atos cometidos e a punição a eles impostos.

De fato, mesmo observando, como demonstrado, que é menor tanto a pena mínima quanto a máxima da conduta valorada como menos ofensiva (2ª hipótese), existem uma série de outros fatores que a tornam excessivamente gravosa.

Por seu turno, àqueles que cometem a 1ª hipótese do "seqüestro relâmpago", embora tenham eles infringido dois tipos penais, a punição igualmente é pesada.

É preciso humanizar a situação, criar uma nova capitulação jurídica que tipifique o objeto de nosso estudo e, por fim, cominar uma pena condigna à realidade valorativa das condutas, de forma a bem reprimi-las sem fazer das sanções um meio de sofrimento desnecessário aos agentes.

Por isso se tornam importantes projetos de lei como o de nº 5.506/01 – citado em epígrafe -, pois que apenas por intermédio deles levar-se-á ao debate político essa situação de impasse ora registrada, sendo indispensável que a comunidade, principalmente a jurídica, contribua com o bom andamento de tais projetos, aperfeiçoando-os e possibilitando uma análise rápida por parte dos congressistas pátrios.


NOTAS

1.TOLEDO, Francisco de Assis, Princípios Básicos de Direito Penal, 5ª ed., p. 06.

2.BITENCOURT, Cezar Roberto, Manual de Direito Penal – Parte Geral, 5ª ed., p. 43.

3.REALE JR., Miguel, Teoria do Delito, 2ª ed., p. 42.

4.WELZEL, Das neue Bild des strafrechtssystems, Préfácio à 4ª ed., p. X.

5.WELZEL, Das neue Bild, cit., p. X.

6.TOLEDO, Francisco de Assis, cit., p. 84.

7.BITENCOURT, cit., p. 234.

8.JESUS, Damásio de, Seqüestro Relâmpago, in www.damasio.com.br., ago/2000.

9.NORONHA, Magalhães, Direito Penal, Ed. Saraiva, v. II, p. 281, n. 481.

10.HUNGRIA, Nelson, Comentários ao Código Penal, v. 7, 4ª ed., p. 67.

11.RT 720 / 438.

12.BITENCOURT, cit., p. 169.

13.TOURINHO FILHO, Fernando da Costa

14.MIRABETE, Júlio Fabbrini, Manual de Direito Penal, vol. II, 17ª ed., p. 251.

15.O art. 148 do C.P. define o crime de seqüestro a ação de "Privar alguém de sua liberdade...".

16.PIERANGELI, José Henrique, O Consentimento do Ofendido na Teoria do Delito, 3ª ed., p. 19.

Sobre o autor
Hugo José Lucena de Mendonça

bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, assessor do Tribunal de Justiça de Pernambuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDONÇA, Hugo José Lucena. Juízo de tipicidade do seqüestro relâmpago. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 53, 1 jan. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2513. Acesso em: 24 nov. 2024.

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